4.8.08

Again and again

Volto a este espaço para avisar que o mundo anda em círculos. Mais uma vez, o endereço do novo Para Ler Sem Olhar foi mudado. EIS O NOVO.

O Cálculo Renal continua NO MESMO ENDEREÇO.

26.6.08

Nota Bene

Este post é só pra lembrar que o Para Ler Sem Olhar mudou de casa. Foram quase dois anos muito bem aproveitados no blogger, mas o blog, agora, atende neste endereço:

PARA LER SEM OLHAR

Saravá!

26.3.08

Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

* * * Não se esqueça de alterar o Feed para o novo endereço deste blog * * *

É feio dizer "eu avisei" ou "eu já sabia"; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de "fogo", "rato" ou "tarado" causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava "no serviço" (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. Isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo...

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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18.3.08

A vida emoldurada

* * * Lembrando que este é um dos últimos posts neste endereço. Comentários, links e feeds devem ser redirecionados para o novo endereço do Para Ler Sem Olhar * * *


Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um "não" a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. "O grande culpado da transformação", já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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14.3.08

A boa leviandade


* * * Lembrando que este blog está de mudança e o novo endereço é acessível clicando aqui * * *

De todos os enormes livros que Henri Bergson escreveu, confesso que li só alguns trechos de um ou dois. Achei tudo muito interessante, mas meio fantasioso, então deixei de lado. Mas um trechinho se fixou na minha memória, não sei por quê. Uma idéia curta, a única que guardei do filósofo, mas riquíssima. Diz Bergson que, se corremos feito loucos atrás de uma resposta, certamente é porque fizemos a pergunta errada. Quando acertamos na questão, a solução se entrega sem resistência, como uma donzela embriagada. Ou seja, em vez de quebrar a cabeça com um paradoxo insolúvel – que deve ser falso, no final das contas –, mais vale reformular o problema inteiro.

Não sei como foi que lembrei disso. Ou melhor, lembro sim. Tropecei por acaso, durante uma dessas vadiações cibernéticas, no artigo escrito por um velho amigo da escola. Nem vou indicar o endereço, porque está numa dessas revistas de acesso fechado (acredito piamente que o conceito de acesso restrito está em vias de se tornar obsoleto). Nem valeria a pena. O conteúdo, embora magistralmente redigido, é chão. Uma diatribe cheia de ironias e impropérios, visando retratar como perfeito idiota um certo crítico que o pintou também, certa vez, nas cores da mais absoluta estultice. Ou seja, o de sempre. Mesmo assim, eu me deliciei com a leitura. Não tinha a menor idéia de que aquele sujeito, que na minha cabeça ainda era uma criança, andava publicando romances. O tempo passa rápido... Da última vez em que ouvira falar desse aí, ele cursava uma conceituada faculdade de Direito e sonhava virar sócio de um grande escritório. Porque isso dá dinheiro, não dá?

Seguindo minha curiosidade, entrei em contato com o jovem autor. Telefonei para o mesmo número de anos atrás, sua mãe me forneceu o atual, encontrei-o. Lembrava-se de mim, como eu esperava, menos como colega de estudos, e mais como zagueiro intransponível. Perguntou como viera à minha memória a sua tão distante existência, e ficou envaidecido ao aprender que eu havia lido algo de sua lavra. Tudo muito cordial.

Sabia que ele estava formado, mas não se advogava. Não, nada disso, ele contou. Nem buscou o diploma. Virou jornalista, produtor cultural e, acima de tudo, escritor nas horas vagas, as muitas horas vagas. Encontrara sua verdadeira vocação, estava feliz. A primeira coisa que perguntei foi se a questão da renda muito menor não seria incômoda. Estou certo de que um advogado ganha melhor. Mas ele deu de ombros. "Dá pra viver, dá pra viver..."

Era claramente a pergunta errada. Enveredei por outra senda. Coloquei a questão da seguinte maneira: "O que te impede de fazer as duas coisas ao mesmo tempo?" Ele suspirou. "Ah, não... que inferno! Eu não ia ter fígado pra rapapés na frente de um juiz, um sujeito todo metido só porque passou num tal concurso depois de estudar que nem maluco, mas que eu sei muito bem que é um idiota. Quanto tempo você acha que eu agüentaria uma vida dessas? Não, não ia dar certo, não... de jeito nenhum!" Insisti: "Mas vamos convir que o universo do jornalismo, da cultura e da literatura também está infestado de gente idiota, metida, esnobe, que se acha importante por causa de cargos... e tem picuinhas, rixas sem sentido, rivalidades levianas... Em termos de vaidade, não deve nada ao mundo das leis. Só não rende dinheiro".

