23.3.07

É mais forte do que eu


Dando seguimento a uma longa tradição estudantil, eu costumava passar minhas tardes de bobeira, com amigos, no gramado da minha saudosa faculdade. Certo dia, havia uma escada de alumínio apoiada contra a parede, para que um funcionário, aliás bastante vagaroso, se dedicasse à prosaica epopéia de trocar uma lâmpada. Tenho quase certeza de que nenhum dos amigos que me faziam companhia se lembra desse episódio, mas, para mim, ele está fresco na memória.

Éramos, em resumo, um bando de desocupados, que vinha de encher a pança no bandejão. Ficamos a observar a reação das pessoas obrigadas a atravessar o terrível obstáculo pela passagem estreita que deixava. E constatamos algo que parece incrível: existe uma correlação entre a postura ideológica de um indivíduo e sua tendência à superstição. Explico, para quem não sabe: reza a lenda, sabe Deus de qual origem, que é de extremo mau agouro passar debaixo de uma escada. Um supersticioso preferirá mudar de calçada a submeter-se a um risco tão medonho.

Estupenda, a análise estatística que levamos a cabo naquela tarde! Sim, claro: muito mambembe. Mas seus resultados nos pareceram incontestáveis. Senão, vejamos. Um alto quadro de certo partido político supostamente de esquerda e hoje no poder, homem conhecido e bigodudo, saía de uma palestra que viera dar em nossa escola. Ao se deparar com a famigerada escada, alterou radicalmente sua trajetória, contorceu-se todo, evitou o risco do azar e se afastou em passo apertado. Um outro, professor da casa, reconhecido por sua defesa enfática dos ideais rigidamente reacionários, nem tomou conhecimento daquele corpo estranho. O caminho que se lhe oferecia, atravessou como um tanque de guerra, espumando de raiva contra o Estado.

Finalmente, a prova definitiva. Mais um professor, este conhecido por sua participação em governo recente (um que teve dois mandatos, mas já terminou), também dono de um belo bigode e um enorme bico amarelo, interrompeu sua marcha diante da escada e ficou a considerar suas múltiplas escolhas. Indeciso diante de uma cesta de bens indiferentes, acabou por preferir a prudência. Com toda a cautela do mundo, contornou o enorme amuleto de azar.

Mais uma meia-dúzia de exemplos nos levaram a desenvolver a teoria. Os de esquerda, ou que assim se dizem, têm maior inclinação a acreditar em forças ocultas. Os de direita só acreditam na força, nada oculta, do capital. Já os membros desse partido, teoricamente centrista, que esteve no poder, mas não está mais, querem entrar no Reino dos Céus. Mas não sem antes fazer um pé de meia e conhecer a Europa. É uma teoria idiota, eu sei, mas não me censurem antes de fazer um teste. Coloquem uma escada diante de algumas cobaias e vejam o que acontece.

Não me considero supersticioso, mas tampouco sou materialista. No futebol, claro, pratico algumas mandingas; não quero ver um título jogado fora por culpa minha (na verdade, os títulos têm sido perdidos por outros motivos). Se não me meto debaixo de escadas abertas, nas calçadas deste mundo, isso não se explica por alguma crença em conjunturas cósmicas. É, ao contrário, uma analogia perfeitamente racional. Escadas abertas se fazem acompanhar, sem exceção, de objetos como pincéis, vasos de flores, avisos luminosos, martelos e quetais. Todos eles, graves que são, tendem para o centro do planeta, e meu crânio pode estar no meio dessa trajetória. Portanto, opto pela prudência, como o professor que mencionei, e faço um caminho maior. Questão de segurança, não de fé.

Mesmo sendo imune ao vício da superstição, tampouco posso me entregar de braços abertos ao ceticismo. Sou brasileiro, não sou? Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, como diz o ditado. Eis que hoje, portanto, me vejo confrontado mais uma vez com a questão da crendice, não mais na relva, de barriga para o ar, mas em minha própria carne. Voltando para casa, cansado, esfomeado, sou surpreendido por um corpo negro que cruza meu caminho, um palmo adiante dos meus pés. Não demorou mais de um segundo para eu identificar aquele tufo de pelos. Um gato, sem sombra de dúvida. Um gato preto.

