26.2.07

Seção versos subcutâneos: Varandas

Crédito da imagem: Yo mismo.

Está na margem
Está na amurada
E acompanha o passar das vagas que sabe frias
Que parecem vivas
E pressente por trás dos ombros
As fileiras de prédios com lanças e escudos
Chaminés e janelas
E nas janelas balcões e nos balcões flores
Mas ninguém às janelas para acompanhar o rio
Em seu curso as marolas
Que frias parecem
Vivas.

Vivas as flores
Respiram
As nuvens que vêm das entranhas dos carros
Parados querem partir para as casas ao longe
Nos subúrbios distantes do rio
Dos prédios varandas flores balcões
Está debruçado com a rua às costas
Está distraído vivo como as flores
Respira o quente o tóxico o fóssil
E pensa e morre poema pensando
E busca algum verso
No curso do rio.

Escuta a agonia
Dá conta dos carros
Engarrafados corre solto o rio
E neles haveria alguma poesia?
A mulher de terno vinho roendo as unhas
Abafada vai suada arranha o volante
Com as unhas que vai roendo
A mulher não é musa
A mulher é poema?
A mulher que quer parada
Partir para casa
A mulher de terninho.

Será poema
Esquecida chegada em sua rua tranqüila
Ao ralhar com seu menino insuportável
Ao questionar se deveria largar seu marido
Estará sem saber impressa algures
Como verso de vinho mordendo seus dedos
Entre as flores os prédios as ondas as águas
Com a mesma impaciência
O mesmo pensamento
A caminho logo antes
De acelerar e antes
De chegar.

Poema suspensa
Porque viva por acaso
Vista por alguém que não viu
Poeta entre as pontes e os postes lanças e escudos
Entre passantes que tampouco o viram debruçado
Nem a ela de terno vinho ao volante
Nem às flores as vivas ondas frias janelas balcões
E não imprimiram por sua tinta o momento
Que de único nada tem
Que revive as flores rio carros nuvens
Só o terno então vinho
Terá outra cor.

23.2.07

O dia em que fui apresentado ao mundo


No dia em que fui apresentado ao mundo, eu voltava para casa cansado e distraído, pensando com afinco na morte da bezerra. Acho que calculava alguma tolice, o espaço entre o trem e a parede ou o horário do pôr-do-sol. Quando enfim chegou o metrô, encaminhei-me para a porta na intenção de abri-la, os dedos estendidos mecanicamente para a maçaneta, como um parisiense nato. De dentro, porém, tinham-se adiantado a mim. A alavanca moveu-se sozinha e a porta foi aberta de um golpe. O estrondo me fez erguer os olhos, e eis que tomei um susto memorável, aquele que me apresentou ao mundo.

À minha frente, uma figura lisa e negra, pouco mais baixa do que eu, mas sem feições, verdadeiramente indeterminada. Uma mancha de breu constituída de algum material que custei a identificar. Uma representação, como naquele breve instante cheguei a imaginar, da morte, ali para buscar minha triste alma condenada. Mas essa idéia, graças a Deus, foi efeito do susto. A figura, na verdade, encarava-me apenas com um misto de pudor e enfado. Só queria que eu me apartasse de seu caminho e a deixasse descer para a estação. Fitava-me, essa assustadora criatura, de trás de uma tela que lhe deixava entrever um par bem feito de olhos negros e humanos.

A julgar pelas grandes pupilas, a maquiagem e o mistério intencional daqueles olhos profundos, concluí que só poderia ser uma mulher. Minto... Não foi pelos olhos que julguei. Sei bem que era uma mulher. Mas a experiência foi arrebatadora: nunca antes eu estivera diante de uma burca. Xadores, sim, já vi centenas; nesse mesmo dia, estive observando a maneira engenhosa como são atados, com o auxílio de grampos enfeitados e dobraduras complexas. Burca (e não me obriguem a escrever burqa), ainda não. Posso atestar que é marcante.

Digo que fui apresentado ao mundo nesse dia porque a burca é tomada com freqüência por um símbolo dos maiores vícios contemporâneos. É a imagem do extremismo encarnado na submissão da mulher, da mesma maneira que o neo-nazismo representa um renascimento das doutrinas de pureza racial (ou nacional), que se criam mortas, e os neo-cons americanos revelam que uma teocracia cristã não é uma idéia assim tão perdida na poeira da História.

