10.10.07

Instrumentos de vingança

- Eles aproveitam. Revendem mais barato pra quem faz a fila em cima da hora.
- Como é?
- Puta sacanagem, não acha?

Mais do que uma sacanagem, ele recebeu a informação como agressão direta. Dolosa. Sentiu mesmo uma pontada no estômago, como se uma gastrite viesse de lhe nascer, assim mesmo, de uma hora para outra, como efeito de uma descoberta que o revoltou para além de sua alma.

A portadora das más novas era uma antiga amiga, com quem se encontrara por acaso. Não a via há anos, desde que uma tentativa de seduzi-la fracassara tão vergonhosamente que resultou em rompimento definitivo. Por causa do episódio infeliz, ele sentia vergonha só de se lembrar da moça. Ela, em compensação, perdera o amigo sem ter culpa maior do que uma forma de se expressar talvez um pouco dura e direta além da conta.

Naquele momento, porém, não houve como desviar o caminho. Irritado, nervoso, a nuvem de ódio que envolvia seu raciocínio bloqueou a capacidade de reconhecê-la, mas não pôde impedir um olhar furtivo para uma bela e até então anônima figura feminina que cruzava seu caminho. Foi ela que o reconheceu, e gritou seu nome com a alegria de quem reencontra o melhor amigo. Como se o afastamento tivesse sido coisa normal.

E, de fato, ela estava linda, ainda mais do que antes. Os anos lhe fizeram bem; a ele, só fizeram mal, segundo sentia. A disparidade, por injusta, o magoou. Respondeu ao cumprimento apenas para não revelar seu desconforto, esforçando-se por aparentar naturalidade.

A fortuna lhe concedeu um alívio quando ela perguntou o que o trazia àquela área. Era a oportunidade de que ele precisava para descarregar sua irritação e disfarçar o mau jeito. Contou que tinha vindo ao teatro, ali ao lado, na tentativa de trocar as entradas que havia comprado para uma peça, com data para dali a duas semanas.

Como sempre acontece, alguém inventara um jantar importante e o marcara para a mesma noite. É o dito imprevisto, a que todos estão sujeitos. Seria, é fácil concluir, necessário trocar os ingressos. Uma alteração simples e pouco traumática. De um dia para o seguinte, nada mais, para um espetáculo que fazia até um certo sucesso, mas jamais se apresentava com lotação esgotada.

Mas não é assim que as coisas funcionam, quando estão envolvidas pessoas de mentalidade estreita. A moça que o atendeu foi grossa: não o deixou terminar de expor a questão; e peremptória: ao interromper seu discurso tão humilde, sentenciou, através de uma frase padronizada, que os ingressos não são reembolsáveis, nem alteráveis. Nem sequer se deu ao trabalho de acrescentar que sentia muito. Apenas fez avançar o próximo da fila.

Mas ele não quis se dar por vencido assim tão rápido. Barrou o próximo e exigiu falar com um superior. A moça enrubesceu, pulou da cadeira e foi buscar sua gerente, uma mulher de baixa estatura, meia-idade e ar de mal-amada. Era tão grosseira e peremptória quanto a subordinada. Repetiu o decreto. Nem reembolsável, nem alterável. Ele começou a se exaltar. Era um cliente, ora bolas. Ela ameaçou chamar a segurança. Foi por pouco que ele não cedeu no ato, temendo causar um escândalo. Depois, iluminou-se em sua cabeça a percepção de que um escândalo seria prejuízo quase certo para o estabelecimento.

- Chame a segurança, então! É mais cômodo do que fazer seu trabalho!

Bem foi chamada, a segurança. Dois sujeitos enormes e carecas, de terno negro, que o atiraram para fora com uma gorjeta de cascudos e pontapés.

Com dores e hematomas pelo corpo, vinha agora sua antiga musa lhe dizer por que não era possível fazer a mudança nos ingressos: os lugares não-ocupados são vendidos novamente, a um preço bem mais baixo, para estudantes e outros sofredores, que se estapeiam para entrar na peça que já vai começar. Que aproveitadores!

Como era de esperar, o novo dado o enfureceu. Sua cólera transbordou em palavrões de vasto repertório, acompanhados de chutes repetidos no tronco mais próximo. A cena deve ter sido ridícula para os demais transeuntes. E um pouco assustadora. Muitos se afastaram, desviando do caminho. Só a amiga, que conhecia sua personalidade, não reagiu além de um alçar de sobrancelhas desdenhoso.