Agora, queiram observar as circunstâncias. O bicho estava, silenciosa e pacificamente, deitado entre as rodas de um carro estacionado. Durante minutos, na rua quase não passou alma. Ele estava livre para atravessá-la quando bem entendesse, com toda a calma do mundo, sem ser molestado. Mas... não. Ele preferiu esperar até que eu despontasse na esquina. Preparou o impulso das patas, acompanhou minha aproximação e, quando eu estava no ponto certo, disparou. Como uma seta, em um instante estava do outro lado, debaixo das rodas de um outro carro, não mais, nem menos confortável ou seguro do que o anterior.

É claro que isso pode não significar nada. O pequeno felino pode ser extraordinariamente inteligente, dotado de um senso de humor refinado e cruel. Talvez ele venha acompanhando, há dias, cada passo meu. Talvez tenha me escolhido ao acaso, para pregar uma peça em alguém. Finalmente, talvez eu esteja me iludindo, e tudo seja uma obra do destino para me indicar a chegada de algum grande infortúnio. Como saber?

Segundo a tradição das grandes crendices históricas, o modo correto de agir numa hora dessas é perseguir o tal do gato até conseguir retribuir o gesto e cruzar o caminho dele. Há uma tira do Pato Donald em que, por páginas e páginas, e corre atrás de um bichano e sofre todo tipo de contratempo: é atropelado, multado, cai em um bueiro, perde um compromisso com a Margarida e por aí vai. Como não sou personagem de cartum, minha reação foi outra: preferi fechar os olhos para a incrível conjunção de fatores sobrenaturais. Segui meu caminho como se nada tivesse acontecido, agarrei-me às minhas convicções racionalistas. Se me acontecer algo de muito negativo nos próximos dias, avisarei. Ou sumirei destas páginas.

7 Comments:

Blogger Lunna Guedes said...

Bem, minha superstição com relação a escada é limitada: ela pode cair na minha cabeça e isso não seria nada interessante.
E quanto aos políticos desse país... Existe isso aqui? Creio que não, existem oportunistas.
Abraços e um excelente final de semana...ca

14:30  
Anonymous Anônimo said...

Eu tenho minhas supertições, se não, o mundo fica muito chato e desancatado.

15:25  
Blogger Lua em Libra said...

Paulo,

isso significa que tu também preferes entrar no reino dos céus depois, bem depois, de conhecer a Europa?

Olha quanto ao azar não sei, y jo no creo en brujas. Pero que las hay, las hay.

Abraço

16:11  
Blogger Gabriela said...

Querido amigo virtual inverso,

Vim agradecer a visita e o comentário (não, com o seu blog vc não está mal na fita). Que delícia de texto! Agradeça ao gato preto um fechamento tão bacana!

Beijos

20:40  
Blogger Unknown said...

Não sou supersticioso mas na duvida não costumo passar em baixo de escasa nem quebrar espelhos, quanto ao gato preto nem ligo dexa o bicho.

00:15  
Blogger Daniel Bosi said...

Eu quebro espelhos, passo por baixo de escadas e tenho um lindo gato preto! (Risos). Ótima observação, meu caro!

08:36  
Blogger Bela said...

Pra além do gato e da escada (que por via das dúvidas eu evito, como boa filha de baiano!), "Já os membros desse partido, teoricamente centrista, que esteve no poder, mas não está mais, querem entrar no Reino dos Céus. Mas não sem antes fazer um pé de meia e conhecer a Europa." foi a melhor definição desse povo que eu já li!
hahahahaha
Adooorei.
E sim, já corri atrás de um gato preto com mais sorte do que o pato.
beijos

20:16  

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