Cada vez mais, parecemos habitar um mundo em que radicais têm o poder de interpretar leis à sua maneira, até subjugar povos inteiros e levá-los a concordar com a submissão. Em que países onde há fome endêmica gastam todo seu orçamento desenvolvendo armamento nuclear. Ainda nesta nossa pobre Terra, a maior potência econômica se recusa a evitar o colapso do planeta. Já no terceiro mundo, a espiral da violência é alimento de uma economia claudicante e corrupta.

A simbologia da burca, acredito, faz muito sentido. Tenho a impressão de que todo radicalismo expressa desespero; é a reação a uma adversidade conjuntural, em que um mundo bem estabelecido parece se esfarelar diante dos olhos do indivíduo, esse pequeno universo tão desamparado. Adaptar-se é difícil. Fácil é escolher um dos dois caminhos extremos: de um lado, o abandono irrestrito, melancólico, niilista. Do outro, o radicalismo reacionário, negativo, incapaz de aceitar o câmbio irrefreável dos eventos. Entende-se. É duro ser sensato ao perceber-se efêmero e contingente.

A burca se insere no segundo caso. Ecoa vagamente o esfacelamento do último grande império do Islã, o Otomano, ao final da primeira Grande Guerra. A perda do derradeiro centro cosmopolita arrancou à cultura muçulmana seu senso de unidade e entregou vastos territórios, às franjas do antigo império, nas mãos de chefes tribais incultos e violentos. O Afeganistão, capital da burca, é um notório exemplo, ainda que não fizesse de fato parte dos domínios turcos, apenas de sua esfera de influência.

Mas isso populações inteiras, desprotegidas, abandonadas à tirania desses pequenos déspotas. É triste, mas, de certa forma, normal. Como explicar, por outro lado, os olhos graves que me encararam no metrô de Paris? Mesmo sem ter visto nada senão olhos, sei que a mulher que os dirigia a mim é jovem, instruída e nada provinciana. Apressada, como é típico nos grandes centros urbanos, ela desceu do trem com a agilidade de quem está no auge da forma física e conhece o terreno em que pisa.

Por que, então, a burca? Por medo da família? Por falta de oportunidades fora da comunidade? Por convicção? Talvez seja apenas uma forma de afirmar uma identidade. Não quero aqui comentar o recente debate, em muitos países europeus, sobre a proibição dos véus islâmicos, sobretudo os que, como a burca e o nicab (ou niqab), cobrem o rosto da mulher. (Na Holanda, e agora no Reino Unido, a justificativa é que terroristas podem vesti-los para melhor disfarçar suas bombas. Na França e na Turquia, este último um país islâmico e antiga sede do já citado Império Otomano, recorre-se à laicidade do Estado.) O que me interessa é que a própria idéia do multi-culturalismo liberal do Ocidente está em jogo.

A burca é um símbolo visível e impactante. Mas eu poderia perguntar, também, por que os cabelos raspados dos jovens altos, louros e bem alimentados; por que as jaquetas de couro negro, por que as calças apertadas? A moda entre os rapazes cuja linhagem se traça até Carlos Magno é raspar todo o pelo do corpo. Barba, nem pensar. Tudo para potencializar a diferença em relação aos outros, árabes, negros, imigrantes. A reação desses últimos é proporcional: cultivam o cabelo da cara com dedicação crescente.

A porta está claramente escancarada para as radicalizações. As vozes contrárias estão cada vez mais abafadas e desacreditadas. Assim como o velho império turco desmoronou, também está rachada a estrutura da cultura humanista ocidental. O que virá disso? Não sei, mas a violência está inclusa, com toda certeza. E como vai acabar? Certamente, mal.

21.2.07

Carnaval no cemitério

Créditos das fotos: Yo mismo!

Esta semana, recebi várias mensagens perguntando se aqui tem carnaval. Acho que esperam uma resposta direta: não, aqui não tem carnaval. É uma terra fria e triste em que as pessoas se guardam dentro de casa e só saem para ocupar as mesas dos cafés. Pois saibam que, sim!, no calendário das festividades está claramente designado o período do carnaval. Aqui tem carnaval!

Como é ele? Como aproveitá-lo? Simples: basta comprar uma passagem de trem para Veneza. Afinal, o carnaval cai justamente no meio das férias de inverno, a Itália não é tão longe, é menos fria e tem uma festa mais... animada.

