29.9.07

Para os últimos miseráveis


Já virou madrugada. Alguns gatos-pingados insistem em vagar pela plataforma, esperando o último metrô. Ainda terão de perambular, os algarismos amarelos avisam, por mais oito minutos. Na superfície, reinam o vento e a chuva. O outono começou na data precisa. Os casacos, sobretudos e capas de chuva são negros, cinzentos, pardos. Reforçam a monotonia do ambiente, decretada pela luz fria e os tijolos pálidos. Os sapatos de quem vai chegando, sempre em passo arrastado, trazem notícias das condições melancólicas do exterior. Deixam no chão as marcas da cidade, como cartazes de propaganda. Uma trilha de pegadas, molhada e suja. Uma folha amarfanhada de jornal. Uma poça d'água que reflete a luz inconstante da lâmpada. Uma mancha de terra, quase lama, torna opaco o chão de piche.

Os casais não conversam, o grupo de adolescentes não se esganiça, os jovens estudantes que retornam, solitários, dos bares e restaurantes onde cavam seu parco orçamento, encolhidos nas cadeiras espaçadas, deixam pender as cabeças sobre os livros que pretendiam ler. O placar luminoso vai, pouco a pouco, acrescentando ao relógio os minutos que subtrai do cronômetro. Mas é lento. Transmite falta de esperança e uma estranha dor de enfado. Alguns, sem dizer palavra, têm a impressão de que a realidade se congelou. Outros deixam escapar suspiros e rejeitam qualquer impressão concreta, por desagradável.

Há muito ficou para trás o horário da loucura, em que os trens chegam um atrás do outro, as pessoas se empurram para entrar, sair, sentar-se. Para toda uma cidade, o dia terminou há muito. São horas de não estar. Mesmo os músicos anônimos, que se revezam entre vagões e estações, guardaram seus instrumentos e tomaram o caminho de casa. No meio da semana, só os irresponsáveis trocam o dia pela noite. E os miseráveis. Na extensão da plataforma, miseráveis e irresponsáveis não se deixam confundir. Mas é impossível evitar que se confundam suas faces, seus nomes, suas memórias.

A ponto de se converterem em massa despossuída, disposta a abjurar sua humanidade insustentável, cortam-se os liames de musgo que arriscavam fundir esses restos de almas. Quantos, ali, identificarão o milagre? Somente, é certo, os que abraçariam em gozo a loucura. No sentido inverso ao de todos os colegas, um homem vem instalar-se com seu estojo negro no último canto da plataforma. O último canto, aquele até o qual nenhum passageiro preocupou-se em caminhar. Um homem que já passa da meia-idade, olhos e lábios do extremo-oriente, cabelos curtos que disfarçam em vão a calvície de seus anos. Movimentos lentos, fazem lembrar uma dança. Do estojo, quando o abre, salta um instrumento que seus dedos parecem apenas sustentar, não conduzir. O bojo tem as dimensões e a aparência de uma cuia grande. O braço é uma tira frágil de bambu envernizado. Apenas uma corda se oferece para produzir toda a música. Em seguida, surge o arco. O velho chinês sustenta seu instrumento sobre os joelhos, com a mesma atitude cerimoniosa que exibiria diante de um público vasto e interessado. Apresentar-se para os últimos infelizes lhe é indiferente. Em nada menos honroso do que qualquer outra platéia.

Toda a cena passa desapercebida dos viajantes impacientes. Mas é impossível, e não seria justo, que, por cada uma daquelas espinhas encurvados, um calafrio de choque não passe, quando a fricção de corda e arco lança pelo túnel as primeiras freqüências pungentes. Uma melodia de escalas desconhecidas, trazendo a estampa de outro mundo, oposto a este. E, nesse buraco abaixo de todos os bueiros, qualquer outro mundo é um alento. As pessoas não se voltam para o músico. Antes, mantêm-se nas mesmas posições, como se congeladas. Não à toa. O estranho concerto não tem lugar no ar entre os corpos encolhidos. Seu ambiente são os espíritos aprisionados e opressos. Ali dentro, espectador algum pode manter-se indiferente.

O que espera esse homem, quando põe a acompanhar seu instrumento uma voz forte e colocada, cantando em mandarim ou nas línguas dos cãs? Não há de ser as moedas, que os miseráveis do final dos trabalhos não as têm. Pode-se fantasiar que ele atribua a seus sons algum poder mágico, como teriam sustentado os idealistas da arte. Mas o homem não tem a postura de quem reivindica um título de profeta ou xamã. Vêem-se no pescoço magro, debaixo da pele áspera, as veias que saltam quando ele canta, de olhos fechados.

Parece, sim, alguém que, vivendo de sua música, existe para ela. Sentindo-se compelido a tocar naquele espaço lúgubre, naquele momento improvável, obedeceu. Tomou seu estojo, levou-o à estação e dedicou-se a seu trabalho. Não pôde fazê-lo por mais de cinco minutos, até irromper pelos trilhos o peso grosseiro e agressivo da composição. Foi o bastante.

26.9.07

Cilada e cinema


Escorreguei para o mundo do crime. Foi sem querer. Culpa das más influências. "Dize com quem andas e te direi quem és". Pois bem. Sou um fora-da-lei. E tudo aconteceu quando convidei um amigo para passar a soirée em casa. Era uma noite calma de agosto. Não passava alma pela rua. Jamais poderia supor que algo de anormal fosse acontecer. Nem mesmo a ventania, um pouco mais forte do que o habitual, me soprou um alerta ao ouvido. Céus, como eu estava enganado!

