9.6.06

Seção Dedo de Prosa: O endereço do papel

O endereço do papel

Chega à frente do edifício e confere o endereço. No papel amarrotado, em letra de fôrma, o nome da rua e o número. E o apartamento. Aperta o botão do interfone. Afasta-se alguns passos e se põe a observar o prédio. Uma construção antiga, coberta de fuligem, mas ainda imponente no meio de todos os fios e cartazes publicitários enrugados. Colunas de pedra maciça, sólida, áspera, forte, angulosa. Janelas grandes, com persianas feias, velhas, enferrujadas e tortas.

De frente para a porta metálica, trabalhada, de quase três metros de altura, toca novamente a campainha. Os números dos apartamentos já estão puídos nos botões, mas ninguém parece se preocupar em substituí-los. Nem aos vidros da porta, todos trincados. Não tem porteiro. Ninguém entra, ninguém sai do prédio.

Região central da cidade. Vendedores ambulantes. Gente que vende pipoca. Milho. Baterias de relógio. Homens jovens diante de banquinhas com filmes e discos piratas. Ninguém responde ao interfone. Ninguém aparece no corredor para dar alguma orientação. Ninguém nada.

O endereço está certo, não está? Está. Mas esse prédio parece abandonado. Não deve morar ninguém aqui. Uma mulher carregando um bebê. Parece que a qualquer momento pode deixá-lo cair. Ela não sabe segurar o próprio filho. Entra no prédio ao lado. Uma construção muito parecida com essa, mas habitada. Habitada por uma mãe pouco caprichosa e sabe lá mais quem.

Um idoso pede esmola a uma distância de poucos metros. Estende o braço fino e enrugado. Mais uma vez a campainha, e as pedras lá em cima, duras, quadradas, mortas, e o idoso pedindo esmola cá embaixo, pobre, seco, vivo por um fio. Poucas moedas dentro de seu chapeuzinho mirrado a ponto de esfarelar.

Suspira. Olha o relógio. O horário é o combinado. Longo caminho. Ônibus, metrô, baldeação, caminhada. Pessoas mal-encaradas em torno. O alto-falante anunciando um candidato a vereador. Do outro lado da rua, um assalto, gritaria, o meliante esbarra e derruba uma pequena senhora e suas compras. Frutas pela calçada, comoção, um ambulante de camisa curta e aberta ajuda a pobre senhora a se levantar. Já vai longe o ladrão com seu revólver enfiado na bermuda, o sinal abriu, a vítima acelerou, fez a curva, está em outra rua e indo em outra direção.

Nenhuma reação do interior do prédio. Só pode estar abandonado. Não adianta bater. Ninguém lá dentro, no corredor. As pancadas reverberam. Porta antiga de metal. Faz bem externar a raiva. O ambiente é desagradável. O calor é desagradável. O cheiro é desagradável, cigarros, suores e escapamentos.

Os freios dos coletivos guincham ao parar nos pontos. Todos os ônibus com defeito no freio. Os passageiros mortos de cansaço. Desanimados. Menos duas moças com brincos cor-de-rosa, que estão sentadas e conversam animadamente. Um rapaz, de pé, as observa. Parece desejá-las vagamente, como se deseja uma bala entre outras num balcão de bombonière. Os demais passageiros olham para o chão ou para as próprias mãos.

Mais batidas na porta. Com violência. A violência é um alívio. Sede. Dois homens de cabelos brancos passam em direção a lugar nenhum. Um sonhou com uma placa de carro: quarenta e seis, vinte e três. Não pode ser à toa. Mais adiante, se detêm diante de uma banquinha de madeira com um sujeito atrás. Um sujeito de olheiras abissais e pele flácida. O do sonho repete: quarenta e seis, vinte e três. Pois não, doutor, com a voz embargada de quem não está presente. E o senhor? Não sei. Gosto de cavalo. Pois leva cavalo, então. Pagam. Continuam conversando. O homem da pele flácida, enquanto coça os cabelos do peito, enfia o dinheiro no bolso da calça. Escuta rádio. É uma estação evangélica. Cura através do espírito. O demônio expulso. A vida recomeçada. Uma canção de alegria.

Nada disso tem graça. Muita sede. Na esquina, poucos passos além, um boteco com máquina de karaokê. Pessoas de todas as constituições possíveis sentadas no balcão. Um moço imberbe tenta acompanhar uma melodia diante da máquina. Não consegue direito. O microfone lhe roça o buço negro. Desafinado. Não entende a letra. Voz feia. Ninguém lhe dá atenção. Água, por favor.