É engraçado pensar que o carnaval pode chegar em pleno inverno. Dá para pensar em serpentina, confete, marchinhas, bailes e blocos numa situação em que a fantasia mais criativa não dispensa cachecol e luvas? Para os foliões viciados que só voltam na quarta-feira e não tiram nem o sapato, resta uma opção: procurar seus semelhantes, pessoas com "know-how" da gandaia: bem entendido, outros brasileiros. Cheguei a propor a amigos a formação de um bloco, mas a idéia não avançou porque não baixou em ninguém o espírito de Zé Pereira. Pena, pena.

Para compensar o inverno inclemente, só o aquecimento global. É verdade que no ano passado ele não deu as caras e o frio foi respeitável. Mas desta vez ele brindou o carnaval com a temperatura mais alta de 2007: 15oC no domingo. Os locais são incapazes de se lembrar da última vez em que fevereiro esteve tão quente. E lá foram os foliões gauleses ocupar as calçadas dos cafés. Eu, aproveitando que as calotas polares ainda não sumiram de vez e, afinal de contas, é carnaval (ê, laiá!), resolvi sair da toca e passear um pouco.

O destino me levou ao cemitério de Montmartre, poucos passos abaixo da igreja homônima e não muito longe de casa. Antes que me condenem pelo sacrilégio, não levei repique, nem rebolo, muito menos meu cavaco. Levei, sim, minha mulher e uma máquina fotográfica que ganhei de brinde, bem furreca mas que quebra um galho. Por que Montmartre, e não os badalados Père Lachaise e Montparnasse? Ora, além de mais perto, este é menor, arborizado, acolhedor (creio) e tranqüilo. Não há hordas de turistas atrás da minúscula lápide de Jim Morrison, por exemplo.

Lá passei o domingo gordo, talvez num protesto inconsciente por não estar no Bola Preta ou no Farol da Barra, nem mesmo no Bar do Cidão. Em vez de batucada, enfiei-me no silêncio dos monumentos de pedra, guardando há mais de século as sobras dos clãs da alta burguesia.

Também é pouso para o poeta alemão Heinrich Heine, e o bailarino ucraniano Vaslav Nijinski, além de Stendhal, Berlioz, Truffaut... Zola, aquele que acusa, também esteve por lá, mas, depois que subiu de vida, mudou-se para o Panthéon. A sepultura, porém, segue intacta, em mármore rosado e encimada por um busto imponente. Fica provado que, no fim, não era bem um socialista.

Outra particularidade desse simpático jardim de descanso é que, um belo dia, resolveram construir um viaduto por cima dele. Tudo bem, é só um cantinho. Mas de grande ironia: algumas tumbas um tanto luxuosas ficaram espremidas debaixo do aço, e seus ocupantes, outrora ricaços da Place Vendôme, dormem (eternamente) debaixo da ponte. Por exemplo, o pensador da fotografia, que parece ter sido alguém importante, mas virou alvo dos pombos sacanas.

Em um determinado momento, senti que me flagrava em plena tietagem. É curioso: os famosos em vida pouco me interessam, mas me divirto ao encontrar tumbas de grandes nomes do passado. Macabro? Desejo secreto? Boa pergunta. Nunca tirei foto com a Sharon Stone ou o Bruce Willis, mas registrei a escultura de Alexandre Dumas (o filho) dormindo, dedos dos pés decepados pelo tempo.

Assim foi meu carnaval que passou. Não teve Pierrot, nem Lança-perfume, nem estandarte. É meu primeiro tríduo momesco nos corredores da eternidade. Confesso que não foi assim tão ruim, mas é claro que eu preferiria o Sovaco de Cristo. Não se pode ter tudo.

15.2.07

Falando mais claramente

A comoção só se mostra maior, cada vez mais profunda. Traz à tona nossos instintos mais crus, aqueles que nos remetem à carne de que somos feitos. É difícil controlá-los, queremos expulsá-los de nós, precisamos dar vazão à força cega que geramos no peito e que nos consome. É claro que não somos racionais o tempo inteiro.

