7.3.07

Estrasburgo, cidade de união e guerra


Quem parte de trem da Gare de l'Est, em Paris, vê aos poucos os antigos prédios à la Haussmann ficando para trás, substituídos pelos campos de Champanhe e as vilas das Ardenas. Ali, a França é mais França; é celeiro de pães, vinhos e queijos típicos. Essas paisagens não demoram mais de um par de horas para mudar inteiramente. Os telhados das casas se tornam mais pontiagudos, a arquitetura das igrejas escurece, as vilas se adensam. Os nomes das estações em que o trem pára quase nada têm de franceses.
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Estamos na Lorena, ou Löthringen, como se chamava a região quando fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico, que, segundo Voltaire, não era sacro, nem romano, nem império. Só germânico. Mas as mudanças ainda não acabaram: o trem sobe pelas escarpas dos Vosges, cujos pinheiros mais altos estão cobertos por uma fina camada de neve. Na descida, chega-se à Alsácia, uma das regiões mais extraordinárias deste extraordinário continente, que esteve no centro da terrível história de conflitos que marcou os últimos 400 anos de sua história.
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Em 1648, o cardeal Mazarin regia a França em nome do pequeno Luís XIV. Ao que parece, os clérigos franceses (esse, particularmente, era italiano) são ótimos em política externa, melhores do que os reis e presidentes. Assim, por ocasião da Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 anos, o esperto cardeal aproveitou para passar a mão numa pequena área fronteiriça com o que era na época o tal império germânico, conhecida hoje como Alsácia (Alsace em francês, Elsass em alemão e no dialeto local). Desde então, a pequena e bela região em torno de Estrasburgo (Strassburg em alemão, Strossburi no original, Strasbourg em francês) foi república independente, foi Alemanha e foi França, que é seu estatuto desde o final da Segunda Guerra Mundial. (A cidade, em si, só foi incorporada à França duas décadas depois.)
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Cidade nenhuma poderia ser melhor escolhida para sediar o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu. Após mais de três séculos pendendo entre alemães e franceses, Estrasburgo, a cidade-encruzilhada, segundo a etimologia alemã do nome, não perdeu suas características mais marcantes, que revelam o passado turbulento. Um ar medieval, a arquitetura germânica em estilo enxaimel, o dialeto, herdado da antiga tribo allamani e ameaçado de extinção.
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Nada de baguetes, nem cafés de esquina, nem bulevares. Ao contrário do resto do país, lá é possível sair de um restaurante plenamente satisfeito, após devorar um chucrute com salsichas e cerveja. Estrasburgo, a menos de vinte quilômetros do Reno e da fronteira alemã, guarda todos os traços de sua confusa história. O centro antigo consiste numa ilha delimitada pelos canais do rio Ill, afluente do Reno. Em suas ruas estreitas, livreiros francófonos, monumentos germânicos e uma divisão quase perfeita entre igrejas católicas e protestantes. Estrasburgo, como todo o continente, também sofreu com guerras religiosas nos séculos XVI e XVII, mas foi uma das primeiras cidades a encontrar a solução na convivência pacífica e tolerante; na entrada da região central, a igreja Saint-Pierre-le-Vieux, de arquitetura românica, se divide entre um templo católico e outro protestante, lado a lado.
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Para o turismo histórico, é quase a cidade perfeita. Sua catedral é uma das mais belas do período gótico, embora a construção tenha começado no século XI e a conclusão, embora só uma torre tenha sido erguida, seja obra do século XIX. Sua coloração rosada é típica do gótico tardio alemão, bem como a torre alongada e as efígies de antigos imperadores. No interior, um célebre relógio astronômico que atrai turistas aos milhares, com autômatos que representam as idades do homem, figuras que simbolizam os signos do Zodíaco e um porte imponente.
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Ao redor, o centro antigo, que dispensa apresentações: é a primeira região urbana a ser inteiramente considerada patrimônio da humanidade pela Unesco, e com razão. Trata-se de uma ilha que concentra edificações belíssimas, desde casas medievais até palácios neoclássicos. O sofrimento histórico resultou em um patrimônio invejável: Estrasburgo viveu o Renascimento alemão e o barroco francês. A notar, especificamente, a Maison Kammerzell e a Ancienne Douane.
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Atravessando as pontes do centro antigo, pode-se visitar a Petite France, assim chamada porque era o bairro da prostituição e, portanto, da sífilis. Ora, como todos sabiam naquela época, prostituição e sífilis eram coisa de franceses. Interessante é o fato de que, depois de tomar posse da região, os súditos de Luiz XIV não tenham se preocupado em alterar o nome do bairro.
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Mais adiante, vêem-se as quatro torres de pedra que guarneciam a entrada da cidade na Idade Média, entre as chamadas Pontes Cobertas, mas descobertas pelo tempo. É possível contemplá-las da barrage Vauban, uma ex-represa que abriga dezenas de esculturas das igrejas destruídas pelas guerras. Amontoadas, as belas figuras de pedra imploram por uma restauração.
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Não vou falar dos museus, teatros, óperas, do Parlamento Europeu. Acabaria produzindo um livro. Prefiro voltar à história; viajando para o lugar, é fácil observar os pontos turísticos. Mais difícil é descobrir o peso que eles carregam. Essa cidade, fundada pelos romanos para manter longe os bárbaros, sediou também a aurora da Idade Média. O Juramento de Estrasburgo, que dividiu entre os três herdeiros o império franco de Carlos Magno, é o berço comum da França, da Alemanha e de seus respectivos idiomas. O documento, em latim e nos dois então dialetos regionais do império, é considerado o primeiro texto escrito em ambas as línguas. Como se vê, esses países que tanto brigariam são, no fundo, um só.
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Mas a Alsácia é uma prova de que a união de sangue não basta para garantir a paz. Tomada pelos franceses no século XVII, voltaria ao meio germânico após a guerra Franco-prussiana de 1871, que marcou o surgimento da Alemanha como nação unificada. Nada teria acontecido, não fosse a irresponsabilidade de Napoleão III, "O Pequeno", segundo Zola, que não aceitou os termos de rendição originalmente impostos por Bismarck, exigindo um pequeno naco do território. Após o cerco de Paris, episódio traumático para os gauleses, a derrota era ainda mais inevitável e o butim, muito maior: Bismarck não aceitaria menos do que toda a Alsácia e toda a Lorena.
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Assim ficaram até a 1a Guerra Mundial. A derrota alemã devolveu à França ambos os territórios, num episódio celebrado por um famoso discurso de Georges Clemenceau, primeiro-ministro à época. Foi uma atitude irresponsável, porque esqueceram de pedir a opinião dos habitantes das duas regiões, que jamais haviam manifestado, em suas eleições locais, qualquer vontade de retornar ao seu antigo país. Somado a outras cláusulas injustas do tratado de Versalhes, que encerrou a guerra, o episódio contribuiu para precipitar o segundo conflito, duas décadas depois, em que a Europa e o mundo inteiro estiveram à beira do colapso, e a Alsácia esteve novamente em mãos alemãs.
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Todo o sangue derramado pela sua posse atesta a riqueza da região. Acredita-se que Gutenberg possa ter desenvolvido sua prensa em seus arrabaldes. A Marselhesa, hino francês, foi composta dentro de um dos prédios da cidade antiga. Mozart tocou no órgão de uma das igrejas. Hoje, a Alsácia é uma das regiões mais industrializadas da França, talvez pela proximidade com o mercado alemão. A cegonha, símbolo daquela terra produtora de um vinho muito apreciado, pode ser vista nos desenhos do artista local mais famoso, chamado Hansi. O desenhista, apesar do nome claramente germânico, era um francófilo renhido, que representava sempre sua cidade coberta de bandeiras em azul-branco-vermelho.

