4.4.07

April in Paris

"Eu não conhecia o charme da primavera, nunca a tinha visto face a face". É a voz dolorosa de Billie Holiday que suspira, que tritura as palavras. Essa mulher, meu Deus, realça em qualquer canção a angústia do artista, incapaz de traduzir em sua obra a beleza que pressente, a poesia que enxerga de olhos fechados. "Eu não sabia que meu coração era capaz de cantar." Uma mentira de Ella Fitzgerald, precisa e extraordinária como sempre, acompanhada dos improvisos de Satchmo, o gênio. Esses versos se repetem, com Oscar Peterson, Charlie Parker, Frank Sinatra, Sarah Vaughn, tantos outros.

"Till April in Paris", diz a canção. Abril em Paris. Yip Harburg passou a primavera de 1932 em passeios no jardim de Luxembourg, não tenho dúvidas. "Os castanheiros em flor" e "as mesas sob as árvores" se gravaram em sua lembrança. Tão forte que precisou imortalizá-los, na letra que escreveu para a música de Vernon Duke. Versos impressionistas, simples que quase tolos, de um homem que relata seu instante de alegria, um momento cuja beleza lhe escapa.

Entendo muito bem o que diz a música. Abril, em Paris, atenta contra as limitações do senso estético. Nas árvores que ladeiam os bulevares, uma mudança lenta. Primeiro vêm os botões, como bolinhas discretas nas pontas dos galhos. Quase imperceptíveis, sem cor, nada mais do que uma variação no formato da madeira. Não valem um olhar de quem passa afobado, despenteado, atrasado, e logo se enfia no buraco do metrô.

Como pude não perceber a mudança? Quando é que aquela bolinha desprezível se tornou verde? de uma cor tão viva como jamais vi, o corpúsculo enrugado que resultará em uma meia-dúzia de folhas. Uma infinidade em cada galho, em cada árvore, em cada rua. Pontilhando o dia-a-dia, os caminhos, as esquinas.

Eu, toupeira humana, olho em volta, embasbacado. Uma surpresa a cada movimento. A cor está em todo canto. Abaixo dos galhos pontilhados em verde, os canteiros. Longas carreiras que pareciam, até então, tristes sepulturas de terra pálida. Agora, tão súbita, uma explosão asfixiante de pétalas e caules. Flores novas, folhas virgens, pinceladas de vida em vermelho, amarelo, branco, azul. Um coral que recitará, até princípios de novembro, sua ode anual à natureza. E então, obedecendo à sua finitude implacável, secará, tombará, morrerá, para mais um período de frio e trevas.

Como na canção, jamais conheci o charme da primavera. No Brasil, marcava o início o horário de verão, nada mais. O verde brasileiro é tão verde nessa época quanto em qualquer outra. Flores, sempre há. De tão evidente, a beleza brasileira intimida, às vezes. Aqui, a beleza brota como uma resposta à opressão do inverno, uma vitória daqueles que sobreviveram, uma ressurreição mitológica revivida a cada ano. A mística que cerca o equinócio é profunda, ancestral, dionisíaca. O movimento é patente. Mesmo nas metrópoles pós-industriais e cibernéticas, mesmo numa cidade que praticamente aboliu a neve, como Paris, ainda se vive submetido às circunvoluções da natureza. O europeu, que coisa irônica, é mais ligado à terra do que nós.

A beleza brasileira é tanta que se sufoca. E nos sufoca. Talvez seja por isso que temos tanta necessidade de abafá-la, construir sobre seus despojos nossas cidades deploráveis. A natureza brasileira é de uma exuberância extasiante, mas constante e inabalável, senão pela força dos machados e a reverência do concreto. Nossa beleza, às vezes, nos enche de vergonha, nos lembra nossa condição de pátria crua. Precisamos substituí-la por uma máscara de siso repugnante. Uma necrópole em movimento, São Paulo. Um organismo que alimenta seu próprio cancro, o Rio de Janeiro. Brasília, ângulos retos, vidas tortas e um lago de mentira no meio do deserto. Por quê? Não podemos aceitar nossa própria exuberância.

Nos auges de sua estupidez atávica, fizeram coisa muito parecida, os europeus. Mas quando entregaram suas cidades à insensatez destrutiva, seus espíritos não resistiram. Atiraram-se uns sobre os pescoços dos outros. Esses povos, para quem a beleza é um milagre, que lhe sorvem cada gota como a última esperança de alegria, não podem suportar a idéia de perdê-la em definitivo. Caso contrário, entregam-se à carnificina.

Que o fim do inverno tenha tanto impacto sobre mim, compreende-se. Cachecol e sobretudo são, para mim, meio passo rumo à cova. Mas os americanos que compuseram April in Paris, e a repetem à exaustão, conhecem perfeitamente as quatro estações, com até mais rigor do que os europeus. Se são atraídos por este mês especificamente em Paris, é porque algo de especial existe, de fato.

O quê?