Nessas horas, dizemos a primeira coisa que vem à cabeça. É natural que seja assim, temos o dom da fala mas nem sempre o domínio da razão que a gera (curiosamente, os gregos tinham a mesma palavra para designar a fala e o pensamento: logos). Nessas horas, também lemos o que queremos, e nossa pulsão irrefreável nos conduz a trucidar qualquer voz que tente nos trazer à razão e nos concitar a ações mais úteis do que as gritarias ensandecidas. Num primeiro momento, esses clamores são estéreis e algo singelos, mesmo quando reclamam sangue para pagar mais sangue. Esse ódio, essa obliteração dos sentidos, depois que soterra em definitivo a razão, se torna perigoso, transforma seres humanos em uma massa violenta e disforme, pronta para se entregar ao mando do primeiro grande líder, guia, timoneiro ou como queiram designar-se.

Sim, isso já aconteceu mil vezes na História. As massas ignaras, ainda que formadas por povos cultos como o alemão e o russo, já se entregaram a seus rancores e alçaram ao poder monstros como Stalin e Hitler. Mas esses monstros não eram adolescentes bárbaros; eram homens formados, dotados de discurso, carismáticos, capazes de seduzir todas aquelas pessoas de bem que só precisam de alguém que dirija seus hormônios para alguma válvula de escape. Massas tão cheias de ódio quanto nós estamos hoje.

Nunca na história alguém foi capaz de, pela palavra, trazer de volta as pessoas ao juízo. Mas continuamos tentando. Várias vezes já ouvi que cada um nasce com uma missão. Não sei se é verdade; se for, não sei se nós mesmos podemos escolhê-la. Mas se pudermos, já tenho uma opção para mim: combater o obscurantismo que cresce como hera pelas vigas da consciência na maior parte do mundo por enquanto ainda civilizado, mais particularmente no Brasil. Se você acredita que o contrário de guerra é guerra, o de barbárie é barbárie e que sangue se lava com sangue, meu assunto é com você.

Portanto, tentarei ser mais claro. Criminosos devem ser punidos, justiça deve ser feita. Evidentemente. Mas a Justiça só existe onde há lei: uma lei que faça sentido e responda aos anseios da sociedade. Eis o princípio básico da sociedade liberal moderna. A idéia de justiça com as próprias mãos é muito impactante nos filmes de Hollywood, mas na vida real é o caos, mais adaptada à bandidagem do que a Estados bem sedimentados.

Não serei eu, repito, a defender criminosos; muito pelo contrário. Eles devem ser julgados e encarcerados, de acordo com os princípios do Estado de Direito. Isso se chama civilização. Tortura, morte lenta e coisas do gênero chamam-se barbárie, e vigeram durante um longo período da história, notadamente na Idade Média. Não são uma solução e não significam nada a não ser o fato de que retratam a mesma ordem social que fomenta o crime em primeiro lugar. Assim como queremos derramar o sangue dos nossos criminosos, eles querem derramar o nosso. De derramamento em derramamento, onde vamos parar?

Só terá paz uma sociedade que promova a paz em todos os seus domínios. Se no Brasil os professores não educam, os empresários não investem, o parlamento não legisla, os juízes não respeitam a lei e a polícia a quebra, o que se poderia esperar, senão a bagunça em que vivemos? Qual é a surpresa? Desculpem a honestidade, mas é piada querer resolver a situação exigindo a redução da maioridade penal. Qualquer um sabe que é só mais uma canetada, e não estou dizendo que ela deve ficar nos 18 anos, nem subir para 30, nem descer para 12. Digo, sim, que é uma perda de tempo e uma ótima maneira de manter o mesmo status quo, aparentemente muito confortável. E deve ser, mesmo: se os brasileiros são tão ávidos por sangue, ei-lo. Mudar alguma coisa seria estragar a festa.

Eu não gosto de banho de sangue, nem de país dividido. Não quero relativizar nada: quero acabar com a barbárie. Quero meu país civilizado, para que possamos andar tranqüilamente pela rua. Todos os brasileiros, não apenas aqueles que se vêem no direito de considerar-se algo mais do que os outros. Se você acha que a melhor maneira de combater o crime é atirar pela janela as conquistas mais preciosas e árduas da civilização, sinto informar: você está do outro lado, a um passo de cometer atrocidades tão graves quanto as que fazem seu sangue ferver nas têmporas. Aí, aqueles tais direitos humanos, que nunca, jamais, tiveram um mínimo de aplicação no nosso país, vão fazer falta.