Meu amigo havia acabado de pousar em Roissy. Quinze horas mais cedo, perambulava pelo Galeão, incógnito, esperando a hora de seu vôo. Não sei se assoviava, nem se usava óculos de sol; o certo é que ninguém desconfiou de nada. Não sabiam que, atrás da expressão limpa de um viajante comum, escondia-se um criminoso frio e sem escrúpulos. Como poderiam imaginar o que havia dentro de sua bagagem de mão, acompanhando-o para cima e para baixo, entre executivos e turistas, lojas e restaurantes?

Era nada menos do que o objeto que me introduziu no submundo. Contra minha vontade, como eu disse. Um objeto achatado, mais ou menos um palmo de largura. Aconteceu há pouco mais de um mês. Conto essa história agora porque não posso mais conter a aflição e o remorso que me vão corroendo o fígado. O amigo já chegou em minha casa com o elemento ilícito na mão esquerda. Nem ao menos a preocupação de escondê-lo dentro de um saco. Quanta desfaçatez! Na mão direita, uma garrafa de vinho. Como se aquela ainda pudesse ser só mais uma noite normal.

Ah, que vinho amargo! Não vou, é claro, dar o nome desse pilantra. Vou chamá-lo de Sr. X, para que não me apontem como cagüeta, mas também porque passa uma impressão algo mais dramática e digna de Poe. Pois esse Sr. X, traidor, depois dos abraços de praxe de quem não se vê há semanas, anunciou a intenção criminosa: "Trouxe um filme pr'a gente ver!" Àquela altura, bem me lembro, ainda inocente das maldades deste mundo digital, não percebi a presença da contravenção. Só fiquei animado.

Fui o dito otário. Perdi. Se lesse com mais atenção os jornais brasileiros, estaria informado de que o filme em questão não havia sido, ainda, nem lançado no cinema. Mesmo assim, todo o Rio de Janeiro já tinha visto "Tropa de Elite". Naquele momento, do outro lado do Atlântico, ao inserir o disco no aparelho, eu me tornei apenas mais um a sujar as mãos. Daqui por diante, viverei nas sombras.

Agora que já fiz minha penitência pública; agora que já confessei o crime e expliquei como é possível que eu tenha visto um filme que acabou de estrear oficialmente no Festival do Rio, sinto-me mais leve e, por conseqüência, livre para dar uma palavrinha a respeito. Ou, antes, duas palavrinhas, porque já comecei a bolar uma entrada, também, para o outro blog, o Cálculo Renal. Quem sabe, assim, não consigo compensar um pouco minha rápida derrapada para o lado obscuro, ao convencer dois ou três internautas a pagar ingresso pela fita de José Padilha?

Primeiro: fiquei muito impressionado com a qualidade do filme. É tão bem feito que nem parece brasileiro, e são poucos os momentos que entregam os vícios de nosso cinema atual, sobretudo no que tange às atuações. E foi isso, o que mais me impressionou: os atores são muito bons nesse filme. Aleluia! Wagner Moura, por sinal, está impecável como capitão do famigerado Bope. Tão convincente que apaga a péssima impressão que me causou o tal "Deus é Brasileiro", de Cacá Diegues. Ou melhor, não apaga. Aquilo é um desastre absoluto...

Caio Junqueira, como um dos candidatos a novo oficial de elite, chegou a me dar a impressão, no início, de que não sustentaria o papel. Ledo engano, caro amigo. Sua transformação em máquina de triturar bandido é uma das melhores coisas do filme, digna de prêmio. Quem dera, esse esmero fosse generalizado nos atores do cinema brasileiro! Daria muito mais gosto sair de casa para vê-los, não?

Mas os elogios vão além das atuações. A produção é excepcionalmente rigorosa, considerando a prática corrente do chamado "cinemão" do Brasil. As cenas de batalha (não há outra forma de designar o confronto entre policiais e traficantes), o baile funk e o caos urbano do Rio de Janeiro são reproduzidos com um cuidado redentor. É um alívio para quem não agüenta mais a estética chupada da televisão, sempre ela, que impregna mesmo os filmes que, até segunda ordem, estão livres dos tentáculos da Vênus Platinada.

O roteiro, baseado em livro homônimo, tende a um certo deslumbramento com os "Caveiras", seu rigor e sua truculência. É compreensível; afinal, é o ponto-de-vista deles. Fora esse detalhe, é um texto muito bem trabalhado, apesar dos mesmos velhos truques batidos que contaminam qualquer projeto em que Bráulio Mantovani e sua patota metem o dedo. Mas isso é uma ressalva, não uma condenação. A história é muito bem contada.

Da tropa em si e seu significado em termos sociais e políticos, deixo para tratar no texto que pretendo escrever para o Cálculo Renal, que é mais propício para esse gênero de reflexão. Se tudo der certo, vai para a rede ainda hoje; mas já sei que nem tudo dará certo, então deve ficar para amanhã mesmo. Avisarei com antecedência.

ATUALIZAÇÃO: Finalmente, cumpro uma promessa blogueira! Está pronto o texto do Cálculo Renal. Longo à beça, como sempre. Estão convidados.

24.9.07

É hora de indicar bons blogs


Periodicamente, é necessário tomar um desvio das nossas metas. Sói interromper as atividades centrais da vida para cuidar de estruturá-la e ajustar detalhes que, à primeira vista, parecem pouco importantes, mas fazem uma diferença enorme no cômputo final. Creio que todos concordarão. No meu caso, fazendo jus ao título de "fã dos fractais", acredito que o mesmo princípio valha para o micro-universo do blog. Eventualmente, cumpre fazer mudanças, ajustes, limpezas, verdadeiras faxinas.

E aqui vai uma confissão: tenho sido muito lento nisso tudo. Se os fractais, em sua lógica toda mística, estiverem corretos, meu passo de cágado na reorganização do Para Ler Sem Olhar é reflexo de uma dificuldade mais profunda em garantir os princípios de funcionamento de minha existência como um todo. Não sei. Não posso garantir. Sinceramente, prefiro não tocar nesse assunto agora...

