27.10.06

Panela de pressão apitando em desespero


A Europa carrega nas costas o peso de todas os crimes da História. Isso é uma verdade que pode ser verificada em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos do mundo. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

O que restou do banho de sangue foi uma Europa admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia...), não é uma burrice aparelhada de museus. É o continente que inventou o humanismo, mesmo que isso tenha envolvido o Terror em alguns momentos. Foi a primeira parte do planeta a romper definitivamente com a aristocracia, a disseminar os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa. Mais até do que os EUA.

São coisas fantásticas, se comparadas ao que conhecemos no Brasil: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Na Alemanha muito mais do que na França, claro, mas mesmo assim, nada que se compare com a irresponsabilidade brasileira. A cultura européia, mesmo com toda sua arrogância e xenofobia, é a mais aberta do mundo. Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim são os franceses que mais de dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações. Os franceses e, claro, os europeus em geral. No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: "no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y". Já o europeu discute assim: "Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México...". O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas por algum motivo que não sei explicar no nível individual, apenas no social, eles não acham que seja perda de tempo; realmente absorvem aquilo e é útil para eles (eu também estudei, na escola brasileira, as populações e relevos praticamente do mundo todo. Mas não lembro de quase nada, nem entendia por que estava estudando aquilo).

Em resumo, a cultura européia é, sem dúvida, a mais aberta, cosmopolita e atraente do mundo. Eles são capazes de absorver e aproveitar influências de toda parte, sem jamais deixar de serem quem são, com a tradição da cultura européia e tudo mais. Dificilmente alguém vive aqui e não incorpora traços muito fortes do modo de ser deste antigo continente tão cheio de culpa, mas também de honra.

Mesmo assim, estou assustado. Há um ódio latente, difícil não notar. Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provence ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Não é uma questão racial, nem social, nem histórica. É puramente religiosa. Todos odeiam os "arabes" (leia-se arráb), os muçulmanos. E os muçulmanos odeiam a todos, sejam hindus, ateus ou judeus, sob a sigla "cristãos". Vivem em guetos mais ou menos afastados dos centros urbanos, não apenas porque foram atirados lá pelas autoridades do país, mas também porque não querem se misturar aos demais.

Alimentei por muito tempo a ilusão de que a presença em um mundo aberto como o europeu abriria também o pensamento das colônias verdadeiramente medievais em que se transformaram as comunidades islâmicas da Europa. Isso é verdade em apenas alguns casos. Durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível. Fora da sala de aula, isso não acontece. Os grupos islâmicos se tornam apenas mais herméticos. Recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno.

Isso é ruim, mas não é o que me assusta. Minha maior preocupação é com o lado inverso. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante. Não apenas as populações medievais islâmicas não se abriram em contato com a cultura vanguardista da Europa, como os próprios europeus estão se fechando cada vez mais, ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e (graças a Deus) superados.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para loiras de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos. Quando o primeiro-ministro chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas "de boa vontade" mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. É a concretização do que o governo Bush chama de "embate de civilizações". Só que entre vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô, mas fazem questão de não afrouxar as convicções para melhorar a convivência. Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não parecem ser tão fortes quanto mereciam. Nem mesmo aqui. Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue.

16 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Meu, Deus... que texto bem articulado... faz pensar... Bom, tomara que o tempo possa afrouxar essas relações e que uma guerra civil ou religiosa não aconteça.
Gostei de ter voltado. Nunca me arrependo de passar por aqui.
Abraços!

11:47  
Blogger marcia cardeal said...

gostei disto tudo aqui. voltarei sempre! abraço,

21:19  
Anonymous Anônimo said...

Paulinho vc é jornalísta?
Ah vou te colocar na minha lista, posso?
Hã?

22:51  
Anonymous Anônimo said...

Olá Paulo, acho que enquanto os europeus estavam se abrindo os muçulmanos estão cada vez mais fechados e fazendo grandes alardes por qualquer coisa o que provoca medo naqueles que os aceitavam. Não sei como eles não percebem que estão piorando a discriminação dos não-islâmicos em relação a eles... Acho que eles mesmos estão plantando a semente para essa guerra. Não concordam com nossos custumes e tentam sempre impôr o deles... Não tenho nada contra eles ou pessoas de qualquer religião ou cor, mas acho que devemos ter respeito mútuo entre todos, não é mesmo?! Tb estou com medo dessa guerra, mas esperando que ela não venha =)

Beijinhos e obrigada pela visita ao Caravela!!! Vou te adicionar lá!

23:08  
Blogger Maitê Mendonça said...

Olá Paulo!

Valeu pela visita.

POis é, o maior genocídio da história foi promovido pelos europeus, na América. Dizimaram maias, incas e astecas. Um horror...