Sou forçado a concordar com os versos vagos de Yip Harburg. O abril parisiense é uma força que se exerce sobre o espírito sensível. Van Gogh se exasperava por não conseguir expressar, pintando, o que sentia. E deveria ser estratosférico; expressão não falta a suas telas. Tento captar algo com minha câmera furreca, mas sei que nem mesmo a mais perfeita das Leicas poderia me satisfazer. Saio a caminhar. Entro nos parques, nas praças. Ladeio o Sena, observo os casais, os mendigos, os violões, as bicicletas. Ainda assim, não consegui extrair disso nem sequer uma postagem que reproduza a misteriosa vibração que se esconde nos troncos, nas nuvens, em toda parte. Nem um mísero poema, uma fotografia, nada. O que me resta é seguir, mãos nos bolsos, assoviando a música que, há sete décadas, alguém compôs para manifestar algo muito parecido com o que vivo. Assoberbado, mas conformado, invoco Billie Holiday, invoco Ella Fitzgerald, e mergulho nos brotinhos verdes.

April in Paris
Yip Harburg e Vernon Duke
.
I never knew the charm of spring
I never met if face to face
I never knew my heart could sing
I never missed a warm embrace
.
Till April in Paris,
chestnuts in blossom
Holiday tables under the trees
April in Paris, this is a feeling
That no one can ever reprise
.

I never knew the charm of spring
I never met it face to face
I never new my heart could sing
I never missed a warm embrace

.
Till April in Paris
Whom can I run to?
What have you done to my heart?

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16 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Olá Paulo,

Quem duvida que e Primavera seja a mais bela das estações...

03:42  
Blogger . said...

oi paulo, não conhecia seu blog ainda, cheguei aqui a partir do comment que deixaste no meu. foi uma grata surpresa, tens um jeito bastante peculiar e muitas vezes bem parecido com o meu de enxergar o mundo, de ver magia em coisas comuns, de perceber o encanto todo que a primavera, ou até mesmo outras coisas ainda mais simples como admirar casais, mendigos, violões ou bicicletas na rua podem ter.

passarei por aqui mais vezes, podes ter certeza.

ps: curiosa que sou....... como chegaste ao meu blog?

05:09  
Anonymous Anônimo said...

A primavera é mesmo um milagre. É impressionante ver as flores depois de um inverno rigoroso. As fotos estão lindas.

09:43  
Blogger Ivo Korytowski said...

Obrigado pelo comentário simpático deixado no Literatura & Rio de Janeiro. Quando abrir o centro cultural me avise - aliás avise antes, quando comprar o casarão, quero ir lá ver!

17:35  
Blogger Leila Andrade said...

Sensibilidade em estações, belo!
Flores sempre são indispensáveis.
Paulo, obrigada pelas palavras gentis lá na minha janela, volta sempre.
Gostou do www.baratos-afins.blogspot ? Participo um pouco também. Apareça por lá.
Bjos

17:42  
Blogger Leila Andrade said...

endereço correto:
www.baratos-afins.blogspot.com

17:43  
Blogger Renata Livramento said...

Olá Paulo!
Obrigada pela visita ao DD, volte sempre que quiser, será sempre bem vindo!
Lindas as imagens e a sua descrição da primavera em Paris. Deu uma vontade...
bj,

03:53  
Blogger Beth Blue said...

Paris na primavera é realmente maravilhosa e, acima de tudo, indescritível. Época de longas caminhadas pelas ruas, pracinhas e parques da cidade. Época de sentar em um dos inúmeros cafés parisienses e degustar um cappucino (ou cerveja) enquanto se observa a vida passar (e as pessoas). Uma das cidades mais lindas da Europa, sempre.

12:13  
Blogger Ed Wederson said...

Olá Inverso,
A primavera em Paris deve ser muito bonita, um dia ainda vou ver isso de perto.
Obrigado pela visita lá no nosso Boteco, volta sempre.
Quem nunca teve um dia de cão? Mas é como você disse, pelo menos eu não tomei chuva, já tive dias melhores.
Abraço,

13:58  
Anonymous Anônimo said...

Puxa eu nunca sonhei em visitar Paris.Mas depois deste texto, mudei de idéia.

15:33  
Blogger Elis said...

Paulo,antes de tudo,obrigada pela visita em meu blog.De onde será que vc veio,hein?Rs,rs,rs.Seja bem-vindo!!
Vim aqui e me deparo com a sua visão do "abril parisiense".Sabe,sinceramente,tb to encantada com as suas fotos e elas me trouxeram para minha visão do começo da primavera aqui nos EUA.Nunca tinha presenciado antes o florescer das lindas flores,as folhas surgindo aos poucos nas árvores...é como se a vida estivesse começando outra vez mesmo.Amei!!!
Apareça mais vezes!!!

19:40  
Blogger Gabriela said...

Paulo, que lindo!
Vc pegou esta beleza estonteante que está vendo, misturou com a sua e olha só! A sua infância arteira valeu muito pelo jeito.

Se alimente desta força de renascimento!

E me conta. muitas saudades?

19:54  
Anonymous Anônimo said...

quisera eu ser uma toupeira humana brasileira em paris. realmente, depois do inverno ver esta primavera é um presente dos céus...

05:34  
Anonymous Anônimo said...

Paulo obrigada pela visita em meu blog. Nao conheço Paris, terei o prazer de conhece-la em agosto.

20:35  
Anonymous Anônimo said...

April in Paris é uma das minhas músicas favoritas, e devo dizer que qualquer post que comece citanto Billie Holiday já disse bem a que veio!

08:39  
Blogger JLM said...

Que a alegria da Páscoa invada o seu coração e o daqueles a quem ama, irradiando luz para iluminar e fazer brilhar o mundo em que vivemos, enchendo-o de AMOR, SAÚDE, PAZ!!!

Feliz Páscoa!!!

15:19  

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