Volto à vaca fria. Alguns passos já foram tomados. Primeiro, criei uma lista com alguns textos mais antigos, para servir de referência. Depois, inaugurei o Cálculo Renal. Mais adiante, mudei a cor de fundo. Nada muito complexo, é claro. Instalei o Haloscan para os comentários: enorme revolução. Matei Paulo Osrevni, e não corro risco de ser preso, porque já estou no exílio. Mas ainda falta muito: criar um novo cabeçalho e aprender a aplicá-lo, por exemplo, é um sonho antigo. Mas isso, sei que não vou conseguir fazer sozinho, então espero alguma boa alma que me oriente.

O passo em que estou agora é a reforma dos links, ligações, liames (como preferir). Os que ainda aparecem aí ao lado, fora alguns acréscimos esporádicos, são os mesmos que inseri nos primórdios deste blog, quando aprendi o caminho das pedras do blogroll. Alguns nem existem mais; outros são, francamente, medíocres; outros, nem lembro de quem são e, finalmente, alguns não têm o destaque que merecem.

Mas o principal é que há muita coisa que leio com regularidade, mas andava deixando passar a oportunidade de "linkar". Quero, hoje, pagar uma parte dessa dívida, pelo menos. Em alguns poucos parágrafos, juro. Como os blogs são muitos, e não quero incomodar o leitor, vou me limitar, por hoje, a quatro. E escolho um tema, a ser desrespeitado o mais rápido possível: a fotografia. Vamos a eles, pois.

Literatura e Rio de Janeiro: O blog de Ivo Korytowski parece feito para quem está longe do Brasil. O blogueiro carioca publica fotos de sua ainda incomparável cidade. Não são, claro, as obviedades da Zona Sul, calçadão em Copa, biquíni em Ipanema. São os antigos sobrados do Centro, os tesouros escondidos nos subúrbios, as igrejas do século XVII que sobreviveram à sanha modernizadora que, sejamos honestos, fez de tudo, menos modernizar. As imagens vêm, não raro, acompanhadas de trechos de Machado de Assis, Coelho Neto e outros grandes autores que teimamos em querer esquecer. É um blog que visito sempre que bate a saudade do Brasil, de suas coisas belas e bacanas, de suas paisagens e esquinas.

Sarapalha: Este blog, de um mineiro que atende pelo nome de Tristão e reside, segundo parece, em Petrópolis, tem muitas semelhanças com o de Ivo. Bastante fotografia, bastante literatura. A principal diferença é que as fronteiras são mais amplas. Ali, já vi fotografias de Juiz de Fora, Belo Horizonte, Petrópolis, Nova Friburgo, Rio de Janeiro, e agora São Paulo. A visita traz à memória algumas paisagens que já ia esquecendo, e outras que gostaria de ter conhecido. Aguça a curiosidade, toca no nervo maldito da saudade. No cardápio, também há trechos de grandes obras poéticas do nosso século XX: Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes, Ana Cristina César, Paulo Leminski. E, eventualmente, excertos de Jacob Gorender, Darcy Ribeiro, Elio Gaspari. A propósito da poesia, de vez em quando fico me perguntando se não surgem reclamações do Ecad. Mas logo afasto o pensamento, porque pode dar azar.

Abrupto: Este blog português é o único deste lado do Atlântico que mencionarei hoje, mas pode estar certo de que não é o único da lista. Nos posts, José Pacheco Pereira ataca de política, futebol (agora, também, o rugby), cultura e tudo a que tem direito. Mas, no fundo, o que mais me atrai são, justamente, as imagens periodicamente publicadas, instantâneos do pequeno país que nos legou o idioma, muitos sobrenomes, culinária, música, formas de pensar e existir. Talvez seja por isso que gosto tanto de receber os feeds desse blog: a enorme curiosidade que exerce sobre mim um país que é a principal matriz de nosso sangue. Ou então, talvez seja apenas porque é interessante. Ultimamente, também têm sido publicados trechos de poemas e fotografias de outros países, da Itália até a China. Vale a visita.

O Biscoito Fino e a Massa: Ei!, você dirá, esse aí não vale! Não costuma ter fotografias e é uma obviedade. Todo mundo conhece, todo mundo gosta, todo mundo elogia. Mas incluí na lista de hoje quase por acaso. Estou fazendo uma limpa nos meus feeds; além de eliminar alguns blogs, talvez mais tarde do que deveria, também me dediquei à leitura de posts antigos, às vezes antiquíssimos, que havia marcado para leitura posterior. Muitos desses posts não me interessavam mais, outros eram mal escritos demais, e assim por diante. No meio dessa faxina generalizada, o blog do Idelber Avelar foi o único cujos textos, alguns datados de quase meio ano, ainda valeram a leitura. É um prazer saber que, no meio dessa pasmaceira intelectual que sufoca o "debate político" brasileiro, haja um blog, pelo menos, cujas análises sejam sérias e muito bem conduzidas. A propósito, nesta semana, o autor publicou um texto em que abdica de comentar sobre futebol doravante. Faz bem. O futebol brasileiro está indigno da atenção de gente séria.

Eis aí, então, exposta como entranhas na peixaria, mais uma etapa de minha arrumação. Mas ela está longe de terminar, é claro! Continuo aberto a sugestões de bons blogs. Há muita coisa boa por aí, e sei que estou perdendo. O mesmo vale para você. Sugiro a visita a esses quatro. A meu ver, é uma oportunidade excelente.