14.2.07

De primatas a monstros


São animais, grita a sociedade, outra vez comovida. Um novo crime bárbaro, uma morte inaceitável; mais uma vez, o brasileiro clama por justiça e paz. São animais, os assassinos do pequeno João Hélio. Não sentem remorso, nem vergonha. Animais, os adolescentes capazes de trucidar um menino de seis anos sem motivo, isto é, em um assalto que é quase uma brincadeira inconseqüente. Frios, insensíveis. Agora, em revolta, só nos resta concluir: não podem ser humanos.
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É impossível seguir assim, repetimos. Temos de combater a barbárie em nossas cidades. E clamamos novamente: reduzam a maioridade penal, metam na cadeia o animal de 16 anos que não tem coração. Os mais velhos? Ora, enforquem-nos! O Largo da Carioca seria um excelente lugar para instalar um cadafalso. Encarapitado no morro de Santo Antônio, o público ávido de espetáculo poderia acompanhar todos os passos do evento: o rufar dos tambores, a carroça que chega, os guardas conduzindo um condenado que, sob vaias e escarradas, implora, esganiçado, por misericórdia. Ao vivo, para todo o país, pela televisão.
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Eles não são humanos. Mas então, o que são? Animais. São uma outra espécie, à qual falta a diferença específica da humanidade. O humano, já sabemos, é civilizado. Os animais não são. Os homens têm cultura, têm leis e têm educação, e com isso o homem se faz diferente das demais criaturas. Certo? Aos monstros, capazes de atrocidades as mais ignóbeis, faltam essas noções. São aberrações, são quimeras: expulsem-nos do nosso convívio. Afastem-nos de nós, os civilizados.
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Mas talvez seja o inverso: talvez esses monstros sejam os humanos, e nós, civilizados, os animais.
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Acontece que as tais características da essência humana são cada vez menos delimitáveis. Animais também têm cultura, educação e até leis, ainda que não codificadas. Sabe-se, por exemplo, que grupos de gorilas separados apenas por um rio desenvolvem hábitos, códigos e ferramentas diferentes. Mas cultura nada mais é que a faculdade de diferenciar costumes em grupos isolados da mesma espécie. Orangotangos mais velhos, sentados nas clareiras, transmitem aos mais novos o uso de instrumentos e os costumes do clã. Exatamente como numa sala de aula. Finalmente, chimpanzés excluem do convívio, num verdadeiro ostracismo, os indivíduos que se mostram incapazes de seguir o padrão comportamental, isto é, as leis. Mas, ora, macacos jamais arrastam suas proles friamente, até a morte, pela mera posse de um objeto. Nem mesmo um automóvel.
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Os outros primatas possuem quase a mesma capacidade, por exemplo, de organizar grupos e partir para guerras territoriais. Chimpanzés criados como humanos desenvolvem linguagens gestuais e pintam telas. O que nos diferencia deles? O que nos torna superiores? Nós, que filosofamos, esculpimos, cantamos, construímos pontes e atravessamos momentos gloriosos como o Iluminismo e a Renascença, mas igualmente tenebrosos, como o nazismo e a inquisição?
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Durante a maior parte de sua existência, o homo sapiens sapiens pouco fazia além do que fazem hoje chimpanzés, orangotangos e gorilas. Tínhamos, sim, uma caixa craniana maior e uma linguagem mais desenvolvida. Mas não escrevíamos tratados, não debatíamos o Estado, não possuíamos seguridade social. Nada levava a crer que hoje poderíamos considerar desumano matar friamente uma criança. Mesmo depois que algum milagre fez surgirem as pinturas de cavernas e o domínio do fogo, a tal civilização demorou a chegar. Depois que chegou, lenta foi sua evolução rumo à tolerância e ao controle. Tivemos Goebbels, Torquemada, Herodes, Stalin. Essas figuras nefastas da história humana são muito menos improváveis, muito menos extraordinárias do que as opostas: Sêneca, Voltaire, Martin Luther King, Gandhi. Esses, sim, são verdadeiros milagres.
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A civilização não é inerente ao humano. É uma conquista árdua, adquirida de forma traumática e cruenta em passos lentos, caminhados durante trinta séculos, senão mais. Como qualquer conquista, está a todo momento ameaçada e exige um esforço constante para sobreviver.
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Os criminosos que arrastaram João Hélio são incivilizados, por certo. Mas não são menos civilizados, tampouco menos humanos do que o engenheiro que culpa o solo pelo desastre do metrô. Ou o governador que desvia verbas da educação para seu projeto pessoal de comandar um país esfrangalhado. E não são menos humanos do que nós, vestidos de branco pela paz, ou preto pelo luto, exigindo de vagas autoridades, encasteladas numa cidade perdida no deserto, uma atitude: esquartejar em praça pública aqueles que não reconhecemos no espelho da espécie.
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Se nosso país é capaz de produzir esses monstros, esses governadores, esses engenheiros, é porque nosso esforço de civilização já foi por água abaixo. Significa que não cuidamos mais de nos afastar dos primatas da floresta; não estamos dando atenção àquilo que reconhecemos como propriamente humano. Se uma parte da nossa sociedade pode ser definida como não-humana, então a sociedade inteira o é. Esses monstros, esses animais, são, sim, membros da nossa sociedade. Em outras palavras, cidadãos. Qual é o fator que transforma esses cidadãos em monstros? É isso que cabe investigar. Lá estará a falha primordial da civilização a que nos orgulhamos de pertencer.
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Não adianta querer excluir de toda a espécie humana esses criminosos brutais. Estamos ligados a eles pelo próprio laço que cremos romper. Mas esse laço, que é a humanidade e sua civilização, prende a todos. Se uma parte é atirada fora, todos são tragados. Eliminamos do nosso ideal civilizatório uma parte de nós, e o batizamos como "eles". Pois: eles derramam nosso sangue, nós derramamos o seu. A única vantagem dos que se incluem do lado do "nós" é poder se dar ao luxo de chamar a "eles" de animais.

