21.1.07

O que falta à França é um rei!


(Alguém sabe como colocar itálicos nesse programa???)

Nada é mais esperado que o domingo para quem vive em Paris. Ficar em casa com a cara enfiada nos livros durante a semana é proveitoso mas, em bom português, é chato. O fim de semana, quando não chove, é tempo de sair e passear pelos boulevards, pelos quais, pelos museus, parques e cemitérios. Para alguém que veio de São Paulo, como eu, isso é fabuloso, realmente uma dádiva dos céus.

Durante meu passeio de hoje, pensei que fosse escrever sobre os passarinhos que comeram migalhas da minha mão no Parc Monceau, sobre os livros antigos nas tradicionais banquinhas da beira do Sena, sobre os brasileiros que conheci num pequeno café ao lado da Notre Dame, um café de cinco mesas das quais três eram ocupadas por paulistas, cariocas, niteroienses e mineiros. Como não podia deixar de ser, os três grupos de pessoas até então desconhecidas saíram do local como velhos amigos, trocando telefones e abraços. (Eu disse que era um café para dar um certo charme, mas na verdade era uma lanchonete, americana ainda por cima, mas era o lugar mais barato para comer...)

Depois, achei que escreveria sobre os gigantescos nenúfares de Monet, que desejava há tempos ver e finalmente vi, exibidos na antiga estufa que virou museu, a Orangerie, na entrada do jardim das Tulherias. Ou sobre os vários quadros fabulosos expostos no mesmo museu: Picasso, Matisse, Renoir... Ou ainda sobre a vista da praça da Concórdia, com vários dos pontos turísticos mais famosos de Paris bem distribuídos diante do olhar. Por fim, achei que escreveria sobre a monumental igreja da Madeleine, em que não havia ainda entrado, embora numa noite de frio, em busca de uma determinada rua, já a tenha circulado em silenciosa admiração.

Mas não vou escrever sobre nada disso, porque o interesse de todas essas coisas deliciosas acabou ofuscado por uma dessas coisas que só acontecem em cidades como Paris (uma cidade "outdoors", diriam os brasileiros anglófilos). Diante das escadarias da Madeleine, dei com uma boa dezena de bandeiras de fundo azul, portando a flor-de-lis que durante cerca de um milênio simbolizou a monarquia francesa.

Pouco mais de duzentas pessoas estavam reunidas, preparando-se para uma procissão acompanhada por fotógrafos e policias. Dois rapazes distribuíam panfletos. Um continha letras de canções, o outro explicações sobre o evento. Para meu grande espanto, era uma manifestação de monarquistas, celebrando os 214 anos da execução (ou cruel assassinato, como eles preferem) de Luís XVI, na praça da Concórdia (a praça que eles ousam chamar "da concórdia", segundo as palavras de um dos porta-vozes).

O evento é anual. A cada 21 de janeiro (a execução foi nesse dia, em 1793), o cortejo parte da entrada da igreja da Madeleine, onde o rei foi enterrado, e segue para uma praça batizada em sua homenagem, nos fundos de um templo de nome pouco dúbio: "Capela expiatória". Durante todo o percurso, munidos das bandeiras e de tochas que remetem um pouco à Ku Klux Klan, os restauradores cantam hinos de levada marcial e temas sangrentos: "Nós abateremos Robespierre, o odioso tirano, rolando esse lobo sanguinário em seu próprio sangue!" (Robespierre, por sinal, foi abatido pelos próprios revolucionários, isso há mais de 200 anos).

No meio do caminho, um músico que sobe as escadas do metrô segurando seu trompete dá com o orgulhoso grupo que segue a avenida cercado de curiosos (a maioria sorrindo um pouco, é verdade). Gaiato, decide levar o instrumento à boca e tocar a melodia da Marselhesa, canção revolucionária igualmente sangrenta ("Às armas, cidadãos! Formai vossos batalhões! Marchemos, marchemos! Que um sangue impuro abasteça nossos armazéns!") que, no final das contas, virou hino da França republicana. Para quê? O rapaz de barba que encabeça a procissão enche os pulmões e berra mais alto ainda os versos monarquistas ao megafone, tornando a melodia incompreensível. O policial que organiza o cordão vai até o músico e lhe pede gentilmente que não cause problemas. Talvez a situação já seja suficientemente insólita por si só. O músico assente, não quer confusão com a polícia e já deu seu recado. Sob olhares agressivos, parte com um ar zombeteiro.