21.9.07

O músculo criativo: digressão tautológica


Falam de um músculo criativo; a analogia é boa. Como um músculo que trabalhou mais do que pode, ou foi submetido a uma carga opressiva, a criação também se enche de ácido lático e fica estatelada. Nessa hora, as folhas seguem brancas. Se não voam, é porque um cotovelo as prega à mesa. E as janelas, fechadas, censuram o vento.

Com os dedos repousados, sem exercício, e os olhos afundados, o autor sofre em silêncio. E solitário. Ninguém percebe o vazio, onde deveria haver fantasias e fantasmas. A expressão melancólica se apresenta como apenas um momento entre outros, uma parte de algum processo insondável. Ele passa por normal.

Qual o quê. O autor se sente como o peregrino que sobe os degraus do templo e dá com as portas trancadas. Inexpugnáveis, as enormes portas de chumbo. Que se aproxime delas, e as veja ainda ornadas com os baixos-relevos imemoriais da tradição. Pouco adianta. Eles se fazem sempre opacos para sua visão exausta. O pobre se descobre um sacerdote excluído da celebração. Golpeará a barreira por dias a fio. Fará retumbar à toa a aldraba. A seus pés, a cidade seguirá sua vida, mas a catedral lhe negará o acesso.

Ele não maldiz os deuses. Não solta o grito de morte da esperança. De sua boa ressecada, o menor grunhido não sai. Figura-se em sua mente uma explicação. Uma solução, lícito dizer? Algo na sua atmosfera quotidiana o oprime. Seu músculo não tem um edema; está sufocado por um ambiente inóspito. Seu mundo é seu inimigo.

Em meio ao oceano em que se afoga o sentido, uma única palavra subsiste: a mudança. Ela se multiplica, costura-se qual tumor através de todos os tecidos. Ao autor emudecido, escapa sua principal fraqueza. Ela é desprovida de potência pelo que tem de idéia. Transmutada, animada, encarnada, soprada. Mas idéia.

Iludido pela fé na palavra, ele abandona a multidão das cidades. Rejeita o que, um dia, carregado por um espírito ébrio, louvou como solo inexaurível para sua imagem de vinha. Busca, no pólen do fígado e da memória, o contato com as musas ariscas. Estão, ele crê, escondidas nos troncos das árvores. E quando não respondem, ele é incapaz de reação melhor do que os golpes de machado.

O cansaço se apodera de sua vontade quando o último caule vai ao chão. Quando expira a madeira, voam, livres, as últimas ilusões. O misticismo, o romantismo, o simbolismo, tudo isso vai ao chão, espoucando com a folhagem morta.

Ao autor, resta apenas aquela analogia. O músculo. Toda sua busca foi vã. Ridícula, aos olhos de quaisquer deuses que comandem a arte. Como para toda a musculatura de seu corpo vincado, esse nada mais exige do que repouso e alongamento. Exercitaste-o demais, abusaste. Agora paga.

Ainda nervoso e inconformado, mas já pronto a admitir o fracasso, ele se deita. Fecha os olhos, não pelo seu peso, mas com grande esforço. Tenta dormir. Tem fé, mais uma vez, naquilo em que passou a acreditar. Pensa que, dali a pouco, será despertado por uma nova energia que invadirá esse tal músculo.

15.9.07

Independência e idade adulta


Hoje é meu aniversário de França. Um ano desde que desembarquei em Paris e, de repente, sem motivo, bateu uma saudade irresistível das idiotices da puberdade. Esse é, certamente, o momento mais difícil da vida, mas, mesmo assim, vale a idéia de que só tende a piorar com o tempo. Quando garoto, a gente não pode nem acreditar, se nos disserem algo assim. Para um pré-púbere, acumular anos é uma escalada segura para a independência.

Que sonho louco, a independência! Dezoito anos, maioridade, um carro, entrar e sair quando der vontade. A faculdade, onde acompanharemos "as aulas que escolhemos", como nossa ingenuidade nos faz crer, malgrado as reclamações dos irmãos e primos mais velhos. Crescer parece muito bom.

A primeira vez em que temos a convicção de que rumamos a passo firme para a absoluta independência é quando nos vemos capazes de discordar com veemência das opiniões do pai, ou de dizer à mãe algo como "você é chata, mãe!". Quando se dá isso? Entre os nove e os doze anos, imagino. Não lembro. E, no entanto, parecia inesquecível. Depois, chega o momento de derrubar as barreiras que nos parecem tão injustas.

No caso dos meninos, pelo menos, isso envolve, pela ordem, os palavrões, o álcool e a revista de mulher pelada, que é o primeiro passo no caminho desesperado do "comer alguém". (Que palavra capciosa, esse "alguém".) Depois da etapa fundamental que é o primeiro porre, a pornografia parece a vitória definitiva, após a qual não haverá mais objetivos, porque todos os objetivos possíveis já foram alcançados. Bem se vê: para aprender as coisas da vida, é preciso começar não sabendo nada.

Isso explica o ar de general de um menino que comprou sua primeira "revista de sacanagem". Sente-se um transgressor, indomável, explorador dos maiores segredos das mulheres de plástico, todas nuas, com que irá se maravilhar dentro daquelas páginas, e que achará mais tarde, se tudo se passar bem em seu desenvolvimento, pior do que deploráveis. Se, nesse dia, ao entregar nas mãos do vendedor o volume rechado de nudez que escolheu, suas pernas tremeram e suas mãos se afogaram em suor, é mais um símbolo do sucesso. Da próxima vez, não haverá tremedeira, nem coração acelerado. Ele será um verdadeiro homenzinho. Está aí o buço não raspado, para provar.