7.2.07

Por quê? Por isso.

Crédito das duas imagens que acompanham o texto: Bruno Maneschy. (http://bmaneschiarte.arteblog.com.br/)
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...................Imagem: Paulo Osrevni. Click sobre botão.
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Meu velho amigo e companheiro de arquibancadas Oraco, jornalista e blogueiro antigo das areias de Copacabana, postou no seu "The Perfect Eye" (não sei usar hyperlinks. O site dele é oraco.wordpress.com) uma pergunta interessante: "por que você bloga?". Ele dá sua resposta, quem tiver interesse que vá conferir. Oraco convoca também alguns amigos a responder, entre eles, eu, intimado a tocar no assunto.
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Confesso que tremo diante de qualquer pergunta que comece com "por quê". Na minha vida, sempre agi, quando agi, por uma espécie de impulso convicto, uma certeza injustificada, mas sedimentada, de que estava dando o passo que deveria ser dado. Não é que eu seja um irracional, muito pelo contrário. Mas é como se a minha razão estivesse alojada em algum departamento distante do meu cérebro, ou da minha alma, e apenas transmitisse suas ordens ao centro dos meus impulsos, fim de papo. O departamento manda, eles obedecem, como se meu sistema nervoso fosse uma enorme repartição pública. Por quê, então, é uma questão incômoda.
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Por que posto, então? Por que "blogo" (e acho que as aspas nesse verbo bizarro já não se justificam)? No começo, a resposta era simples: eu queria experimentar. Todo mundo que gosta de encadear frases já tinha aberto seus espaços há mais de ano, só o panaca do Paulo continuava com seu caderninho e caneta. Todos jogavam "links" uns para os outros, e eu não era "linkado" por ninguém, pelo menos não no sentido cibernético. Eu era um ultrapassado. Um dinossauro. Um excluído digital.
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Bom, mas isso, continuo sendo. Não sei nem colocar as palavras em itálico! Outro dia me ensinaram, tentei e não deu certo. Desisti. Não sei colocar hyperlinks, o que não é problema, porque detesto estar em plena leitura pacífica de um texto e de repente ele ser interrompido por palavras azuis que me desconcentram e tiram o prazer da leitura. Tenho dificuldade para colocar as imagens nos textos, quero às vezes dar uma cara um pouco diferente para o post e não tenho sucesso... Bom, por aí vai. Sou um dinossauro dos blogs!
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Mas tenho um: isso ninguém pode negar.
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Blog experimentado, por que continuar? Gasta-se tempo com as postagens que poderia ser dedicado a outras coisas. Conquistar a Gália, por exemplo. Mas a Gália já está conquistada há muito, e não sou nem César, nem Bismarck. Só me resta ser blogueiro - e desta vez não vou meter as aspas.
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É interessante, aliás. Falamos em ser blogueiro como se falaria em ser padeiro ou marceneiro. Como se fosse uma profissão ou uma classe social. Blogueiro não é nada disso: aí encontro uma resposta possível à pergunta do Oraco. Não ganho por blogar, apesar de ter aderido ao "adsense" num momento de desespero orçamentário. Meu blog é, no fundo, meu grito de liberdade. Na vida real, com meu nome real, sou obrigado a escrever de acordo com uma série de parâmetros. Rígidos, sim. Corretos, também. Importantes, mais ainda. Ao contrário, o blog não me prende a parâmetro algum. Tenho todo o direito de publicar poemas com palavras que não existem, contos de três linhas e artigos intermináveis (ou, por que não, efetivamente sem fim?). Posso colocar uma fotografia, atentar contra a gramática, usar mesóclises (blogar-se-vos-ia?) ou palavrões, atirar idéias sem submetê-las antes ao crivo do meu próprio senso crítico, muito menos ao olhar rigoroso de algum terceiro. Nada contra editores, orientadores e críticos, que são fundamentais, cada um em sua área. Mas o blog é território proibido para eles.