- Eles vão ver, eles vão ver, eu vou me vingar! - Ele pronunciou por entre os dentes, exibindo na mão direita, a meio palmo do rosto dela, os ingressos amassados por sua fúria.
- Como? - Ela se mostrava tão impávida, mãos nos bolsos e tudo, que sua atitude só contribuía para deixá-lo ainda mais irritado.
- Ainda não sei. Vou pensar. Lhe juro.
- Pago pra ver.
- Paga como?
- Não sei. Vamos ver o que você vai fazer, aí eu penso.

Assim se fez. Eles se separaram, e se reencontraram no mesmo lugar, no mesmo horário, duas semanas adiante. A noite fatídica. Ele pensava que ela não estaria lá, que teria esquecido. Passara duas semanas planejando, mas não tivera idéia que parecesse digna, e só compareceu porque não queria lhe dar a covardia por mais um motivo para desprezá-lo como homem.

Ela tinha, com efeito, se esquecido inteiramente do assunto, depois de tantos dias passados. Mas era seu caminho habitual de volta do trabalho. Ela estaria ali do mesmo jeito, como todo dia. Lembrou-se de tudo quando o avistou. Chovia, mas ele não considerara carregar um guarda-chuva, tão nervoso estava ao sair de casa. Sua condição era digna de lástima, ensopado e tremendo de frio. Mas ele sorriu, honrado pela sua memória, quando ela lhe perguntou o que ele tinha bolado. Quem diria! Ela se lembrava!

Mas ele não tinha o que propor. Estava preparado para se atirar no saguão do teatro, berrando feito um lunático, só para não privá-la de um espetáculo que vinha esperando há duas semanas. Mas ele já sabia de antemão que ela não se deixaria conquistar por uma atitude, no mínimo, pueril e condenável. O desespero não seria de grande valia. Talvez, admitiu para si próprio, fosse mais digno reconhecer o fracasso, simplesmente, e convidá-la para um aperitivo. Mas antes que ele pudesse abrir a boca, avistou a salvação.

Dez passos adiante, um casal de mendigos se apertava debaixo de uma marquise, tentando escapar da chuva, manter-se aquecidos e, milagre, dormir. Para ajudá-los, uma garrafa de vinho já quase enxuta. Era o plano perfeito. Ele se aproximou do casal. A primeira impressão que teve foi o mau cheiro. Vinha deles. Tanto melhor. Sacudiu o homem. Ele não acordou. Foi necessário abafar um princípio de asco e repetir o gesto, até sentir o bafo de álcool e perceber o movimento agressivo da boca em que faltavam alguns dentes.

- Que é, caralho?

A mulher também já começava a se agitar, despertando. Praguejava contra a vida. A outra mulher, a que era jovem e bela, mantinha-se a uma distância segura, incrédula, torcendo o cabo do guarda-chuva como se fosse uma peça de pano.

- Tenho uma coisa pra vocês. Estão com frio? Sei de um lugar pra vocês dormirem por mais de três horas. É quentinho e escuro. Que tal?

A mulher, revolvendo sobre o próprio corpo, afirmou repetidamente que aquilo era mentira, mentira, mentira. O homem, coçando o cabelo ralo das têmporas com suas enormes unhas amareladas e aneladas de sujeira, produziu uma careta de indecisão.

- Quer idéia melhor? Não existe! - Para convencê-los, acrescentou à proposta uma nota de dez. Novinha em folha, quase brilhante.

Foi o argumento perfeito. Dois pares de olhos salivaram. Os dois desabrigados se ergueram sobre os pés, com suas vestes rotas e a pele manchada. Pelas rugas do rosto, poderiam ser octogenários. Eram magros, desengonçados, pigarreavam e fungavam sem parar. Por um momento, ele chegou a sentir que se aproveitava de duas pessoas como se fossem seus brinquedos, meros instrumentos de sua vingança. Mas o olhar da mulher de hálito perfumado, às suas costas, removeu qualquer possibilidade de desistência.

Esticou o ingresso para o par de pobres-diabos. Apontou a entrada do teatro. Eles se puseram em marcha, capengando lentamente. O que aconteceria, uma vez que chegassem? Seriam barrados? Que escândalo! Aquele teatro não tinha medo de escândalos, mas, naquele caso, sofreria um processo que poderia colocar em risco sua existência. Fora a perseguição da imprensa. Então eles entrariam, assistiriam ao espetáculo, incomodariam o público? Quem sabe? Era o que ele mais desejava. A amiga se aproximou, boquiaberta.