Daí por diante, etapa após etapa, parece que tudo é conquista. Os momentos tão simples de auto-afirmação são como fincar uma bandeira em praia hostil. Depois, quando passa o tempo do vestibular e do exame de direção, vai-se com ele todo o deslumbramento com as tais conquistas. A universidade é uma decepção, verdadeira fábrica de gente mal qualificada, e andar todo dia de carro é meio caminho para o hospício. Finalmente, no subir do pano, uma verdade singela e amarga se revela: não há um pingo de independência na vida adulta.

Uma criança lida com duas grandes forças de contenção e autoridade, que são seus pais. Convém obedecer, vez por outra, e parar de chorar antes que eles sejam levados a nos estrangular. Uma situação castradora, pode ser, mas fácil de administrar, e que a escola só virá intensificar ligeiramente. Nada de mais. O problema, que ironia, só começa a se tornar mesmo sufocante (e não estou falando da opressão de que um adolescente se considera vítima) após a maioridade. Os centros de contenção de nossa criatividade se multiplicam e ganham outros nomes. Em geral, siglas: INSS, CPMF, DPF, RH. E não tem escapatória: errou no menor passo, é dor de cabeça garantida.

Um ano, hoje, como eu disse, em que estou na França. Isso significa, entre outras coisas, renovação de título de permanência. Graças a Deus, não houve grandes problemas, mas a tensão que precedeu a entrega da papelada interminável foi quase demais para os meus nervos. Meses e meses de angústia. Algum funcionário podia resolver que não posso continuar meus estudos. E não haveria nada a fazer. Não que, no Brasil, a coisa fosse diferente. Não votou? Não tira passaporte, malandro.

Enquanto isso, os bancos querem cobrar taxas por serviços que pareciam nem existir; o aluguel precisa ser renovado. Senão, rua. Há trabalhos a entregar, horários e prazos a cumprir. Senão, mesma coisa, rua. Enquanto estou aqui, escrevendo para o blog, sei que há alguém de olho em meu fígado e nos olhos da minha cara. Lembro do exemplo de um amigo próximo que caiu, recentemente, no golpe de um sujeito que dizia alugar um apartamento. Perdeu uma nota preta, e ainda precisou comemorar o fato de não ter sido seqüestrado ou esquartejado.

O chefe mais desagradável que já tive era, por outro lado, um sujeito muito sagaz e, apesar de duro e grosseiro, justo. Certa vez, vendo a fumaça que soltava uma dúzia de cabeças em sua equipe, ele se virou para nós e disse: "Estão reclamando do quê? Vocês só têm um chefe. Eu tenho cinco." Nunca me esqueci dessa frase. Quanto mais se sobe, mais se é empurrado para baixo. Mais querem nos oprimir. Mas a única alternativa a continuar subindo é se esconder debaixo da cama, até que os agentes de despejo venham recolhê-la.

Sonho com uma existência em que não seria necessário se sujeitar às fustigadas da vida em sociedade. Morro de medo de acordar e ter à minha frente os guardas que executaram Joseph K. Às vezes, não consigo aproveitar os bons momentos, porque já antevejo os aborrecimentos do dia seguinte. E pensar que já houve um dia em que o que mais me deixava ansioso era ver uma mulher sem roupa.

12.9.07

Para falar das flores


Tentamos várias vezes enfeitar a casa colocando flores no balcão da janela. Da primeira, era inverno, as folhas enclausuradas na sala não tinham acesso ao sol e murcharam, entre suspiros, em menos de uma semana. Depois, já às portas da primavera, vieram as miniaturas de hortênsia a que já dediquei um texto. Essas também sofreram. Quando parecia que morreriam, a temperatura subiu de repente. Chegamos a acreditar que poderíamos salvá-las. Mas, um dia, simplesmente desapareceram. Não sei se foram lixeiros que as levaram, já imprestáveis, ou se alguém as roubou, aquelas pétalas encarquilhadas.

As flores que mais duraram nesta casa eram brancas e fartas. Durante os meses de abril e maio, acompanhei, com o prazer de uma criança, o seu ciclo de vida. O pólen que se oferecia às abelhas, a fecundação, a queda de pequenas esferas violáceas sobre a terra que eu molhava pela manhã. Compramos terra boa e novos vasos, esperando que, nos meses do verão, a planta se desenvolvesse ainda mais. Mas pedimos ajuda ao zelador do prédio (gardien, como se diz aqui), e ele nos fez o desfavor de cortar suas raízes e afogá-la como se fosse um arroz de pântano. Não demorou uma semana para que só restasse o caule endurecido, cercado de pétalas e folhas sem cor, largadas sobre a terra.

Em julho, recorremos novamente ao zelador, que passava diante da janela. Perguntamo-lhe que flores ele recomendava que comprássemos nessa época do ano. "Maintenant já est tarde", ele respondeu, em sua mistura toda particular de línguas, cortando nosso sonho de jardinagem, com o perdão do péssimo trocadilho, pela raiz. Dali a pouco já seria outono. Mais um pouco, e o inverno daria cabo das últimas esperanças botânicas nesta casa.

Quando criança, vivi num subúrbio de Washington D.C., capital de um certo império. Era pequeno, lembro-me de pouca coisa, mas jamais esquecerei da vez em que cometi a grande estupidez de plantar um pé de abóbora no quintal em pleno outono. Que trauma, a morte daquela planta que jamais dará frutos! E foi culpa minha. Sou um assassino, um aboboricida imperdoável. Nem deveria fazer essa confissão por aqui.

Por causa dessa triste lembrança de infância, quis seguir os conselhos do zelador. Mas estávamos às portas da liqüidação de verão, e, menos de uma semana mais tarde, Nicole chegou em casa com três pequenos vasos, comprados a preço de banana. Eram rosas, e cada vaso as tinha em uma cor: brancas, encarnadas, róseas. Era um risco que valia correr. Colocamo-las nos vasos que tínhamos comprado para as flores anteriores, com a terra de excelente qualidade que ainda não recebera vegetais. Regamos nossas roseiras, demos-lhes sol.