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Não concordo com Oraco quando ele condena os textos longos. No blog, nada se condena, nada se aprova. Lê quem quer, e não pretenderei criar um "best-seller" via blog. Talvez isso fosse possível, mas não sei se é desejável. Afinal, sou um dinossauro ou não sou? Não há retrancas na internet. Ninguém pede 40, 50 centímetros, lide, "abstract" em inglês, índice... Nem é preciso responder a perguntas ou dar um encadeamento lógico. Ao falar de restaurantes e bares, por exemplo, faço questão de não dar o endereço, para não parecer uma reportagem ou crítica gastronômica. Deixo links para quem conheço e para quem considero interessante, mas tenho preguiça e não "linko" nem metade dos blogs que leio com prazer (eu mesmo me censuro por isso). Clica nos links quem tiver interesse, assim como pode-se chegar ao meu blog pelos links que me dão. Fica-se enquanto se quiser.
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Para mim, blog é liberdade. Anarquia, dirão? Freqüentemente. Mas não se resume a isso. Ainda existe o reino organizado do papel, com sua extensão na internet normal de "sites" e portais. A anarquia está apenas no mundo dos blogs, para quem tiver o ensejo de explorá-lo. Há que ter paciência e coragem, mas ganha-se algo. Aprende-se, experimenta-se, conhece-se todo tipo de gente. A maioria não vale a pena, dizem. Admito, é uma verdade. Mas em que isso faz da tal "blogosfera" algo diferente do mundo exterior? Nele, também, a maioria não vale a pena.
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Mesmo o mundo dos blogs não é assim tão anárquico. Com o tempo, grupos se formam, mesmo que involuntariamente. Pelo sistema de links, criam-se, paulatinamente, bolhas ("clusters", diriam os mais atualizados) de páginas afins, seja por gosto ou por semelhança. Dentro de cada bolha, o leitor está a salvo da anarquia tempestuosa. Poetas debatem com poetas, jornalistas lêem repórteres, cronistas buscam contistas, adolescentes fúteis vão atrás de suas semelhantes. Não é a anarquia que pode parecer.
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Mas é livre. Do meu ponto de vista, pelo menos. Inventei um sobrenome certo dia para poder separar minha vida real, e a profissional, do meu blog. Tomei gosto. Estou quase abrindo um blog com meu sobrenome real, mas nem por isso encerraria as atividades do "Para ler sem olhar". Com meu verdadeiro sobrenome, eu não poderia escrever o que quisesse, com o tamanho que quisesse, sem revisar os textos e assim por diante. Osrevni está aí para cumprir esse papel. Isso, para mim, é blog. E se algum dia essa liberdade for perdida, volto a sujar os dedos de tinta.

4.2.07

Seção versos subcutâneos




Um poema que desmancha à medida em que se entrega à correnteza.


O Rio

Você se debruça pelas frestas das pedras. Lacrimeja a garganta, enquanto o vento sopra na nuca. Sorria. Sorva o tempo. Frua a vida. Isso é possível. Mas não é possível segurar os cristais, nem festejar as fadas.
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O rio

Você se debruça pelas frestas das pedras.
Lacrimeja a garganta, enquanto
o vento sopra na nuca.
Sorria. Sorva o tempo. Frua a vida.
Isso é possível.
Mas não é possível segurar os cristais
nem festejar as fadas.

o rio
você se
debruça
pelas
frestas
das pedras
lacrimeja
a garganta
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o vento
sopra
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sorria
sorva
o tempo
frua a
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segurar
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nem festejar
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