- Isso que você fez foi de uma maldade!
- Eu sei. Mas foi a única vingança que consegui imaginar.
- E agora?

Ela sorria com um brilho nos olhos que ele jamais presenciara. Pelo visto, ela não tivera o mesmo lampejo que ele, sobre aproveitar-se de dois seres humanos. Tanto melhor. Ele sentiu que o espírito lhe retornava.

- Agora, eu estou com frio. Vamos tomar um café, e lá você pode me dizer como vai cumprir a promessa.

Foi ela que, na manhã seguinte, lhe apontou a chamada no jornal: "Casal mantém relações e interrompe peça". Ele riu ao ler o título. Sentiu-se um vencedor, um esperto. A matéria seguia. Grande parte da platéia do Théâtre du Rond-Point acreditou que a cena de sexo fazia parte do espetáculo. Alguns pagantes, pudicos ou elitistas, ergueram-se e partiram. A cena foi interrompida, os atores se paralisaram, contemplando a cena insólita. Só com a entrada dos seguranças, talvez os mesmos homens enormes e carecas, ficou claro que nada daquilo estava incluso no preço do ingresso. Os mendigos espernearam, gritaram, praguejaram, morderam seus assaltantes. Em vão. Foram expulsos da sala. Depois, chegaram policiais, e os levaram em cana.

Estavam presos. A vingança não poupara o teatro, é certo. Mas os maiores punidos foram os dois sem-teto. Terminada a leitura, ele suspirou, tomado de remorsos. Ergueu os olhos para a mulher à sua frente, cuja pele macia brilhava, refletindo do sol que entrava furtivo pelos vãos das cortinas. E imediatamente os baixou novamente, envergonhado do que fizera, arrependido de suas motivações. Considerou ir até a delegacia e pagar a fiança do pobre casal. Era o mínimo.

Ela percebeu que algo não ia bem. Seguindo sua intuição, levou a mão até seu queixo e puxou a enorme cabeça pendida com a delicadeza das sedutoras. Encarou-o sorrindo, doce, cândida, de uma forma como sabia não permitir defesa.

- Que foi? Algum problema?
- Eu me sinto mal -, ele explicou. - Pra me vingar do teatro e pra impressionar você, acabei cometendo uma injustiça. Eles estão presos por culpa minha. E são inocentes. Eu me sinto muito mal.

Ela respondeu com um gesto da mão, como quem afasta maus pensamentos da cabeça dele, e uma piscadela.

- Esquece isso. Na prisão, eles não vão passar fome, nem frio, nem vão pegar chuva. Aposto que vão até preferir. E você, trate de aproveitar o momento.

O argumento tirou de seus ombros um peso que lhe parecia uma tonelada. Às vezes, a mentalidade pragmática das mulheres é redentora.

PS: Esta história é quase baseada em fatos reais. Qualquer semelhança de nome é quase coincidência.

4 Comments:

Blogger Bruno Alvaro said...

Ótimo texto, mas aproveito para, em atraso, comentar sobre o "Um sonho em São Paulo":

Rapaz, muito bom, muito bom mesmo... estuo lendo pela segunda vez. Nem sei o motivo, mas vira e mexe dou uma revisitada em textos que gosto. Coisa boa isso. É como ler Dom Casmurro pela décima vez. Não, não... não estou dizendo que o texto é Machadiano, o que também seria um elogio, eu acho. Mas é uma coisa ainda da minha infância: reler o que gosto, mesmo que eu leia sem olhar!

Forte abraço na nossa douce France cher pays de mon enfance!

16:25  
Anonymous Anônimo said...

"Instrumentos de Vingança" humaniza o olhar sobre o objeto do escritor: é gente humana, falha, fraca e insegura. É gostoso de ler algo assim, quando não se tem a pressionar, de dentro pra fora, esse vetusto sentido de ter tudo no politicamente correto (mentalidade cuja apologia, aqui, atribuo aos 'matininhas' da folha de são paulo recente). Mas o que mais me impressionou foi o manifesto contra essa bobagem de proibir o assentamento do oblíquo em início de frase ("Lhe juro"). Me alinho, desde já, a sua Senhoria.
Abraço
Sidney Giovenazzi

11:39  
Blogger marilia said...

Menino, vc escreve bem.Muito bem! excelentes textos( li o sonho tb, e o mau comerciante...).
Parabéns!
Um abraço

22:59  
Anonymous Anônimo said...

Foi escrito com Excelência. Continue assim rapaz.

03:05  

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