23.11.07

Esse povo boa-praça


Os etruscos eram um povo bacana. Não vou declarar aqui que eram franciscanos ou carmelitas descalças, afinal, todo mundo sabe que gente pacífica não dura muito neste mundo tão hostil. Que dirá no mundo antigo, em que os povos tiravam um estranho prazer de degolar, violar e saquear uns aos outros. É evidente que os etruscos também sabiam dar seus cascudos. Os primeiros romanos, por exemplo, levaram sua parte, e não foi pouco. Roma foi fundada em território etrusco (mais ou menos), seus primeiros reis eram etruscos, assim como um terço de sua população. E como ainda não havia Sila, César ou Trajano, a prudência lhes comandava obedecer aos primos poderosos do norte. Etruscos mandavam, romanos baixavam a cabeça, e ponto.

Também não eram grandes exemplos de magnanimidade, esses aí. Ao lado dos cartaginenses e dos gregos, foram grandes mercadores do Mediterrâneo. Após uma série de batalhas, para evitar mortes e prejuízos desnecessários, os três povos assinaram um acordo que dividia o mar em áreas de exclusividade. Mais ou menos como fazem as máfias nas grandes cidades de hoje, e também, mais ou menos, como portugueses e espanhóis fizeram com o mundo inteiro no século XV. E, como em todos esses exemplos, quem cruzava a linha, mesmo sem querer (por causa de uma tempestade, digamos), acabava sem barco, sem dinheiro e, eventualmente, sem cabeça. Teve muito descendente de Ulisses que pereceu em casos assim. Esse pessoal não estava para brincadeira quando havia ouro e prata em jogo.

Mesmo assim, sustento que os etruscos eram um povo bacana. Tenho dois motivos para tal. O primeiro pode se verificar em qualquer um dos muitos museus etruscos espalhados pela Toscana, bem como nos departamentos de etruscologia (sim, isso existe) dos maiores museus do mundo. A forma como aquela gente encarava a morte é invejável. Nos sarcófagos, escavados de tumbas em forma de casas, a decoração evoca grandes celebrações e banquetes, com música e dança. Os frisos são ornados de pássaros e flores, e os defuntos, representados nas tampas, não estão estirados como, bem, cadáveres, conforme vemos em sarcófagos medievais e até modernos. Os etruscos se faziam esculpir deitados de lado, face apoiada pelo punho, segurando um prato à altura do ventre, como se fotografados em pleno festim.

O ossário etrusco lembra uma urna de cremação, tampada com um busto (que parece ser) do morto. A urna fica sentada numa espécie de poltrona de metal que parece muito confortável, pelo menos para o ocupante. É curioso: o busto parece sempre sorrir. Um sorriso tranqüilo, leve, longe de histérico. Um leve alçar dos lábios. Nada parecido com os bustos de grandes homens que encontramos em galerias helenísticas, latinas ou contemporâneas. A caixa de ossos etrusca, que lembra uma pequena pessoa sentada, parece contente com a morte. Tem lá suas jóias, sua poltrona, e tudo está bem. É difícil não simpatizar com um povo desses. No Louvre, por exemplo, existe um enorme sarcófago etrusco, o maior que já vi, em que estão representados um homem e sua esposa, deitados de lado, como sempre. Têm uma expressão sorridente que me pareceu um tanto quanto sacana. Essa é, claro, uma impressão pessoal. Mas a leveza que a peça transmite é universal, a quase alegria diante de uma obra de arte funerária.

A segunda característica que me obriga a ter simpatia pelos etruscos nada tem a ver com morte. Pelo contrário. Observando suas inscrições em pedra e lendo brevemente sobre sua história, pude concluir que se trata de um povo bastante pragmático, o que não é, em si, uma qualidade; mas certamente o será o fato de que eles sabiam reconhecer quando estavam por baixo. Sem crise. Senão, vejamos. Lá pelo terceiro século antes de Cristo, a coisa já não ia bem para o lado da Etrúria. O poder naval, depois de algumas guerras (o tal acordo não durou tanto), era quase nulo. Os gregos se espalhavam feito pólen pelas ilhas do Mediterrâneo: fundaram colônias na Sicília, na Córsega e até no que hoje é o sul da França. Era a chamada Magna Grécia, antecedente do que seria o período helenístico. Pois os etruscos, que não foram invadidos, nem colonizados pelos helenos, não tiveram dúvidas. Adotaram os princípios artísticos da Hélade, passaram a escrever no alfabeto grego, começaram a representar nos monumentos as melhores passagens da mitologia do Olimpo (por algum motivo, o episódio preferido era o de Polinice e Etéocles). E não se fala mais nisso.

Mais um pouco, a situação piorou novamente. Celtas atacavam pelo norte, romanos se empolgavam pelo sul. A capital desses últimos, por sinal, foi saqueada por Breno, líder gaulês ancestral de Asterix, com a ajuda de alguns reis etruscos. Os futuros donos de meio mundo não gostaram nem um pouco. Enfezados, decidiram dar a volta por cima. Expulsaram seu último regente e, de quebra, iniciaram a construção do maior império do Ocidente. Os etruscos se viram enfraquecidos, empobrecidos e sufocados pelas novas grandes potências. Não faz mal. Bastou-lhes começar a escrever em latim, venerar Júpiter e Marte, e a vida continua, como sempre.


Mais vale associar-se ao poder alheio do que insistir numa força que já se perdeu? Não sei se concordo; mas, enfim, foi o que fizeram. Assim sumiram os etruscos. Não foram dizimados, nem exterminados, nem propriamente conquistados, uma vez que a maior parte de suas cidades se submeteu a Roma sem grandes conflitos. Eles apenas aceitaram o fim. Aculturaram-se Não é, a bem dizer, um verdadeiro exemplo de amor próprio, orgulho ou grandiosidade. Com base na facilidade com que incorporaram a própria decadência, podemos dizer, com o máximo de benevolência, que o povo etrusco era boa-praça.

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