3.3.07

Seção dedo de prosa: Os cinco maiores beijos que não dei


Atendendo ao convite do Marcão, do blog Hedonismos, velho amigo de textos, chopes e peladas, segue minha resposta para o tema "Os cinco maiores beijos que não dei". Cheguei a acreditar que a idéia era contar histórias verídicas, mas depois pensei melhor, e resolvi postar um ciclo de cinco narrativas, ou uma narrativa de cinco partes, se preferir. Valeu, Marcão; espero que esteja do seu agrado!

1) Em que ano foi? Foi ontem. Eu agi como um idiota, eu era completamente idiota naquela época e se passar por uma situação parecida vou acabar descobrindo que ainda sou. É o que penso quando sou convidado para jantar na casa daquele casal que não consigo deixar de ver como um desvio no curso natural dos eventos. Um desvio de que eu mesmo sou o grande culpado, vilão da minha própria vida. Ela abriu suas últimas cartas em desespero. Tocou na minha casa com a voz quase sumida. Chovia? É claro que chovia, era noite, noite grossa, noite toda feita de tormenta e dor. Ela implorou para que eu a deixasse subir, eu neguei aos gritos, mas num instante ela chegava à minha porta, porque meu dedo não tem voz e assentiu. Deixei-a sentar-se no sofá, enquanto eu arrastava as costas parede abaixo, tremendo de febre por revê-la. Queria expressar raiva, mas não pude esconder o pavor que minha respiração ofegante denunciava. Ouvi sua voz difusa dizer que não poderia se decidir sem ouvir meu veredito. Demorei, talvez de propósito, a entender que ela falava em um pedido de casamento. Jurou que não o amava, mas aceitaria se eu não dissesse uma palavra para impedir. Foi um ataque frontal ao meu amor-próprio, ainda estilhaçado pela ofensa recente, a impressão ainda vida de uma traição escandalosa, vergonhosa, imperdoável. Senti-me ofendido até a raiz mais profunda do meu caráter. Sensato, controlado, o homem sem ciúmes não permitiu que ela saísse do apartamento para enxugar as lágrimas talvez falsas contra um peito que deveria ser-lhe estranho. O homem sem ciúmes agarrou seu braço, puxou-a com violência, machucou-a, atirou-a ao chão insensivelmente e a amou com a energia do ódio. Não sei que homem é esse. Eu sou um tolo ciumento.

2) Quando ela mandou o cretino descer para comprar cigarros, eu deveria ter me oferecido. Cheguei a ter o impulso, mas fui tomado por um desejo estúpido de ficar a sós com ela, e essa idiotice manifesta me silenciou. Mal bateu-se a porta, sua expressão se alterou e ela me atirou, como carne a um cão faminto, a pergunta. Mas como responder se acho que seu casamento a faz infeliz? Que ao menos faça. Para mim, essa união é um convite ao suicídio. Não o disse. Apenas sorri. Já ela se inclinou. Insinuava-se sem tentar dissimular. Entrei em pânico, senti o colarinho empapando-se de suor. Ela dizia, no tom tranqüilo da manipulação, que passava os dias sofrendo, naquele apartamento luminoso e decorado com gosto. Que só suportava sua vida porque queria me atingir, me ferir, me humilhar. Eu fazia de tudo para não escutar. Entrei em devaneios. Fiquei observando os restos do jantar nos pratos imóveis até sentir uma identificação com as manchas de molho e os pedaços de gordura. Ela parou de falar e passou a morder as unhas, olhos pregados nos meus. O homem galante e corajoso tomou-a pela mão, escancarou a porta e irrompeu pelo corredor a arrastá-la atrás de si, todo promessas, todo sonhos, ambos gargalhando com o coração fora de compasso, deixando para trás todas as posses, os documentos, a vida infame que atestava a frustração de um amor inescapável. Não há galanteria. A coragem é uma mentira. O maldito marido, homem-sorriso sarcástico e presunçoso, atirou sobre a mesa o pacote de cigarros. Eu fumei desejando o câncer.

3) Era quarta-feira, concluí finalmente que me tornava obsessivo. Foi quando tentei fazer a barba de manhã e a idéia de trabalhar me pareceu absurda. Eu estava convencido de que todos os colegas me vinham me olhando de viés, conhecedores profundos da minha história, mais até do que eu mesmo. Cruéis, insensíveis, cretinos. Telefonei para o escritório e avisei que não compareceria. Febre, eu disse. E não era mentira. Passei todo aquele dia deitado na cama de olhos abertos e língua seca. Não comi, não escovei os dentes, ao cair da tarde tinha a boca amarga e a língua dormente. Quando escureceu, levantei-me de súbito com a decisão tomada: ir a algum lugar. Fazer algo. Joguei sobre os ombros qualquer paletó e me atirei escada abaixo. Saí pela cidade sem olhar para os lados, sem me preocupar nos cruzamentos, sem evitar os buracos. Tropecei mais de uma vez, feri as mãos. Dois mendigos bêbados, da outra calçada, riram-se de mim e quebraram uma garrafa ao chão. Homenagem mais do que adequada. Segui, trôpego. Não sei como fui parar naquele canto da cidade. Ela me sustentou quando eu estava para cair. Uma menina, nada mais. Um homem de terno se aproximou. Porteiro. Ela o afastou. Lábios fosforescentes, olhos ensombrecidos de lilás, sorriu e me perguntou se tudo estava bem. Eu tinha dinheiro no bolso. Levou-me para o seu quarto, só havia a cama, depositei o dinheiro, ela o guardou debaixo do travesseiro. O homem sonhador ofereceu-lhe um lar, prometeu uma vida diferente, comprou vestidos de estilo para tomar o lugar das meias arrastão. Minha realidade é um pesadelo. Caí em mim, declarei toda a gratidão do mundo àquela garota, jamais retornei àquele bairro. Mantive-me fielmente atado à minha insensatez.