Debelado o incidente e chegados à praça, os admiradores dos Bourbon ouvem alguns discursos (muito divertidos, por sinal), e reivindicam a instalação de uma placa que lamente a instauração da República. É um objetivo difícil, tratando-se de uma república particularmente orgulhosa de sua própria instauração. Mas eles rejeitam essa nefasta instituição e repetem a frase de Charles Maurras, antigo jornalista monarquista: "Não se trata de restaurar a monarquia na França, mas de restaurar a França pela monarquia".

Sim, a procissão não é apenas uma homenagem a um personagem histórico. É uma luta política. A França, para eles, precisa voltar às suas tradições e derrubar a república que, a propósito, é responsável por todos os males dos tempos contemporâneos: "o perigo de desaparição da França no turbilhão euro-mundialista, a ameaça dos impérios anglo-americano (?!) e turco-islâmico (?!), a sedição comunitarista (!), a desindustrialização...", diz o panfleto.

Tudo bem, eu sei que é necessário ter respeito por todas as correntes e opiniões, e tal. Mas tem coisas que são engraçadas demais para serem levadas a sério. A grande vantagem da liberdade de opinião sobre a censura é que todo tipo de disparate pode ser levado a público e expor-se ao ridículo. Idéias como essa, se ficassem escondidas, poderiam crescer até se tornarem ameaçadoras. Mas com liberdade de expressão, elas se expõem ao riso.

Quer dizer então que a República é responsável pela desindustrialização da França? Muito interessante, mas como a industrialização da França começou justamente em seguida à derrubada da monarquia Bourbon, o saldo ainda é positivo. Mas de uma certa forma eles têm razão. A economia francesa ia muito bem sob Luís XVI; a fome era um detalhe, a inflação, quase insignificante, e os Estados Gerais que precipitaram a revolução foram convocados não porque o país estivesse caindo aos pedaços, mas porque o rei teve uma súbita vontade de rever alguns velhos inimigos. Além disso, Espanha, Suécia e Reino Unido, que mantiveram suas orgulhosas monarquias, não correm riscos como esses: não têm imigração, desemprego ou campanhas eleitorais ridículas, não estão ameaçadas pelo tal império turco (talvez seja aquele que ruiu depois da Primeira Guerra Mundial, sei lá), seguem de vento em popa, com Deus e o Rei.

Eu gostaria agora de salientar algumas passagens engraçadas do discurso que ouvi, ao lado de uma moça francesa que a muito custo tentava segurar o riso (deveria ser republicana, tataraneta de Danton, vai saber). O senhor que falava, num francês impecável, talvez seja o "príncipe herdeiro" Jean, duque de Vendôme e maior interessado numa eventual restauração. Não tive coragem de perguntar. Dizia ele que o rei, coitado, era um homem "bom, honesto, magnânimo, amado por seu povo, consciente em detalhes dos sofrimentos dos franceses mais humildes. Era um homem ligado pelo sangue a cada ínfimo elemento de sua pátria". Fiquei com a pulga atrás da orelha. Se o povo o amava tanto, por que se rebelou a ponto de decapitar seu amado monarca? Por que os soldados que deveriam defendê-lo se juntaram aos revoltosos? Freud explica. Talvez seja a maldita propaganda iluminista (sim, o Iluminismo e a razão humana foram alvos de inúmeros ataques durante o discurso). E se o rei conhecia tão bem seu querido povo, por que não evitou a revolução? Aliás, por que, ao ser informado da queda da Bastilha durante uma de suas intermináveis caçadas em Versalhes, reagiu ele dando de ombros, dizendo: "Ora, mais uma revolta"? Vai ver não era um bom dia. Os faisões deviam estar difíceis de acertar.

Mais para frente, criticando o circo em que as eleições se transformaram na França, aliás em todo o mundo, disse o bom velhinho que discursava: "a diferença entre os reis e os políticos é que os reis estão com o país e o povo em todos os momentos, nos bons como nos ruins, sob céu claro ou tempestade. Luís XVI foi um rei que jamais virou as costas para a França ou os franceses". Para deixar bem claro: ele se referia ao mesmo Luís XVI decapitado como traidor após ser preso tentando fugir da França disfarçado de mendigo (reconheceram-no pelas suas meias, bordadas com aquela flor-de-lis de que já falei). Ao fugir, ou tentar, não apenas ele traía a França e os franceses: traía também os demais nobres que passavam mais bocados sob as baionetas do terror. Ademais, várias vezes foi feita referência a Luís XVI como "nosso último rei"... mas houve outros depois dele: por sinal, ele não foi nem o último rei Bourbon...

