25.1.08

À casa torno


Me preparando para embarcar rumo ao Brasil. O pensamentos em direções dispersas, disparado, partido entre deixar uma certa ordem na vida para as duas semanas de ausência e a organização da corrida febril que deveria ser descanso. Doze dias entre os meus, doze vezes doze pessoas a rever e abraçar, doze mil papos a colocar em dia.

E quantos dias! Mais de quinze meses afastado do chão em que se construiu minha história. Apartado de uma forma de viver, bem específica, que corre em meu sangue. Entre gentes que me sabem forasteiro, no esforço para minorar as diferenças. Obrigando-me a adaptar o comportamento. Ainda sou o mesmo, eu me reconheço assim. Mas, tão pouco tempo passado, já não sou bem igual, não é só fachada. As roupas que uso, jamais usaria em minha terra. A indumentária que aqui é corriqueira, é exótica aí, e não mais me incomoda parecer exótico aos olhos dos meus conaturais.

E mais, algo bem pior, que o espelho denuncia: tenho a tez de uma assombração. Minha palidez, digno atestado do continente em que vivo, talvez ofenda as sensibilidades nacionais. Não é exagero meu. Um raio de sol brasileiro, refletido em minha testa, arrisca ofuscar os motoristas. Que perigo, posso causar um desastre. Assim, entre as visitas, as questões burocráticas e as tulipas de chope, cumpre encaixar o compromisso diário com a praia ou, na falta dela, uma piscina, uma laje, qualquer coisa exposta ao mormaço.

Pensamentos bestas! Quando eu deveria estar concentrado nos horários dos médicos, nas cidades a conciliar, na pausa forçada que vai me impor o carnaval! Sim, reitero, a folia é pausa forçada. Mas nem por isso é menos bem-vinda. É hora de mapear os blocos e as rodas de choro, bela oportunidade de ouvir ao vivo a música que só tenho recebido pelos próprios discos. Ora, eu, que deveria me preocupar com minha agenda, só tenho cabeça para ouvir chorinho.

Será estranho, se eu sair do aeroporto e um taxista me abordar num arremedo de inglês. Vou pensar que ninguém quer falar comigo na minha língua, nem mesmo no meu próprio país. Talvez eu ria, talvez eu rosne. Vamos ver. Nada de levantar hipóteses à toa. Ser confundido com um turista sem rumo já me aconteceu, e não é das melhores experiências, sobretudo no Brasil. Mas meu humor pode estar tão bom que eu engate uma longa conversa sobre the book that is on the table.

Já veio me dizer um amigo que, sem dúvida, de um jeito ou de outro, vai ser estranho. Nas primeiras horas, o habitual de outrora tem cara de novidade. As reações não se dão naturalmente. Você tem plena consciência de que já chegou, mas a melodia, o jogo de corpo, a postura displicente, que antes não renderiam um mínimo relance de atenção, renascem como elementos de estudo antropológico. Foi o que aconteceu com ele, garante.

Diz esse amigo que, ao carregar com mais freqüência o passaporte do que o CPF, você é introduzido num certo limbo. Não é nativo de verdade, nem muito menos gringo. Essa mutilação radical das raízes me parece fantasiosa, mas, ele afirma, pode até ser vantagem. Com um pouco de boa vontade, você se transforma em observador privilegiado de ambos os campos: morador que aprende, visitante que conhece.

A perspectiva é auspiciosa, mas tensa. Eu não me sinto confortável com a oportunidade, tão próxima, de colocá-la à prova. A chegada do descanso empolga a fadiga das minhas mandíbulas e têmporas. A hora da viagem traz à tona meu lado prático, de hábito atrofiado e subnutrido, mas nem por isso ausente. A perspectiva dos almoços em família potencializa uma saudade que interfere no bom raciocínio. Essa vibração interna suplanta com sobras a apreensão quanto ao reencontro com o país. Não sei o que vou pensar ou sentir. Por si só, isso já será uma surpresa.