Com isso, finalmente, obtive minha resposta. "Tem razão. Mas é diferente. Aqui está todo mundo na mesma lama. Um xinga o outro, mas ninguém tem público, é só a gente, mesmo, que vê. E acaba sendo divertido, consegue-se um pouco de atenção, arruma-se assunto pra escrever. Dá pra dar umas boas risadas. Na hora, é claro que a gente fica irritado. Mas depois, ninguém leva muito a sério. No caso do Direito, é bem mais complicado. Tem muita coisa em jogo. Dinheiro é uma delas, e não é pequena. Mas tem pior. Um juiz que dá uma sentença injusta porque acha a advogada gostosa. E aí? Vai fazer o quê? E tem o cara que é corrupto, descaradamente ladrão. Enfim, tome recurso. Não dá, né? É demais pra mim. Muita sujeira, muita coisa em jogo. Prefiro minhas polêmicas literárias sem importância..."

Ouvindo a alusão a polêmicas literárias sem importância, acabei rompendo o decoro. Soltei uma risada, ele não me acompanhou. Fez que não entendeu por que eu ria. Ora, se não têm importância, perguntei, por que se dedicar a elas? A explicação de meu amigo foi um primor de simplicidade. Elas o divertem. Ajudam a passar o tempo, divulgar seu nome, exercitar a habilidade eurística, arrumar assunto para o bar e, eventualmente, descolar uma ou outra leitora desavisada. "E o mais importante", ele acrescentou, antes de desligar, "é que não tem risco nenhum. Não vai morrer ninguém, ninguém vai preso, ninguém vai ficar pobre... No fundo, é tudo só pra passar o tempo."

Eis um ponto de vista, no mínimo, divertido. Mais do que concordar ou discordar, compreendi que, como prescreveu Bergson, eu tinha encontrado a pergunta certa. Está aí minha resposta. O sujeito largou mão de uma aposentadoria tranqüila e bem provida para escapar de um mundo leviano, sim, mas de uma leviandade séria, perigosa. Ele fez sua escolha, com toda consciência, por um outro mundo, igualmente leviano, mas de uma leviandade apenas leviana e nada mais do que isso. Para passar o tempo. E como eu poderia censurá-lo?

10.3.08

Nos jardins, as cerejeiras


* * * Fato relevante: este blog está mudando de endereço. Durante algum tempo, o novo site e este aqui continuarão sendo atualizados simultaneamente, enquanto eu me habituo e aviso a todos. Aos leitores freqüentes e àqueles que me dão links, em primeiro lugar, muito obrigado; depois, queiram atualizar o endereço: http://opensadorselvagem.org/blog/diegoviana. * * *

Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora...

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de "O Cerejal", de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: "Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!" Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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4.3.08

O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do desprezo da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos: Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai! Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar a mulher que despreza uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo "simplesmente" no meio de seu poema, o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca. Se, no lugar do "simplesmente", o autor cometesse algo como "inversamente", "ao contrário" ou "em vez disso", a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é. Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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29.2.08

O cartão nosso de cada dia


Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por "outra natureza", expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d'água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí para comprovar.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros que sua casa? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique. É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que "isso não se faz" chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais, damos "um jeito" de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. "É normal, ué!"

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: "porque fez o que estou fazendo agora"? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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25.2.08

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um momento. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: "Não encosta n'eu! Tu vai me sujar!" (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o "tu", sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): "Te manda, então! Te manda!" E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: "pauvre con!" (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de "igual a vocês", alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar "política mané". Por que "mané"? Porque não é o mesmo fenômeno do "demagogo" ático ou do "populista" latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, líder da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova "política mané". O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que "talvez" seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da "política mané". Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da "política política" e o afaste da "política mané". Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da "política mané", que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS: Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con...

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22.2.08

Informação e ânimos exaltados


Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outro, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas colunas da Folha terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja auto-biografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem "mentiras". Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade. E pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: "Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!" Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de "denúncia". Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso "fontes ligadas ao palácio afirmam que...", os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama "jornalismo". Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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20.2.08

Um repórter, finalmente!



Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d'água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (com razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia que ele tinha sido repórter.

E ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm impulso para matérias em série (certos jornais simplesmente "não fazem", se recusam: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a encalhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no "jornalista esperto". Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num ciclo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro "Não", seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita "imprensa tradicional": ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita "imprensa tradicional". Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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16.2.08

O mal que vem dos Trópicos


Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de "meu país"], parece que cometeu uma pequena imprudência...

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho... Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para "dar praia". Deve ter sido algo como "as condições não eram propícias".

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige...

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele... É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para "descascar", nem, pelo visto, o sol da Côte d'Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam...). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: "vou te mostrar..." Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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12.2.08

Vento gelado, chuva e calor


Houve um tempo em que eu era ranzinza, muito ranzinza. Procurava o ponto mais negativo de todas as coisas, para em seguida cumprir a tarefa demolidora de casmurro com zelo quase prussiano. Mas casmurro, no fundo, nunca fui: achava o ápice da elegância enfileirar reclamações sarcásticas contra tudo que me parecesse incômodo, do tempo ao trânsito, da política ao futebol.

Era, vamos colocar assim, uma estratégia retórica. Alguém que saiba metralhar críticas aleatórias passa, por motivos que não compreendo, a impressão de possuir uma inteligência superior. Se o fizer com termos e locuções bem escolhidos, então, proporciona boas risadas aos circunstantes; com isso, sempre recebe convites para as soirées de uísque e charutos. Bom negócio, que não passou despercebido de quase nenhum dos nossos cronistas e literatos em geral, essa gente que, como sabemos, jamais dispensa uma boa dose e um bom fumo, contanto que não seja cubano.

De repente, percebo que minha rabugice me abandonou. Ainda pronuncio, sim, comentários maldosos; só que, agora, escrevo com irritação e agressividade apenas quando o assunto me irrita e agride. Admito que esse ainda é um gênero predominante, com folga, neste espaço. Mas, que posso fazer?, este mundo está recheado de coisas irritantes e agressivas.

É certo, ao menos, que meus comentários sardônicos se despiram da gratuidade preguiçosa que os engessava. É uma lástima que essa leviandade ainda bloqueie a eficácia de tantas mentes brilhantes por aí. Mas acho que escapei, pelo menos por enquanto. Resultado: agora estou livre para sustentar uma opinião favorável a qualquer coisa sem, com isso, me sentir uma Poliana alienada (Céus! Sacrilégio! Cometi uma tautologia! Azar...).

Resumindo, é libertador e recomendo a todos.

Pois agora que já compartilhei a constatação revolucionária, quero acrescentar o relato de como cheguei a ela, para não passar a impressão de só pensar em abobrinhas enquanto vou rabiscando a esperar o metrô. Os processos da vida, como se sabe, vão passando, mas nós não costumamos nos aperceber. Até que, belo dia, eles se revelam de supetão, como um pontapé na canela. Daí nossa dificuldade atávica em reconhecer o devir, ele que é tão evidente...

Muito bem: terminou ontem minha breve passagem (breve e agitada, a propósito) pelo Brasil. Voltei com tantas impressões na cabeça, e tão fortes, que não sei nem por onde começar a escrever. Conjecturando sobre minha própria confusão mental, saí de casa – hoje foi um belíssimo dia de sol – e dei ao vento a oportunidade que ele esperava para me agredir com um sopapo frio. As temperaturas, logo descobri, andam variando entre 1oC ao nascer do dia e 10oC durante o almoço.

Contra um velho hábito que eu costumava tomar por natureza minha, a sensação me pareceu muito agradável. A ponto de começar a sorrir em plena rua, ó, escândalo inaceitável nesta cidade. Na minha atitude normal, eu não hesitaria em maldizer o clima; na secura do inverno, não menos do que na sudorese do estio. Ou seja, algo mudou. Hoje, sou um mortal que aprecia os casacos quando são necessários, tanto quanto respira o mormaço carioca com a camisa aberta, satisfeito. Dou vivas aos opostos e não vejo motivos para agir de outra maneira.

Como quando, na companhia de um punhado de amigos e uma multidão de desconhecidos, eu subia uma ladeira da velha Laranjeiras, entre os casarões e atrás da batucada. Fazia calor, é claro. Uma fornalha de foliões que seria pior ainda se o céu não se mantivesse pudicamente encoberto. A turma toda entornava cervejas e reclamava da temperatura opressiva; sem por isso parar de pular. Eis que chega a chuva. Diz a lógica mais castiça que, eliminado o motivo, as queixas devem cessar. Mas qual. O folião, pelo visto, aceita melhor o tostar do que o molhar, embora solte impropérios contra ambos. Enquanto eu me refrescava com o arremedo de chuva, meus vizinhos corriam para se proteger e rompiam com São Pedro.