4) Isto está virando um diário. Posso mentir, é só para mim. Mas não minto. Não consigo. Ia dizer que ela passou a se jogar aos meus pés com regularidade cada vez maior. Que eu me senti vingado e a cada dia me deleitava mais profundamente com seus uivos de arrependimento. Ela desapareceu. Não deu mais sinal de vida. Apagou-me de sua memória, pensei. Era justo o que eu queria. Paz. Para ela. Que me desrespeitou, me traiu, me usou e não se importou em me esquecer depois, quando tentei impor alguma resistência. Parti de carro para sua casa. Tirar tudo a limpo. Acelerei demais? Cheguei em um instante. Parado diante da portaria, quanto tempo fiquei? Poderia ter morrido com o gás do escapamento. Pessoas entram e saem. Casais. Adolescentes. Mas ela se esconde de mim. Sabe que estou aqui. Ela conhece meu carro, ela me conhece. Finalmente ela desponta ao final da rua, pacotes de compras na mão. Eu fui atrás dela. Saí da minha casa, humilhei-me. Para correr atrás dela. O homem sem orgulho pulou para a rua, enlaçou sua cintura, riu de sua expressão de espanto e das garrafas de leite que se quebravam no chão. O homem sem orgulho não precisou de mais do que duas palavras para dar seu perdão e jurar seu amor. Duas palavras e um beijo profundo. Em seguida, o homem sem orgulho a conduziu para o banco de passageiro e partiu com ela para uma cidade tranqüila e distante. Minha garganta não consegue sufocar o despeito. Rilhando os dentes, dei a partida e afoguei o orgulho na intranqüilidade do álcool.

5) Ela é pálida como a virgem dos poemas. Ela é promessa de calma sem fim. Ela não queima, ela não trai, ela jamais falta. Uma vez tocados os lábios nos seus, não há risco de distanciar-se. Nunca mais. Aos milhões, janelas cintilam, grandes manchas amarelas nos meus olhos mareados. Ela é o que me resta, o que desejo, meu destino verdadeiro. As luzes das outras janelas marcam o tempo, mas para mim o tempo marca a cadência das memórias infelizes. Entre ela e eu há apenas o receio. O meu receio. O cabo de algum aparelho elétrico, um revólver, a brisa gelada e fuliginosa da cidade bastam para que ela me abrace, para que nos beijemos, para que eu esteja eternamente deitado ao seu lado. Um pouco de engenhosidade, copos de bebida, a cabeça vazia e o coração pesado. Silêncio. Adeus à insônia, às rugas, à sucessão interminável de mentiras e desculpas. É a mais simples das uniões. Frio, meticuloso, o homem desiludido amarrou o cabo do abajur no eixo do ventilador, duas voltas bem firmes e um puxão violento para estar certo de que não haveria risco de falha. De mais uma frustração. O homem desiludido, embriagado de convicção e ciente do que fazia, escolheu uma cadeira já bamba e perfeita para receber o último pontapé antes do primeiro beijo. O homem desiludido se perdeu em gargalhadas enquanto engajava toda a energia do corpo na queda para o infinito. Eu não sou capaz de escapar à sedução da credulidade. Engulo como se fosse hóstia a pílula que me permite dormir, sem sonhos, até que a rotina torne a me colocar sobre dois pés.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Uau! Que medo... quem é você de verdade?

15:49  
Anonymous Anônimo said...

Vi um filme, pode fazer um roteiro.

15:57  
Anonymous Anônimo said...

Excelente! Visceral e elegante, exatamente como eu tinha certeza que seria!

19:23  
Blogger Lua em Libra said...

Moço,

essa veia eu não conhecia. Queria mesmo era eu mesma ter escrito isso. É visceral, verdadeiro e me traz memórias de alguém que não vivi. Abraço. Dos teus textos esse o que mais gostei.

21:30  
Blogger Bela said...

OI, Paulo!
To sumida, né? Ando pela vida na correia torta de sempre, mas tô bem viva aqui nos trópicos! "Mantenho-me fielmente atada à minha insensatez", sabe comé? ;o)
Ameeei os cinco beijos. Vou salvar aqui pra ler de tempos em tempos...pode?
...Sempre bom uma dose quíntupla de coragem!
beijo

03:44  
Blogger Paulo Fernando said...

Infelizmente ou felizmente, ainda não tenho gabarito o suficiente para possuir uma lista dos meus 5 maiores beijos. Digamos que, pelo menos dois, tenham sido inesquecíveis. No entanto, talvez, o meu maior beijo seja aquele que ainda não dei. Quem sabe...

06:41  
Blogger Sorriso largo no rosto said...

Ai, me dá uma saudade no peito que doi profundamente. Você é ótimo. Mexe com os mais profundos sentimentos

05:52  

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