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19.1.08

De volta aos rostos


Quase esqueci dos outros. A Terra está apinhada de gente, mas todos já iam sumindo da minha memória. Uma semana inteira com os olhos voltados para dentro bastou para que eu me isolasse do mundo. Eu, que gosto tanto das fisionomias, das expressões, das histórias de vida que os rostos não conseguem esconder. Dias a fio, sem contato com ninguém além dos comerciantes da rua. Mas os comerciantes não são outros. São os mesmos de sempre, estão sempre ali. Têm seus nomes, suas profissões, seus postos na minha realidade. Os outros são imagens no desfile cotidiano de faces, que procuramos não encarar. Anônimas, dizemos, cretinos que somos. Elas não são anônimas. Cada uma cultiva seu orgulho do nome a que responde. Cada uma carrega no bolso uma carteira puída, com números a preencher em formulários. Cada uma inventou – e não esqueceu – um punhado de senhas, para abrir as portas da vida social. Cada rosto desses é tão anônimo quanto o meu. E, como o meu, reconhece um "eu" como centro de seu universo.

Ao reencontrar as fisionomias, sou tomado pelo alívio. Estão todos ali, onde deveriam estar, indiferentes, na plataforma do metrô. Vejo-as congeladas, num estranho estado de suspensão, enquanto esperam o trem para subir. Também eu estou em estado de suspensão. Oscilo, pendular, na mesma freqüência dos demais. Congelado, na plataforma do metrô. Só que eles não me olham, e eu olho para eles. São relances, olhares curtos e furtivos como os dos criminosos e dos amantes tímidos. Quando percebem que alguém ali os contempla vagamente, ficam incomodados, afastam-se, franzem a testa. Ofendidos, há até os que gesticulam e se põem a ameaçar, aos berros. Melhor ter cuidado. Eu mesmo, na verdade, tampouco gosto que me olhem. Não sei o que pode buscar um olhar perscrutador nesta fisionomia carrancuda, de manhã, esperando o trem. Detesto que tentem decifrar minha vida pelas linhas de minha preocupação, como eu tento ler as rugas desses desconhecidos todos. Sou assim. Inconsistente. Rejeito meu papel no anonimato.

Como é prático atribuir a cada corpo desses um anonimato generalizado! É cínico, é injusto, mas é prático. De um gesto, cria-se a massa. Inerte e pluricelular, uma forma cuja agitação não tem sentido e se pode ignorar. Condená-los ao anonimato parece expiar a culpa do isolamento. Se não têm nome, não são indivíduos, não vivem histórias que mudem com o dia. Manter-se afastado durante uma semana não é perda alguma, não é nada. Falar em massa, sufocar os nomes, é colocar-se em outro plano. O único plano individual, em que o eu é legítimo e a vida deve se conservar. Melhor. A ilusão é um caminho justo para a paz de espírito. Pois mais vale encher de enfeites esta margem que me cabe na existência, que desesperar dos muros altos do entorno.

Assim se apresenta o estranho gosto pelos rostos meus estranhos. Misto de curiosidade e desprezo, despeito e orgulho. Em comum, todos eles traçam biombos imaginários para resguardar a intimidade. Em pleno transporte público. Todos têm nuvens diante dos olhos. Há os sérios, de pensamentos distantes, solitários no rumo das funções. E há os grupos, os pares, os casais, os amigos. Falam, gesticulam, movimentam-se. Incomodam os sérios, porque parecem mais leves, embora sofram tanto quanto cada um. Há os espalhados, jovens garbosos: ainda não entenderam que seu universo é só mais um canto escuro. Há os pequenos, humildes, escondidos nos assentos porque desistiram de crer no próprio mundo. Há os leitores insondáveis, os músicos tristonhos, os pedintes em profusão.

Em comum, o fato de que não sei como se chamam. Tento adivinhar, examino as fisionomias, invento nomes para todos. Nomes brasileiros, em geral. Até me dar conta de que dificilmente alguém se chama assim. Invento outros nomes, agora internacionais. Como um despótico Adão, batizo-os. De todas as pessoas que convivem naquele parco espaço, uma apenas não é renomeada pela minha imaginação doentia. Ora, eu conheço meu verdadeiro nome. Não teria por que escolher outro. Mas dentre eles todos, não há um que saiba quem sou. Nem há quem invente um nome para mim. Entre as criaturas que batizei, eu mesmo sirvo apenas para compor a massa.