Mais uma vez, o desespero ameaçou nos atingir. As rosas também começaram a murchar, as pétalas se encurvavam para dentro, ameaçavam cair. Qual era o problema? Água demais? Sol demais? Um por um, os botões e as flores foram despencando. Enquanto trazíamos os vasos para dentro, e depois os levávamos para fora, na tentativa infrutífera de reverter o quadro, vimos nossas queridas se reduzirem a pequenos arbustos de folhas e espinhos. Nada mais. Como ficamos tristes, pelos céus! Difícil descrever.

Orgulho-me de não termos desistido. Podamos as folhas secas, continuamos a regar a terra, deixamos ao sol aquele ser vivo que deveria ter outras cores, além do verde. Passaram-se muitos dias até que eu pudesse divisar uma recompensa: havia folhas novas, mesmo galhos inteiros, que brotavam de onde antes não havia nada. Mais verdes do que as antigas, essas folhas simbolizavam a esperança de uma ressurreição.

E foi o que aconteceu. Na roseira branca, dois caules mais compridos se destacaram do mar de folhas. Criaram botões. Surgiram alguns nas outras duas roseiras, também. Quando a primeira flor se abriu, brindamos com vinho ao sucesso que demorou um ano a chegar, mas veio, finalmente. Enquanto escrevo, olho para elas, através do vidro. Apenas uma flor já se abriu. Branca. Duas outras preparam sua estréia gloriosa, uma da mesma cor, a outra vermelha. No mais, posso contar seis botões fechados. Começo a compreender o prazer da jardinagem, esse passa-tempo que tanta paciência exige, tanto carinho, tanto silêncio. Sinto-me como um tolo a comparar a planta que vejo hoje com a memória que tenho dela ontem. Já tão diferente, e fingia estar parada! A flora é misteriosa, é mágica, eu não a compreendo e só me é permitido admirar.

Não sei mais quanto tempo durarão essas flores que se abriram no outono. Quando virá a primeira onda de frio que as exterminará? Espero que demore. Espero que, trazendo-as para dentro, consiga dar-lhes mais alguns dias, quiçá semanas, de sobrevida. E, que tristeza! Não tenho mais minha Furreca, para registrar esses instantes de alegria humilde.

10.9.07

A ilustração do último texto

Não sei o que deu errado, mas o último texto saiu com uma tarja preta no lugar da imagem. Até que faz um certo sentido, mas não era o que eu pretendia. A imagem boa é esta que segue. Por favor, unam (mentalmente) texto e imagem. Obrigado e, claro, mil desculpas!

9.9.07

"Faire la cave"


As últimas semanas me valeram uma descoberta inusitada. Alguma vez, já lhe ocorreu imaginar o que faria se sofresse a mesma tortura de Winston Smith? A mim, tampouco. Antes que perguntem, Winston é o protagonista de 1984, de George Orwell, em que, grosso modo, a sociedade é dominada por um Estado totalitário, na acepção mais extrema da palavra, capaz de mudar o passado, o presente e o futuro, senhor do pensamento e dos instintos, pesadelo maior de Milton Friedman.

Pule este parágrafo se não tiver lido o livro; resumindo bem, o personagem se envolve com um grupo que oposição ao governo (subversivo, diriam as "pessoas de bem" do Brasil), mas é traído e vai parar na prisão secreta do Estado, onde é torturado até que consigam enquadrá-lo. O clímax, se podemos dizer assim, é o momento em que, conhecendo sua vida até os mínimos detalhes, ameaçam-no com o que ele mais teme: ratos. Quando os animaizinhos se aproximam de seu rosto, guinchando feito loucos, ele rompe sua última barreira de autonomia e exclama: "Não o façam comigo! Façam com Júlia!". Júlia é sua companheira e parceira de resistência.

Situada a questão, ela se traduz na seguinte fórmula: "se um Estado como o de 1984 fosse me torturar como fez com Winston Smith, o que usaria?" Em primeiro lugar, nada de ratos. Como quase toda a população da Terra, excetuados, talvez Ozzy Osbourne e alguns de seus seguidores, não gosto deles, mas não a ponto de temê-los acima de tudo na vida. Foi só muito recentemente que descobri uma coisa que me deixaria no mesmo pânico de Winston Smith. Chama-se "faire la cave".

Fazia anos que eu não pensava no livro de George Orwell, essa obra que tanto me impactou quando eu era adolescente. Até o dia em que, após fechar o restaurante em que trabalhava, em meio ao silêncio da madrugada, já na penumbra, pessoas passando pela rua logo ao lado, afastei caixas e frascos para me dedicar, pela primeira vezm à tarefa horripilante de faire la cave.

Faire la cave, e tenho um calafrio a cada vez que repito essas palavras, consiste em buscar garrafas de vinho na adega. Mas essa adega (a tal cave) está situada no subsolo, e seu acesso é feito por um alçapão de madeira grossa já carcomida, localizado em um canto nebuloso, normalmente escondido debaixo de panos e peças tidas como de decoração. Esse alçapão, além de enorme e pesado, está longe de ser seguro. Quando me explicaram o funcionamento das coisas, alertaram-me para ter muito cuidado ao descer as escadas. Se, aberto, o alçapão decidir que não está bem preso, cai sobre a cabeça do infeliz que está embaixo, e já causou acidentes de lembrança traumática.