Foi assim que descobri o quanto mudou minha atitude perante o mundo, conforme expliquei. Creio agora, piamente, que mesmo na mais ácida das personalidades é fundamental deixar reservado um canto para o bem querer e o bem estar. Ao cronista bruto, paz de espírito parece, às vezes, vício de poeta; mas nem tudo na poesia é vício. O olhar sobre o mundo não pode perder jamais a rigidez crítica que o solidifica. Mas mesmo o que é sólido pode trincar e espatifar-se; já a ternura e o lirismo dão a mistura que faz de qualquer idéia um organismo saudável, flexível e elástico. E o que, a um tempo, é maciço e flexível, ora, não quebra jamais.

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25.1.08

À casa torno


Me preparando para embarcar rumo ao Brasil. O pensamentos em direções dispersas, disparado, partido entre deixar uma certa ordem na vida para as duas semanas de ausência e a organização da corrida febril que deveria ser descanso. Doze dias entre os meus, doze vezes doze pessoas a rever e abraçar, doze mil papos a colocar em dia.

E quantos dias! Mais de quinze meses afastado do chão em que se construiu minha história. Apartado de uma forma de viver, bem específica, que corre em meu sangue. Entre gentes que me sabem forasteiro, no esforço para minorar as diferenças. Obrigando-me a adaptar o comportamento. Ainda sou o mesmo, eu me reconheço assim. Mas, tão pouco tempo passado, já não sou bem igual, não é só fachada. As roupas que uso, jamais usaria em minha terra. A indumentária que aqui é corriqueira, é exótica aí, e não mais me incomoda parecer exótico aos olhos dos meus conaturais.

E mais, algo bem pior, que o espelho denuncia: tenho a tez de uma assombração. Minha palidez, digno atestado do continente em que vivo, talvez ofenda as sensibilidades nacionais. Não é exagero meu. Um raio de sol brasileiro, refletido em minha testa, arrisca ofuscar os motoristas. Que perigo, posso causar um desastre. Assim, entre as visitas, as questões burocráticas e as tulipas de chope, cumpre encaixar o compromisso diário com a praia ou, na falta dela, uma piscina, uma laje, qualquer coisa exposta ao mormaço.

Pensamentos bestas! Quando eu deveria estar concentrado nos horários dos médicos, nas cidades a conciliar, na pausa forçada que vai me impor o carnaval! Sim, reitero, a folia é pausa forçada. Mas nem por isso é menos bem-vinda. É hora de mapear os blocos e as rodas de choro, bela oportunidade de ouvir ao vivo a música que só tenho recebido pelos próprios discos. Ora, eu, que deveria me preocupar com minha agenda, só tenho cabeça para ouvir chorinho.

Será estranho, se eu sair do aeroporto e um taxista me abordar num arremedo de inglês. Vou pensar que ninguém quer falar comigo na minha língua, nem mesmo no meu próprio país. Talvez eu ria, talvez eu rosne. Vamos ver. Nada de levantar hipóteses à toa. Ser confundido com um turista sem rumo já me aconteceu, e não é das melhores experiências, sobretudo no Brasil. Mas meu humor pode estar tão bom que eu engate uma longa conversa sobre the book that is on the table.

Já veio me dizer um amigo que, sem dúvida, de um jeito ou de outro, vai ser estranho. Nas primeiras horas, o habitual de outrora tem cara de novidade. As reações não se dão naturalmente. Você tem plena consciência de que já chegou, mas a melodia, o jogo de corpo, a postura displicente, que antes não renderiam um mínimo relance de atenção, renascem como elementos de estudo antropológico. Foi o que aconteceu com ele, garante.

Diz esse amigo que, ao carregar com mais freqüência o passaporte do que o CPF, você é introduzido num certo limbo. Não é nativo de verdade, nem muito menos gringo. Essa mutilação radical das raízes me parece fantasiosa, mas, ele afirma, pode até ser vantagem. Com um pouco de boa vontade, você se transforma em observador privilegiado de ambos os campos: morador que aprende, visitante que conhece.

A perspectiva é auspiciosa, mas tensa. Eu não me sinto confortável com a oportunidade, tão próxima, de colocá-la à prova. A chegada do descanso empolga a fadiga das minhas mandíbulas e têmporas. A hora da viagem traz à tona meu lado prático, de hábito atrofiado e subnutrido, mas nem por isso ausente. A perspectiva dos almoços em família potencializa uma saudade que interfere no bom raciocínio. Essa vibração interna suplanta com sobras a apreensão quanto ao reencontro com o país. Não sei o que vou pensar ou sentir. Por si só, isso já será uma surpresa.