14.1.08

Os bombons de quarta-feira


Na primeira, primeiríssima vez, você já acertou. Com louvor. Trouxe bombons pra mim, justamente dos que mais gosto. Logo concluí que deveria te segurar de todo jeito. Virou minha meta e minha fixação. Enquanto viessem os bombons, eu não veria motivo pra sugerir um divórcio, insinuar uma gravidez, ter crises de ciúme. Os bombons foram seu salvo-conduto.

A semana inteira, eu esperava as quartas-feiras, em que soaria o interfone esganiçado e você subiria. Você, seu terno riscado e minha caixa de bombons. Eu atravessava a sala aos pinotes, abria a porta e pulava no seu pescoço. Eu gargalhava. Você só fazia charme. Sorria com o canto da boca. Eu ficava ansiosa e deixava aflorar meu lado cocote, normalmente tão bem escondido. Então, eu arrancava o pacote que você trazia debaixo do braço, rasgava o papel e me atirava no sofá.

Você vinha lentamente, tirando o paletó, enquanto eu enfiava os dentes no recheio. Era doce, escorria pelos lábios. Eu fazia biquinho pra parecer sexy. Quando sentia o gosto do licor, sacudia a cabeça como uma idiotinha. Até que você chegava, quente e descontrolado. Pronto, eu te abraçava com minhas pernas firmes, minhas pernas de bailarina (meu orgulho particular, você sabe).

Se você sufocasse, azar. Mas nunca aconteceu. Meus músculos te apertavam e prendiam durante horas. Até você admitir que não agüentava mais, dizendo que era hora de ir embora. Um beijo de despedida, um banho quente. De roupão, eu me largava na frente da TV com o que sobrava dos bombons. Eles não duravam mais do que uma noite. E eu ficava pensando que você deveria vir mais vezes.

Sim, descontrolada, sim, sim. Fiquei nervosa e irritada quando você veio apenas com o terno riscado, sem pacote debaixo do braço. A doceria fechou, você disse, como se fosse uma fatalidade e eu tivesse de me conformar. Pois sim. A doceria fechou e você não procurou outra, nem outra marca de bombons, nem outro sabor. Você não quis se dar a um pequeno trabalho por alguém que fez tanto sacrifício por você. Não trouxe nada, mas queria levar tudo.

Você se desculpou. Mas na mesma hora eu entendi o que você queria dizer. Entendi que você tinha feito sua escolha, e não nego sua razão. Já passei por isso. Sou cascuda, aprendi a levar foras com dignidade. Mas se te digo que sentirei mais saudades dos bombons que de você, não leve a mal. É um exagero. Uma flecha lançada contra o seu amor-próprio. Coisa de menininha.

Você nega que a decisão esteja tomada. Seu mentiroso. Eu disse que não precisava voltar sem presentinho. Sem presentinho, você não voltou, mesmo. Assim seja. Será que você não percebia que meus pinotes e risadinhas eram jogo de cena feminino? Agora, pode deixar. Eu compro meus próprios bombons, quando tiver vontade.

11.1.08

Pessoas simples e gostos abstrusos


Certa vez, eu estava muito contente – lembro que, nesse dia, bebi um pouco além da conta –, graças a um jogo de futebol. Um triunfo sonoro, além de qualquer recurso, para cima de um tradicional e maligno rival. (Sim, sustento até hoje, com a maior seriedade, que forças demoníacas alimentam aquele clube.) Era uma final de campeonato, o juiz e o locutor torciam sem pudores para o outro time, mas goleamos mesmo assim. "Goleamos"? Não, eu não entrei em campo. Mas minhas poderosas emanações de torcida cumpriram a missão. E com sobras. Para resumir, todos os ingredientes de um alegre final de tarde esportiva estavam reunidos, ali, entre meus amigos e eu. À noite, quando tomei o rumo de casa, só queria que aquele instante se eternizasse.