Voltemos à descrição. Abrir o alçapão revela um buraco negro, um quadrado no chão cujo fundo não se vê. Mesmo assim, convém pensar duas vezes antes de meter o dedo no interruptor. Como se sabe, higiene não é o forte dos franceses. O que eles chama de limpeza é aquilo que um garçom cansado e morto de vontade de ir para casa faz, superficialmente, com uma vassoura e um esfregão. Quando uma cave foi lavada pela última vez, Nice ainda era uma cidade italiana. A luz fria revela toda a poeira do cubículo úmido e pegajoso, a que se desce por degraus tortos e lisos. Mencionei as teias de aranha? Pois, na primeira vez em que precisei faire la cave, logo dei de cara com um desses aracnídeos, esticando suas longas patas na beira da entrada. Incomodada, ainda reclamou comigo, e me xingou, porque acendi a luz de repente. Não consegui pedir desculpas. Estava com a respiração presa.

Lá dentro, o ar é grosso. Irrespirável. Minhas narinas se fecharam no instante em que pus os pés no chão, entre os cacos de vidro e os restos de cartolina molhada. Algumas das garrafas são inalcançáveis, protegidas que estão por camadas de poeira e outros tipos de material sujo. De outros frascos, já não se pode ler o rótulo, carcomido que está pelo tempo e as traças. Um recipiente de suco, vazio, formou no exterior uma massa úmida, de tonalidade castanho-escura, que lembra uma colônia de corais. Pequenos movimentos têm lugar aqui e ali. É melhor tentar pensar em outra coisa.

Eu descia na cave com um casaco, mesmo se estivesse quente. Medida de precaução, por mais idiota que fosse. Agarrava as garrafas o mais rápido que podia, subia correndo. Antes de abrir o alçapão, tomava bastante fôlego. Cheguei a sonhar, mais de uma vez, que era obrigado a faire la cave, e acordava afogado em suor.

Faire la cave teve, na minha vida, pelo menos um efeito positivo. Fez-me lembrar de George Orwell, 1984 e Winston Smith. Agora sei que, se algum dia uma Gestapo ou um DOI-Codi da vida resolver arrancar alguma confissão de mim, não vai ser difícil. Basta acessar o blog, ler este texto e me obrigar a faire la cave. Num piscar de olhos, cá entre nós, acho que eu admitiria até o assassinato de John Kennedy.

6.9.07

Um desafio ao mau humor


Este texto será um exercício puxado para meu espírito ranzinza e reclamão; até hoje, não faltou espaço para ele neste blog, mas eis um beco sem saída. Talvez seja o momento de dar a vitória à alegria. Mas veremos. Aceito o desafio. Tudo isso porque, contra todas as minhas próprias expectativas, caiu do céu um emprego fácil de considerar invejável, pelo menos para um estudante estrangeiro. Será este blogueiro capaz de encontrar um lado negativo?

Aos fatos, então. Há uns dias, Nicole almoçou com alguns amigos brasileiros. Voltou contando que esbarrara, por acaso, com um pernambucano que, vivendo neste hexágono há alguns anos, vive de receber o público da Torre Eiffel. Com um detalhe: trabalha pouco e ganha muito. Isto é, recebe mais do que um garçom, desses que voltam moídos para casa, de madrugada, com uma baguete meio endurecida debaixo do braço à guisa de recompensa. Esse sujeito, que tão rápido quanto apareceu, sumiu, deu o caminho das pedras para obter um posto no mais famoso totem turístico do mundo. E não são tantas assim, as pedras. Algumas rubricas a preencher pela internet, um telefonema, nada mais. Se estão contratando? Sempre estão, ele garantiu. E era verdade.

Se passaram dez minutos de quando enviei os dados, até receber a ligação do diretor de Recursos Humanos, foi muito. Marcou-se a entrevista para a manhã seguinte. O início dos trabalhos, para sexta-feira. Mal precisei exibir minha capacidade de dizer "good morning, ladies and gentlemen". E antes que eu pudesse pronunciar um "merci beaucoup, monsieur", estava contratado.

As notícias alvissareiras ainda não acabaram. Já mencionei o horário? Entro às onze, saio às duas. Repito. São apenas três horas por dia, seis dias por semana. E vou receber o mesmo que no famigerado restaurante. O contrato é válido por duas semanas, está certo, mas pode ser renovado indefinidamente. Parece bom, não?

Mas ainda há um ponto a mencionar. Faz um ano que, perambulando por essas calçadas infestadas de turistas, tenho vontade de subir na Torre Eiffel. Mas sou demovido pelas filas intermináveis e pelo preço salgado, além dos sonhos de um mísero estudante, sustentado por um punhado de reais. As filas são menores apenas quando o tempo está péssimo, o que nem é tão raro, mas reduz o interesse em tomar os elevadores para ver paredão branco. A partir de agora, subirei e descerei quantas vezes quiser. Sem pagar. Aliás, muito pelo contrário. Devo contar como receita, além do pagamento, o dinheiro que deixarei de gastar com o ingresso.

Eis os pontos positivos. Agora, como anunciei no primeiro parágrafo, devo passar à negatividade, ao mau humor, à rabugice. A missão parece impossível, mas vencerei. Ponha-se na seguinte situação, um exemplo fácil para os cariocas. Você consegue um emprego no alto do Corcovado, aos pés do Redentor. Seis dias por semana, lá vai você, subindo para seu posto, de onde vê toda a cidade, e a cidade pode vê-lo de volta. Sensacional, certo? Imagine, agora, que o trabalho se torna insuportável. O chefe é uma cobra, os colegas são desagradáveis, o vento fustiga, o frio estilhaça, o sol queima, a chuva amolece. Traumatizado, desesperado para largar o emprego, você pede demissão e desce correndo, aos berros, pelas Paineiras, até o conforto do lar. E dorme, aliviado.