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19.1.08

De volta aos rostos


Quase esqueci dos outros. A Terra está apinhada de gente, mas todos já iam sumindo da minha memória. Uma semana inteira com os olhos voltados para dentro bastou para que eu me isolasse do mundo. Eu, que gosto tanto das fisionomias, das expressões, das histórias de vida que os rostos não conseguem esconder. Dias a fio, sem contato com ninguém além dos comerciantes da rua. Mas os comerciantes não são outros. São os mesmos de sempre, estão sempre ali. Têm seus nomes, suas profissões, seus postos na minha realidade. Os outros são imagens no desfile cotidiano de faces, que procuramos não encarar. Anônimas, dizemos, cretinos que somos. Elas não são anônimas. Cada uma cultiva seu orgulho do nome a que responde. Cada uma carrega no bolso uma carteira puída, com números a preencher em formulários. Cada uma inventou – e não esqueceu – um punhado de senhas, para abrir as portas da vida social. Cada rosto desses é tão anônimo quanto o meu. E, como o meu, reconhece um "eu" como centro de seu universo.

Ao reencontrar as fisionomias, sou tomado pelo alívio. Estão todos ali, onde deveriam estar, indiferentes, na plataforma do metrô. Vejo-as congeladas, num estranho estado de suspensão, enquanto esperam o trem para subir. Também eu estou em estado de suspensão. Oscilo, pendular, na mesma freqüência dos demais. Congelado, na plataforma do metrô. Só que eles não me olham, e eu olho para eles. São relances, olhares curtos e furtivos como os dos criminosos e dos amantes tímidos. Quando percebem que alguém ali os contempla vagamente, ficam incomodados, afastam-se, franzem a testa. Ofendidos, há até os que gesticulam e se põem a ameaçar, aos berros. Melhor ter cuidado. Eu mesmo, na verdade, tampouco gosto que me olhem. Não sei o que pode buscar um olhar perscrutador nesta fisionomia carrancuda, de manhã, esperando o trem. Detesto que tentem decifrar minha vida pelas linhas de minha preocupação, como eu tento ler as rugas desses desconhecidos todos. Sou assim. Inconsistente. Rejeito meu papel no anonimato.

Como é prático atribuir a cada corpo desses um anonimato generalizado! É cínico, é injusto, mas é prático. De um gesto, cria-se a massa. Inerte e pluricelular, uma forma cuja agitação não tem sentido e se pode ignorar. Condená-los ao anonimato parece expiar a culpa do isolamento. Se não têm nome, não são indivíduos, não vivem histórias que mudem com o dia. Manter-se afastado durante uma semana não é perda alguma, não é nada. Falar em massa, sufocar os nomes, é colocar-se em outro plano. O único plano individual, em que o eu é legítimo e a vida deve se conservar. Melhor. A ilusão é um caminho justo para a paz de espírito. Pois mais vale encher de enfeites esta margem que me cabe na existência, que desesperar dos muros altos do entorno.

Assim se apresenta o estranho gosto pelos rostos meus estranhos. Misto de curiosidade e desprezo, despeito e orgulho. Em comum, todos eles traçam biombos imaginários para resguardar a intimidade. Em pleno transporte público. Todos têm nuvens diante dos olhos. Há os sérios, de pensamentos distantes, solitários no rumo das funções. E há os grupos, os pares, os casais, os amigos. Falam, gesticulam, movimentam-se. Incomodam os sérios, porque parecem mais leves, embora sofram tanto quanto cada um. Há os espalhados, jovens garbosos: ainda não entenderam que seu universo é só mais um canto escuro. Há os pequenos, humildes, escondidos nos assentos porque desistiram de crer no próprio mundo. Há os leitores insondáveis, os músicos tristonhos, os pedintes em profusão.

Em comum, o fato de que não sei como se chamam. Tento adivinhar, examino as fisionomias, invento nomes para todos. Nomes brasileiros, em geral. Até me dar conta de que dificilmente alguém se chama assim. Invento outros nomes, agora internacionais. Como um despótico Adão, batizo-os. De todas as pessoas que convivem naquele parco espaço, uma apenas não é renomeada pela minha imaginação doentia. Ora, eu conheço meu verdadeiro nome. Não teria por que escolher outro. Mas dentre eles todos, não há um que saiba quem sou. Nem há quem invente um nome para mim. Entre as criaturas que batizei, eu mesmo sirvo apenas para compor a massa.