Está para ser inaugurada uma linha de TGV naquela direção, provavelmente a última das áreas mais importantes da França a ser contemplada. Quem tiver interesse em conhecer a Alsácia e o Sudoeste da Alemanha na primavera, a começar dentro de um mês, pode aproveitar a nova e rápida oportunidade. É a melhor época para ir: o povo de lá tem um gosto especial pelas flores, que transbordam de todas as sacadas a partir de abril.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Cultura 10. Oarabpens pelo texto. Me deu vontade de conhecer a cidade.

03:37  
Blogger Sorriso largo no rosto said...

Que fotos maravilhosas!

05:49  
Anonymous Anônimo said...

Aprendi um monte de factóides qu desconhecia. E sempre me referi à região como Alsace-Lorraine. Não sei por quê.

06:27  
Anonymous Anônimo said...

Bom, você tá bem Napoleão da literatura, hein? Escreve sobre tudo e maravilhosamente? Suplemnetos de Viagem do Brasil, fiquem atentos!!!!

09:15  
Anonymous Anônimo said...

:-) Lindas, as fotos. Amei Estrasburgo, cidade linda. Voltarei pra ler tudo com mais calma depois. Baixei aqui sem querer... Já indo dormir. k

04:50  
Anonymous Anônimo said...

Muito legal. Parabéns. Além da aula sobre a história da região ajuda a esclarecer um pouco mais as pessoas que desejam viajar e conhecer a cidade.

05:28  
Blogger Flora Meira said...

Adorei a descrição da cidade ... especialmente porque me reportou de volta a esta cidade em pensamentos! Morei um ano em Strasbourg, é ralmente uma cidade de conto de fadas!! Riquissima em cultura, história e qualidade de vida!
Parabéns pelo texto!
Flora Meira

04:14  

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