No dia seguinte, mais tranqüilo, resolve aproveitar o clima agradável. Abre a janela. Qual é a primeira coisa que vê? Voltemos a mim. De todos os bairros de Paris, avista-se a Torre Eiffel. Onde os prédios a escondem, há holofotes que giram, a noite inteira, e lançam jatos de luz pelos céus da cidade. De hora em hora, ela pisca como uma fantasia de carnaval. É impossível atravessar o Sena ou subir em Montmartre sem que o grande falo de metal atinja, pelo menos, o canto do olho.

A Torre Eiffel domina toda a paisagem. Se a experiência de trabalhar lá for negativa, terrível, insuportável, como poderei continuar a viver em Paris? Será impossível, terei de buscar outra cidade, outro país, outro continente. A solução de Édipo, ou seja, furar os olhos, parece pouco razoável. Mas sabe-se lá o que um acesso de loucura pode causar, não?

Pode ser ínfima a probabilidade de resultar assim tão terrível meu período orientando turistas. Reconheço. Mas não posso perder minha fama de casmurro. Foi a única maneira que encontrei para vencer o desafio do baixo-astral. Pelo menos neste assunto. Mas garanto que o próximo post voltará à carga habitual de mau humor. Ou não me chamo Osrevni.

2.9.07

Adeus, Furreca! Adeus, moleskine!


Tenho a convicção de que o nosso é um tempo apaixonado pelos pequenos objetos, para não dizer pequenos aparelhos. Celular, palmtop, iPod, o escambau. Procuro me esquivar ao máximo das armadilhas do momento histórico, mas, que posso fazer?, acabo caindo do mesmo jeito. Ao ponto de sentir como um golpe irrecuperável a perda simultânea de dois pequenos objetos que me acompanhavam por todo lado.

Eis a história: acho que fui roubado. Ninguém veio apontar um revólver para o meu nariz, pelo menos. Mas isso me daria, no mínimo, a certeza de que algum gatuno me privou de coisas minhas. Da maneira como foi, só sei mesmo que, numa hora, estava lá. Na outra, não estava mais. Donde só três conclusões se apresentam: ou estou ficando louco, o que é até possível; ou algum Exu anda brincando com meus nervos, mas isso, meu materialismo retinto veta; só resta a teoria do roubo.

À reconstituição: cheguei ao restaurante e, como faria um funcionário público, pendurei o paletó atrás da porta. Passaram-se as horas, clientes e mais clientes; quando deu seu horário, o cozinheiro juntou as trouxas e partiu. Pegou seu casaco, deixou o meu sobre uma cadeira localizada a poucos passos da porta; em outras palavras, visível da rua. Despediu-se e foi para casa. Depois, foram-se os clientes. Pelos próximos três quartos de hora, era só eu na penumbra, tirando mesas e esfregando o chão. Tudo acabado e o baile encerrado, atordoado fiquei (TM Cartola): o paletó não estava em parte alguma.

A rigor, não perdi grande coisa. Carteira, celular, chaves e talão de cheques estavam nos bolsos da calça. O livro, sobre o balcão, ao lado do telefone. Só duas coisas eu havia deixado no paletó: meu moleskine e minha Furreca. Esse é o golpe duro que tomei. Explico. Faz sentido dizer que minha vida se reparte em três: a primeira, pessoal e dividida com Nicole, em que tenho meu apartamento, caminho sem destino, vou ao cinema, trabalho e assim por diante; a segunda, civil (chamemos assim), em que estudo, pesquiso e produzo os trabalhos que tenho que produzir; a terceira, anímica, na falta de palavra melhor, em que anoto idéias no moleskine e fotografo, ou melhor, fotografava, a vida e a cidade com a Furreca.

Conclusão: o tal larápio, seja quem for, com seu gesto tão simples de esticar o braço e sair correndo, apagou de uma tacada um terço de minha vida. O moleskine não tem valor econômico algum; mas continha uma parcela importante de minha energia criativa, minhas idéias, o esboço de um ensaio sobre o idealismo, poemas, observações sobre o quotidiano, telefones e e-mails de gente encontrada por aí. Até desenhos, um dos quais de minha namorada adormecida, feito em Madrid. Ou seja, o miserável arrancou uma parte do meu cérebro. Quando vou recuperar as impressões cuidadosamente anotadas sobre os barcos ancorados no Sena? Sobre os mendigos e seus cães bem alimentados? A adesão unânime das francesas à mesma peça, cinzenta e soltinha, da moda?

Quanto à Furreca, não tinha impressa uma parte da minha energia criativa porque já transbordava sua própria criatividade. Muito maior do que a minha, e já falei sobre isso diversas vezes. Esperava até que ela me fizesse rico, algum dia. E agora? Como ficarei sem ela? Alguns me dizem, dando de ombros: compre outra máquina. Como se! Que outro aparelho distorcerá o mundo como minha Furreca? Posso ter uma câmera maravilhosa, em que seja possível controlar a distância focal e a abertura da lente. Mas ela me obedecerá com a frieza dos eletrônicos. Nunca voltarei a apertar o botão de uma artista como a Furreca. Se algum dia topar com o mão-leve, farei de sua cara um purê.

Desde esse episódio infeliz, tenho andado quase deprimido. Já iniciei um novo moleskine, claro. Mais um, suscetível de ser surrupiado. É o risco a correr, claro, para tomar notas in loco. Quanto à Furreca, estou preparando uma antologia de suas "furrequices" para publicar por aqui. E, antes que o digam, sei que deveria dar graças por não ter sido abordado por um desses assaltantes capazes de apagar uma vida inteira, não apenas um terço, por um punhado de merréis. Ora, dinheiro, eu não teria a menor dificuldade em entregar a um ladrão. Mas me levar a Furreca e o moleskine, isso é demais.

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