14.1.08

Os bombons de quarta-feira


Na primeira, primeiríssima vez, você já acertou. Com louvor. Trouxe bombons pra mim, justamente dos que mais gosto. Logo concluí que deveria te segurar de todo jeito. Virou minha meta e minha fixação. Enquanto viessem os bombons, eu não veria motivo pra sugerir um divórcio, insinuar uma gravidez, ter crises de ciúme. Os bombons foram seu salvo-conduto.

A semana inteira, eu esperava as quartas-feiras, em que soaria o interfone esganiçado e você subiria. Você, seu terno riscado e minha caixa de bombons. Eu atravessava a sala aos pinotes, abria a porta e pulava no seu pescoço. Eu gargalhava. Você só fazia charme. Sorria com o canto da boca. Eu ficava ansiosa e deixava aflorar meu lado cocote, normalmente tão bem escondido. Então, eu arrancava o pacote que você trazia debaixo do braço, rasgava o papel e me atirava no sofá.

Você vinha lentamente, tirando o paletó, enquanto eu enfiava os dentes no recheio. Era doce, escorria pelos lábios. Eu fazia biquinho pra parecer sexy. Quando sentia o gosto do licor, sacudia a cabeça como uma idiotinha. Até que você chegava, quente e descontrolado. Pronto, eu te abraçava com minhas pernas firmes, minhas pernas de bailarina (meu orgulho particular, você sabe).

Se você sufocasse, azar. Mas nunca aconteceu. Meus músculos te apertavam e prendiam durante horas. Até você admitir que não agüentava mais, dizendo que era hora de ir embora. Um beijo de despedida, um banho quente. De roupão, eu me largava na frente da TV com o que sobrava dos bombons. Eles não duravam mais do que uma noite. E eu ficava pensando que você deveria vir mais vezes.

Sim, descontrolada, sim, sim. Fiquei nervosa e irritada quando você veio apenas com o terno riscado, sem pacote debaixo do braço. A doceria fechou, você disse, como se fosse uma fatalidade e eu tivesse de me conformar. Pois sim. A doceria fechou e você não procurou outra, nem outra marca de bombons, nem outro sabor. Você não quis se dar a um pequeno trabalho por alguém que fez tanto sacrifício por você. Não trouxe nada, mas queria levar tudo.

Você se desculpou. Mas na mesma hora eu entendi o que você queria dizer. Entendi que você tinha feito sua escolha, e não nego sua razão. Já passei por isso. Sou cascuda, aprendi a levar foras com dignidade. Mas se te digo que sentirei mais saudades dos bombons que de você, não leve a mal. É um exagero. Uma flecha lançada contra o seu amor-próprio. Coisa de menininha.

Você nega que a decisão esteja tomada. Seu mentiroso. Eu disse que não precisava voltar sem presentinho. Sem presentinho, você não voltou, mesmo. Assim seja. Será que você não percebia que meus pinotes e risadinhas eram jogo de cena feminino? Agora, pode deixar. Eu compro meus próprios bombons, quando tiver vontade.

11.1.08

Pessoas simples e gostos abstrusos


Certa vez, eu estava muito contente – lembro que, nesse dia, bebi um pouco além da conta –, graças a um jogo de futebol. Um triunfo sonoro, além de qualquer recurso, para cima de um tradicional e maligno rival. (Sim, sustento até hoje, com a maior seriedade, que forças demoníacas alimentam aquele clube.) Era uma final de campeonato, o juiz e o locutor torciam sem pudores para o outro time, mas goleamos mesmo assim. "Goleamos"? Não, eu não entrei em campo. Mas minhas poderosas emanações de torcida cumpriram a missão. E com sobras. Para resumir, todos os ingredientes de um alegre final de tarde esportiva estavam reunidos, ali, entre meus amigos e eu. À noite, quando tomei o rumo de casa, só queria que aquele instante se eternizasse.

Na chegada, o elevador fez escala no andar onde vivia, e ainda vive, uma curiosíssima e típica família alemã. Os homens, pai e filho, são bonachões, relaxados e, na verdade, um pouco ridículos. As mulheres, mãe e filha, ocupam o pólo oposto: rígidas, sisudas, intolerantes. Pois bem: na noite em questão, quem tomou o mesmo elevador que eu, de saída para algum jantar, foram os pais. A senhora, mais acostumada à minha postura sorumbática das manhãs, ficou chocada com o sorriso largo, o cumprimento efusivo e o bafo de cachaça. Olhos arregalados, perguntou-me se eu tinha acertado a centena e o milhar. Não, repliquei. Minha alegria era bola na rede e caneco na mão.