Abs

00:29  
Anonymous Anônimo said...

A cada dia o pavio fica mais curto e carga de pólvora bem maior e rezar não adianta mais, tudo começou muito lá atrás, há tanto tempo que se perdeu o foco, o rumo, as estribeiras...
Culpas? Muitas! mas nem elas amenizam as dores do homem, tomara esse sangue coagule e o banho não se realize.
Obrigada pela visita, gostei do seu espaço e nem parece que não sabe lidar com html[eu também não sei,rssss]
ótimo domingo
beijossssssssssssss

03:50  
Anonymous Anônimo said...

Nossa que texto com embasamento. Vejo isso também..mas vou mais longe: vejo a reação do europeu não só contra o árabe , muçulmano, mas contra quase todos os imigrantes. Acho que estamos próximo de mais uma banho de sangue na civilizada Europa

10:48  
Anonymous Anônimo said...

G E N I A L!! Maravilhoso o seu texto! Deveria ser traduzido para todos os idiomas europeus e publicado nos principais jornais dos seus respectivos países. parabéns!

12:51  
Anonymous Anônimo said...

Cara! Que texto...
Gostei muito daqui, voltarei outras veses.
Valeu pela visita lá no meu blog!

Abraços

19:51  
Anonymous Anônimo said...

Já disseste tudo eu aplaudo à inteligencia e coragem.

14:34  
Anonymous Anônimo said...

E nós, aqui no Brasil, temos a visão de que a Europa é um paraíso, mas é um lugar, com seus problemas e suas revoltas. Gostaria muito de conhecer a Europa, mas aquela calma, bonita, cultura, sem guerras. É sempre a melhor né? Obrigado pela visita, vou voltar ;) abração.

17:23  
Anonymous Anônimo said...

É ... o mundo anda mesmo meio panela de pressão. Compactuo com sua visão real do clima aí. É um prazer recebê-lo no Rio daqui. Mergulhe mais vezes lá. Eu virei cá. Riodaqui/abraço poético/Paulo Vigu

02:48  
Blogger Lua em Libra said...

Texto lúcido, meu caro. Não é essa a Paris que eu sonho. Mas, se for assim, ainda vou vender minhas flores nas calçadas. Abraços, obrigada pela visita.

02:51  
Anonymous Anônimo said...

Deus salve a rainha e o povo brasileiro. Aproveitando...
Achou que ficou livre das campanhas eleitorais? Santa inocência Batman!
Estou participando da escolha do Blog do Trimestre da Blog News então, se gosta do blog, me ajuda lá. Prometo apenas uma campanha por mês ;-) www.crisb.zip.net e clique no link.
Beijão.

21:21  
Anonymous Anônimo said...

Paulo, de acordo com as idéias no seu texto comecei a pensar no fortalecimento das economias da Espanha, França, Itália, Alemanha, Suíça, Holanda e outros que graças ao trabalho, tenacidade e esperteza, se tornaram fortes tecnologicamente, a tal ponto de terem trabalho braçal à vontade que os nativos destes países não se dão ao luxo de executar o que abriu desde o fim da segunda guerra mundial, centenas de milhares de empregos para portugueses, espanhóis mesmo, turcos, alemães orientais, búlgaros, húngaros e etc, etc.
O custo de vida se tornou tão caro que o crescimento demográfico zerou em certos países, que corriam o risco de extinguir-se; nestes a população cresceu à custa dos imigrantes e seus descendentes, que uma vez “nacionais” ainda se mantém com suas filosofias e religiões de origem, fanáticos e fundamentalistas de 700 anos. Os árabes vem de séculos de exploração de suas riquezas sob o peso das botas, troar dos canhões e baioneta calada; ninguém esquece isto; veja que os judeus lembram constantemente do holocausto perpetrado pelos nazistas; aqui em baixo na Bolívia está seu povo dando o troco pela exploração multi-centenária; se lembrarmos do estanho, do cobre, da prata, do ouro, roubados na América do Sul e transformados em riqueza pelos europeus e atualmente, americanos, teremos que tratá-los com carinho. Seu post incita muitos metros de considerações; voltarei. Obrigado pela visita e um forte abraço.

21:58  
Blogger Guilherme Roesler said...

Paulo, muito obrigado pela sua visita e pelo seu comentário. Do mesmo modo, tambem gostei muito de seu blog "cor-de-burro". Vive realmente em Paris? se sim, meus parabens. Tomo um cafá por mim e aproveite. Tem um novo post la no CG em que entrevistei o escritor Janer Cristaldo, a respeito da Europa, democracia e literatura. De uma passadiinha lá. Ira gostar. Abraços, GR

20:25  

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