Copo ou garrafa? Copo. Com gás ou sem? Sem. Gelada ou natural? Gelada. Um real. De volta à fachada do edifício. Decide esperar só até acabar aquele copinho. Mais um toque sem esperança naquela campainha. Pode estar quebrada. A água não vai durar muito. Sede. Calor. Sujeira, poluição... Se o interfone estiver quebrado, não vão escutar. E fazer o quê? Não há fluxo de pessoas naquele prédio, não dá para entrar. Será que ele está vazio? Será que ninguém mora nele? Não tem ninguém do outro lado?

Difícil respirar. Ambiente desumano. Insuportável. Nem o sol se digna a aparecer por aqui. As nuvens começam a tomar conta do céu e o ar vai ficando abafado. Escaldadas, algumas pessoas já preferem correr para se abrigar da chuva que virá, sem dúvida. O vento vem de uma só vez, forte, levantando papéis.

O homem da banquinha se assusta. Com um movimento da mão, agarra-se a seus cartões, que ameaçavam sair voando. Sem demonstrar pressa ou preocupação, eleva os olhos para o céu e faz um sinal afirmativo com a cabeça. Parece que sorri. Só de leve. Começa a enfiar os cartões no bolso da camisa, sem ordem, amassa a maioria. Continua não demonstrando pressa ou preocupação. Recolhe suas coisas.

O copo está ficando vazio. Melhor correr, também. O vento é refrescante, mas é sinal de chuva. Pode ser temporal, não seria nenhuma surpresa. Buzinas. Motoristas fazendo gestos obscenos para fora das janelas de seus automóveis. Os sinais vão do vermelho para o verde, do verde para o amarelo, daí para o vermelho, como sempre. Os pedestres atravessam correndo. As mulheres, segurando suas bolsas. Os homens, desajeitados. Jovens passam por entre os carros oferecendo balas, canetas e carregadores de telefone celular. Alguns já estão cobertos com um plástico. A chuva é inevitável.

A porta continua fechada. O interfone continua mudo. Ninguém responde. Não há comunicação. A volta vai ser tão penosa quanto a vinda. Mais metrô, mais ônibus. Debaixo de chuva. Empacotados de gente. Milhares de pessoas suadas, agredindo-se para entrar nos vagões ou nos coletivos. Alguns batedores de carteira. Algumas freadas bruscas. O dinheiro das passagens gasto à toa.

Um acesso de raiva. Mais batidas na porta. De mão fechada. Só o eco consegue invadir aquele corredor bege, mas rebate no mármore das paredes e corre de volta. No mais, o prédio prefere o silêncio. Lúgubre, impávido, segue sua vida decadente. Não responde, não se curva para um cumprimento, não oferece abrigo, não demonstra compaixão. Todos os prédios enfileirados. Aquele é o pior de todos. Insensível. A chuva desaba pesada.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Conto bem discretivo, eu queria escrever assim também, me ensina...
Parabéns pelo bolog.
http://dudve.blogspot.com
http://cartasintimas.zip.net

23:00  
Blogger Menina Marota said...

... uma história, que poderia quase ser para todos os prédios desabitados, sem alma, sem ruídos, sem cor, sem tom...sem Vida...

...porque a vida de muita gnte se resume nisso, viver sem Vida...

Gostei da história. Tem um certo encanto, mas deu-me secura na boca. Vou beber algo fresquinho e, quem sabe, voltarei para ler outras histórias...

Abraço ;)

16:29  
Anonymous Anônimo said...

gostei, gostei sim senhor.
Uma pitada de maldade, de suspense, de tudo o que se espera num conto como este.
e gostei do homem acinzentado.... ah sim.

beijo

Nefertari

03:46  
Blogger Fata Morgana said...

Fiquei a pensar em Paul Auster, mais precisamente "No país das últimas coisas"... Tem algo de decadente e moribundo, de sem cor do lado de lá e escruciantemente vivo do lado de cá. Um canto do cisne, a "voz" de quem bata a essa porta...?

Gostei muito.

00:37  
Anonymous Anônimo said...

Muito bom, viu? Me lembrou muito o Cai Fernando Abreu, especificamente o conto "Além do Ponto" que eu gosto muito. Com a diferença que o Caio começa a sua história com "Chovia..."

Voltarei!
Abçs!

02:09  
Blogger Cláudio Pedrosa said...

Esse conto é enfadonho, cansativo, tedioso, seboso como o suor goticulado, inerte, na testa dos vendeiros em dia de mormaço. Não tem nada a ver com o cheiro acolhedor das padarias; está mais para a náusea que precede o vômito, como o bafo que sobe dos esgotos nas esquinas que circundam os açougues de São Paulo... mas, acho que a idéia era mesmo não ser agradável, né?

14:34  

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