Como se poderia esperar de um casal tão antinômico, as reações foram díspares. Entre suas bochechas afogueadas, o velho teuto soltou uma breve risada e um lamento: "– Perdi o jogão! Me dei mal!" Já sua esposa, de quem sempre desconfiei ser uma agente infiltrada da Stasi, ergueu as sobrancelhas e desdenhou de minha euforia: "– Pessoas simples têm prazeres simples", comentou, e nada mais. Só me restou concordar com a justeza da observação, mesmo sabendo que, ao me chamar de simples, na realidade ela queria dizer que sou simplório.

Ofensas à parte, o único motivo pelo qual sei que não sou simplório é o fato de que, eventualmente, tenho inveja de quem é. Isso acontece quando me angustiam problemas abstratos, até metafísicos, que, espero, não podem me ferir de verdade. Ora, a única angústia do simplório é com o risco de ter um celular ultrapassado. Logo, não sou um deles. Desse risco, pelo menos, estou livre.

Mas não chega a me incomodar a idéia de ser uma pessoa simples, com prazeres simples. Acontece que conheço alguns prazeres bem complexos, intrincados, diria mesmo... abstrusos. E, para ser honesto, preciso confessar: não são assim tão prazerosos quanto parecem. Vale para o sabor de um Pauillac tinto, com seus taninos reforçados e o gosto que persiste. E vale igualmente para a compreensão, terrivelmente árdua, de uma frase de Marcel Proust com 481 palavras, que só adquirem um sentido inequívoco depois de relidas uma dúzia de vezes.

Não me entendam mal. Longe de mim recusar os prazeres eruditos. Mergulhar nos volumes do Tempo Perdido é uma delícia, e mais difícil do que fazê-lo é convencer os demais de que vale a pena. Mas é coisa arriscada, e exige mais força moral do que, propriamente, inteligência. Não é difícil conceber, até porque acontece quase sempre, o que pode se passar com uma alma tíbia que se entrega a esses prazeres exigentes. Pouco a pouco, sem perceber, o ser inocente vai absorvendo as coisas de que gosta, vai se tornando complexo, depois intrincado, até que... pronto. Tornou-se abstruso. Talvez seja o que aconteceu com minha vizinha, a agente da Stasi.

O espírito que é forte, além de inteligente, pode se enfiar até o pescoço nas delícias difíceis da alta cultura, que mesmo assim jamais abandonará sua simplicidade. Não será um bárbaro primitivo porque enche a cara depois de uma vitória de seu time; talvez o seja, se arranjar briga com uma horda rival, mas isso é outro problema. Tampouco é absurdo que aquele mesmo torcedor, que ontem dormia na calçada em posição improvável, hoje vista terno e discuta, entre os sábios do templo, as obras-primas de Fassbinder.

Aí está o erro da disciplinada senhora alemã. Pessoas simples têm, sim, prazeres simples. E estão corretíssimas. Já as pessoas complicadas, e que gostam de ser complicadas, essas precisam ser mandadas, na falta de casas de correção, para colônias de repouso. Um Spa moral, digamos assim. Para ver se recuperam um pouco de sua simplicidade, no lugar de murchar entre gostos abstrusos.

PS:
Dicionário Caldas Aulete –
abstruso: adjetivo.
1 Que se acha oculto ou encoberto: As conseqüências são claras, as motivações, abstrusas [Antônimo: claro, evidente, manifesto]
2 Difícil de entender (estilo abstruso); obscuro; intrincado.
3 Sem ordem, lógica, estrutura; confuso; incongruente [Antônimo: coerente, ordenado]

29.12.07

O sorriso de Oscar Peterson


Se é verdade que virtuose é quem faz o difícil parecer fácil, então o mais patente de todos foi Oscar Peterson, o pianista canadense que, aos 82 anos, acaba de deixar esta vida. Discretamente, enquanto o mundo só tinha olhos para as festas de fim de ano.

