20.6.06

Seção Dedo de Prosa: Imagens de um seqüestro

Imagens de um seqüestro

Assim, eu fui agarrado de surpresa por duas sombras de cara amarrada. Elas eram enormes, muito mais fortes do que eu. Não tinha como resistir. Fui arrastado e atirado no branco traseiro de um carro de luxo sem maçanetas nas portas de veludo. Tive um ataque de riso quando entendi que estava sendo seqüestrado, e esse ataque só fez aumentar quando finalmente me dei conta de que isso não tem nada de engraçado. O carro arrancou como um acorde dissonante, e eu berrei para dentro. Olhando pelas janelas, vi os campos, onde elefantes devoravam formigas. Uma cena sanguinolenta. As sombras, sempre me cercando, não olhavam pela janela. Só fumavam seus segredos e olhavam para o tudo, soltando baforadas de uivos que cheiravam a tempo. Comecei a ficar enjoado. O carro seguia pela existência, fugindo dos engarrafamentos de fluidos. As rodas pareciam não tocar o chão, como se temessem o contato com a realidade – a realidade concreta, naturalmente. Engoli o destino em seco.
Soube de uma hora para outra exatamente aonde estava sendo levado. Juro que quis escapar – mas as sombras bocejavam. Quis barganhar, quis implorar, mas acabei me cansando de falar sozinho. A luta pode ser uma coisa muito fatigante, dependendo das circunstâncias. É por isso que fui obrigado a me entregar e ser flutuado rumo à vibração silenciosa cujo nome não me podia ser revelado e talvez nem existisse. E o carro chegou, soltando seu longo trítono agudo. Meu coração se fez cerâmica. Fui ejetado para a poeira e perdi o carro de vista. Já devia andar lá pelas nuvens. Continuei com os olhos fixos no chão enquanto me punha de joelhos. As minhocas insolentes faziam gestos obscenos. Senti-me diminuído na minha posição de bípede. Isso assim não pode ser! Levantei-me de um suicídio e olhei bem à frente, já sabendo o que os meus olhos tontos encontrariam.
Como previsto, lá estava ela. Uma edificação de fachada inocente. Banhada do alto por um sol morno e algo sensual. Sedutora em sua ameaça. Bela como uma casa de veraneio. Palpitante como a idéia de um lar. Eu, porém, não estava encantado como me sentia. Estava aterrorizado como sabia. Cambaleei em sua direção como para um regaço de mãe esquecida. Verti vergonhas porque aprendi que aquela casa era quem me conhecia, e não o contrário. Aquela era a casa em que gozei minhas humilhações. Sádica! Aquela casa, ela se assentava sobre as vigas da minha fraqueza. Eu vi, desenhadas nas paredes, como se o tempo se recusasse a passar, as delícias dos meus sofrimentos. Tudo isso, sim, gravado com sal e enxofre em cada tijolo da construção. Minha dor, a própria, era a massa que untava aquela infinitude de peças sem nome que apenas quando unidas tomavam o significado doentio de uma casa.
Quem mora aí? O fogo. E eu estou enterrado em suas lajes. Meu corpo treme e minha voz se quebra: fico feliz de saber que os passarinhos podem construir ninhos ali. Na sede das minhas trevas.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Será que algum dia nos identificaremos com o conceito de "casa"?
O que entendemos por "fogo"? Chamas, ou ódio?
Astrevas que invadem o inconsciente numa luta desigual. Hoje sinto-me mal, vazio...

17:34  
Blogger Ana Caruso said...

Infelizmente o texto se refere à morte do meu tio, sendo que na verdade o que escrevi foi tentando transformar aquilo em algo mais assimilável para meu universo.

De qualquer forma, gostei desse teu ultimo texto, e acho que atravez dele vc deve ter entendido o que eu quis dizer acima...

Abraço

16:16  

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