Na chegada, o elevador fez escala no andar onde vivia, e ainda vive, uma curiosíssima e típica família alemã. Os homens, pai e filho, são bonachões, relaxados e, na verdade, um pouco ridículos. As mulheres, mãe e filha, ocupam o pólo oposto: rígidas, sisudas, intolerantes. Pois bem: na noite em questão, quem tomou o mesmo elevador que eu, de saída para algum jantar, foram os pais. A senhora, mais acostumada à minha postura sorumbática das manhãs, ficou chocada com o sorriso largo, o cumprimento efusivo e o bafo de cachaça. Olhos arregalados, perguntou-me se eu tinha acertado a centena e o milhar. Não, repliquei. Minha alegria era bola na rede e caneco na mão.

Como se poderia esperar de um casal tão antinômico, as reações foram díspares. Entre suas bochechas afogueadas, o velho teuto soltou uma breve risada e um lamento: "– Perdi o jogão! Me dei mal!" Já sua esposa, de quem sempre desconfiei ser uma agente infiltrada da Stasi, ergueu as sobrancelhas e desdenhou de minha euforia: "– Pessoas simples têm prazeres simples", comentou, e nada mais. Só me restou concordar com a justeza da observação, mesmo sabendo que, ao me chamar de simples, na realidade ela queria dizer que sou simplório.

Ofensas à parte, o único motivo pelo qual sei que não sou simplório é o fato de que, eventualmente, tenho inveja de quem é. Isso acontece quando me angustiam problemas abstratos, até metafísicos, que, espero, não podem me ferir de verdade. Ora, a única angústia do simplório é com o risco de ter um celular ultrapassado. Logo, não sou um deles. Desse risco, pelo menos, estou livre.

Mas não chega a me incomodar a idéia de ser uma pessoa simples, com prazeres simples. Acontece que conheço alguns prazeres bem complexos, intrincados, diria mesmo... abstrusos. E, para ser honesto, preciso confessar: não são assim tão prazerosos quanto parecem. Vale para o sabor de um Pauillac tinto, com seus taninos reforçados e o gosto que persiste. E vale igualmente para a compreensão, terrivelmente árdua, de uma frase de Marcel Proust com 481 palavras, que só adquirem um sentido inequívoco depois de relidas uma dúzia de vezes.

Não me entendam mal. Longe de mim recusar os prazeres eruditos. Mergulhar nos volumes do Tempo Perdido é uma delícia, e mais difícil do que fazê-lo é convencer os demais de que vale a pena. Mas é coisa arriscada, e exige mais força moral do que, propriamente, inteligência. Não é difícil conceber, até porque acontece quase sempre, o que pode se passar com uma alma tíbia que se entrega a esses prazeres exigentes. Pouco a pouco, sem perceber, o ser inocente vai absorvendo as coisas de que gosta, vai se tornando complexo, depois intrincado, até que... pronto. Tornou-se abstruso. Talvez seja o que aconteceu com minha vizinha, a agente da Stasi.

O espírito que é forte, além de inteligente, pode se enfiar até o pescoço nas delícias difíceis da alta cultura, que mesmo assim jamais abandonará sua simplicidade. Não será um bárbaro primitivo porque enche a cara depois de uma vitória de seu time; talvez o seja, se arranjar briga com uma horda rival, mas isso é outro problema. Tampouco é absurdo que aquele mesmo torcedor, que ontem dormia na calçada em posição improvável, hoje vista terno e discuta, entre os sábios do templo, as obras-primas de Fassbinder.

Aí está o erro da disciplinada senhora alemã. Pessoas simples têm, sim, prazeres simples. E estão corretíssimas. Já as pessoas complicadas, e que gostam de ser complicadas, essas precisam ser mandadas, na falta de casas de correção, para colônias de repouso. Um Spa moral, digamos assim. Para ver se recuperam um pouco de sua simplicidade, no lugar de murchar entre gostos abstrusos.

PS:
Dicionário Caldas Aulete –
abstruso: adjetivo.
1 Que se acha oculto ou encoberto: As conseqüências são claras, as motivações, abstrusas [Antônimo: claro, evidente, manifesto]
2 Difícil de entender (estilo abstruso); obscuro; intrincado.
3 Sem ordem, lógica, estrutura; confuso; incongruente [Antônimo: coerente, ordenado]

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