Espera-se de um virtuose que consiga embaralhar os dedos sobre as teclas, as cordas ou os pistões de seu instrumento, encadear uma nota à outra com clareza e velocidade, produzir harmonias complexas em seqüência – tudo isso, sem deixar transparecer o esforço que a música exige. Pois Oscar Peterson ia além. Sobre os temas clássicos do jazz, improvisava melodias que quase não se podia acompanhar. Em seu rosto, sempre a mesma placidez. Sempre um sorriso. Se o virtuose exibe uma expressão tranqüila, Oscar Peterson era mais do que um virtuose: era um gênio. O que ele oferecia era a alegria brilhante de quem produz o jazz mais elaborado como se o piano fosse um brinquedo.

Não sei explicar por que o jazz produziu tantos gênios, tantos músicos tão brilhantes e inventivos. O pendor para a autografia que reside no âmago do estilo talvez seja a chave da explicação. Não há música tão aberta ao improviso quanto o jazz. Mais além, tenho dificuldade em imaginar um estilo de conceito tão amplo, agregador de toda influência que lhe passa pelo caminho: o blues na raiz, o caribenho, o urbano, o rock, os gêneros dos países para onde se expande. No Brasil, aliás, imprimiu seus genes sobre a Bossa Nova.

No século da obra aberta, da dissolução dos gêneros, da rixa entre a reprodução técnica e a mística do efêmero, o jazz se encaixou como uma luva. Gosto de pensar que, se as grandes figuras musicais oitocentistas foram heróis do quilate de Chopin e Wagner, as reverências do último século devem ser reservadas a gente como Louis Armstrong, Charlie Parker e Miles Davis.

Nesse restrito panteão, Oscar Peterson tem vaga inconteste. Somente os semideuses da música são capazes, como ele, de levar ao extremo da possibilidade expressiva temas simples como os de Night Train, Laura, On the Sunny Side of the Street, tantos outros. Debaixo de seus dedos grossos, não eram mais as mesmas melodias. Renasciam como monumentos da ação humana. E enquanto o público se entregava ao êxtase que os grandes gênios do jazz sabem catalizar, Oscar Peterson, ao centro do palco, sorria. Como se zombasse do fascínio de seus admiradores. Mas quem haveria de achar zombeteiro aquele rosto iluminado? O sorriso era de satisfação, o êxtase da beleza pelo som. A mesma satisfação experimentava o público, diante da arte que nascia. Ali, naquele instante, enclausurada em cafés esfumaçados ou serelepe pelas grandes salas de concerto.

Era como se nada fosse difícil para Oscar Peterson. Talvez ele próprio fosse o único a não se considerar o maior dos pianistas de jazz. Havia um outro, cuja grandeza sempre o intimidou. Até o fim de seus dias. Era ninguém menos do que Art Tatum, seu antecessor no panteão, o "Chopin maluco" da definição de Jean Cocteau. Na adolescência, um dedicado e estudioso Oscar quase desistiu da música ao tomar contato com as estripulias do mestre e futuro amigo. Anos mais tarde, apesar da estreita ligação entre os dois, Peterson ainda evitaria colocar-se ao piano diante de Tatum.

Desde 1993, quando sofreu um derrame cerebral, Oscar Peterson não podia exibir o máximo de sua capacidade técnica diante das técnicas. Tocava esporadicamente, jamais em grandes salas. Não tive oportunidade de ver ao vivo o deslizar veloz de seus dedos e seu sorriso tranqüilo. E nem seu rosto brilhante, efeito do reflexo da iluminação no suor da testa – suor de calor, bem entendido, não de esforço excessivo. Uma pena. Mas é um alento saber que, mesmo com as limitações que lhe causou o derrame, ele continuasse compondo. Sua última música chama-se When Summer Comes, recebeu letra de Elvis Costello e foi cantada por Diana Krall.

Na página oficial do músico, sua família agradece o carinho demonstrado pelos admiradores, e sugerem doações para uma instituição de caridade. Pois, além de sua atividade como instrumentista, Peterson foi um ativista dos direitos humanos. Na primeira vez em que tocou no sul dos Estados Unidos, foi obrigado a peitar um policial, pelo direito de tomar um táxi "para brancos". Escapou por pouco de levar um tiro. Se tivesse acontecido, seria mais uma vez em que o irracionalismo étnico subtrairia ao mundo um de seus espíritos maiores.

Mas a humanidade deu sorte: não houve disparo, graças à intervenção de Norman Granz, seu empresário. Do episódio, como da obra de Oscar Peterson, restou a lição: a estupidez é perigosa e deve ser combatida. A arte é sublime, e deve ser aplaudida. Segue um vídeo do Oscar Peterson Trio, para que possamos aplaudi-lo, da maneira como ainda podemos.

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