Brincadeiras à parte: não é incrível como se pode dizer qualquer coisa, que se os ouvintes estiverem inclinados a acreditar aquilo soará como a mais evidente verdade? Eu diria que não existe liberdade de opinião: ou melhor, ela sempre existe de um jeito ou de outro. Opinião, todo mundo tem e cada um tem a sua. O que existe é liberdade de debate. Quando cada um tem o direito de expressar suas idéias e a obrigação de ouvir com atenção as idéias dos demais, sem tapar os ouvidos.

Também é interessante notar as fisionomias dos participantes. Há os idosos, provavelmente todos moradores do mesmo bairro da passeata: o 8ème, um dos arrondissements mais caros de Paris. Mas há também os jovens, que usam jaquetas de couro, calças jeans apertadas, lenços ao pescoço e cabelo raspado (ou quase). A descrição é clara. Muitos ali são skinheads, uma figura não tão rara quanto pode parecer na França. São garotos que não conseguem encontrar emprego mas, sem conseguir nem tentar entender os motivos para isso, saem culpando a tudo e a todos, desde os imigrantes (que podem limpar latrinas, mas dificilmente comandam empresas) até a República. Jamais culpam a burocracia, as instituições ultrapassadas ou o apoio a agricultores ineficientes, claro. Porque esses são franceses tão puros quanto eles mesmos.

Por fim, para quem quiser se divertir um pouco, há um vídeo na internet feito especialmente para a ocasião: http://www.dailymotion.com/video/xx38c_21-janvier-cortege-ba/

Divirtam-se.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Olá meu amigo…
Invejo-o ao falar-me dessas grandes personalidades das quais vê tantas obras da mais belíssima natureza… Mas é Paris, não se poderia esperar menos… Essa bela cidade nesse país das maravilhas. Um dia quando tiver daquilo que move o mundo (€), hei-de visitar a França, assim como todo o mundo, incluindo o seu país de origem. Quanto ao tema do post não me espanta. Neste velho mundo há muitos movimentos que pretendem regressar ao passado, e, nem sempre os seus ideais estão certos. Todavia concordo quando diz que todos temos opiniões diferentes, e devemos transmitir as nossas, assim como ouvir e tentar perceber a dos outros.
Penso que quando pergunta como se escreve em itálico se refere ao blogger…
Normalmente tem na barra em cima, ao lado do tipo de letra e tamanho um “i”… Seleccione o texto e pressione o ícone (como no Office). Se não resultar, experimente tags do género:
- palavra ou expressão desejada ou

02:36  
Anonymous Anônimo said...

Ups, usei tags e a expressão ficou em itálico sem mostrar o método. desta vez explico em português. Use sem espaços:
-simbolo "menor que"(<), seguido de(i),e "maior que"(>).Escreve o que desejar. Para terminar o itálico:
repete mas desta vez com uma "barra"(/).
Ou seja:
(<.i.>)para abrir, (<./.i.>)para fechar. Sem os pontos, claro...
Penso que também se podem utilizar as letras "em" para substituir o "i".
Espero não tê-lo confundido ainda mais...

02:53  
Anonymous Anônimo said...

durante a leitura pensei em diversos comentários, mas seu texto dispensa comentários. Mas 2 coisas ficaram na minha cabeça: 1a > A liberdade de expressão e de debate perde para a falta de conhecimento e cultura. Estou impressionada com seu conhecimento da história francesa quando nós não conhecemos nossa própria história e nem os franceses a deles. PARABÉNS! 2> Uma visita a Paris estava incluída naquele projeto do qual fiz parte mas, como várias outras tarefas, não chegou a ser cumprida. Bom, segue o email: cris_bauer@hotmail.com Beijos

12:28  
Anonymous Anônimo said...

"E se você saísse à francesa, eu viajaria muito mais, muito mais..."

12:29  
Anonymous Anônimo said...

Ah... France!!

Vive la France
La douce France
Pays du vin
Et de l'amour.

Bjinhos melados.

16:11  
Anonymous Anônimo said...

Seu melhor texto, camarada Paulo. Deixo passar a implicância pedante com a letra da Marselhesa, porque sei que você é artista e poeta, e desses não se pode esperar a dureza de curas como Robespierre.

Carlos Roberto

18:52  
Anonymous Anônimo said...

O riso dos céticos não deterá a marcha dos que têm fé.
A morte do Rei Louis XVI sempre será um terrível marco para aqueles que amam a ordem ,a nobreza , a religiosidade , a organicidade dos povos.
Como disse talleyrand : "não conheceu a doçura de viver aquele que não viveu na França do ancient regime ".
Crendo na Providência Divina espero a restauração da França e da Gloriosa Cristandade Ocidental.

In Jesu et Maria

04:26  

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