14.11.06

Seção versos subcutâneos: Ela

Ela tem cheiro de planta, ela
Diz coisas que eu não entendo, ela
Tem um nome sem sons ou letras.

Ela, que se debruça sobre a morte, para
Desenhar um bigode em seu rosto.
Mas quem há de desenhar um bigode
No rosto da morte?

Ela
Chega dizendo adeus,
E nunca parte.

Ela é toda vestido esvoaçante, ela
É feita de tecidos finos e renda, ela
Não fica jamais nua porque já é.

Ela, que oferece o prêmio de seu corpo para
O cavaleiro que depuser as armas.
Mas quem há de tomar em armas
Tendo à vista o seu corpo?

Ela
Chega dizendo adeus,
E nunca parte.

4.11.06

Seção dedo de prosa: Tributo a Noel Rosa


A ribanceira não quer saber da minha tragédia. Só quer saber de gorgolejar e descer para a cidade quieta, onde dormem o asfalto e o país. Abaixo, todos estão em paz; as luzes que me agridem e debocham do meu infortúnio vêm apenas dos postes. A vasta mancha negra do jóquei, o grande coração negro bem no meio do Maracanã, não é maior do que a mancha negra que vai se espalhando pelo peito. Atrás, sem ouvir a ribanceira e minhas lamúrias, os barracos de zinco e madeira escalam violentamente a pedra, apontando suas garras para o céu.

Rosinha. A meio caminho entre cá embaixo e lá em cima, num barraco ela se entrega aos prazeres da carne. Entre uma jaqueira e um ipê roxo. Eu que amo tanto. Ela dentro daquele quarto, com aquele homem, gozando todos os direitos de sua beleza, e eu fumando na encruzilhada, diante da ribanceira que desce da nossa pequena cidade para a capital espalhada pelos baixios. Rosinha! Rosinha, cabrocha de alta linha e sorriso luminoso, a esta hora enfiando as unhas nas costas de outro homem.

A Mangueira jamais foi tão tristonha. Nem uma luz no morro. A Lua, que a tudo assiste, já vai se afastando aos suspiros, de olho em meu desespero sobre-humano. A Lua é minha testemunha de que jamais eu saí derrotado em um partido alto. Nenhum sambista, do Estácio ou da Vila, da Portela ou do Livramento, foi capaz de seguir versejando enquanto em mim as palavras se esgotavam, as imagens se apagavam, ou me abandonasse o ritmo. Meu silêncio foi inaugurado nesta noite sem estrelas em que o sonho de Rosinha se arrancou do aperto dos meus dedos.

Rosinha, meu sonho. Nos olhos tem seu não sei quê, mulher que alegra os trabalhadores e os malandros quando sobe as ladeiras com água na cabeça, sempre um antigo samba entre os lábios e nas cadeiras o balanço de um mar tranqüilo. Rosinha! Doçura morena, que ao voltar da última batucada me sorriu sem pudores. O mesmo sorriso, o mesmo olhar que lançou para ele. Dúvida de mulher, disputa entre homens, uma semana de espera até a próxima batucada. Uma semana para torcer dois corações, dois amigos tornados rivais, velando um conflito próximo ao se encontrarem para conversar e discutir.

O cigarro vai se consumindo, e eu só dou por ele quando queima meus dedos. Uma queimadura de nada diante de um coração incinerado. Não me lembrava nem de ter apertado esse cigarro, mas ei-lo que também me agride, como esta maldita capital federal, o amor daqueles dois e a água que desce em silêncio pela ribanceira. Faz frio e acabou meu fumo. Horas em meditação diante da encruzilhada. A Mangueira nunca foi tão tristonha. Rosinha!

Nunca terei Rosinha. Ela será dele, ele que me venceu e revelou o fracasso que sou. Não sou partideiro coisa nenhuma. Não sou malandro. Então sou o quê? Sou um pobre-diabo, um miserável que não tem onde cair morto, incapaz para o samba, para a vadiagem, até para as mulheres. Eu me afogaria, mas não tenho nem sequer um lago em que me atirar. Só essa ribanceira imunda que desce trazendo sujeiras de todo o povo da Mangueira. Essa ribanceira ridícula que gorgoleja mas não dá para afogamentos.

Sem Rosinha, sem samba, só tenho meu chapéu e meu punhal. De tão miserável, nem navalha tenho para as brigas de rua. Que piada. Onde já se viu malandro sem navalha? Este punhal é velho, pertenceu a algum filho de barão. Distraiu-se, agora é meu. É bonito. Tem um cabo de marfim que congela a mão ao toque, mas gruda quando agarrado. O fio parece ter sido amolado no calor do inferno; mesmo velho, entra na carne de vagabundo como se fosse manteiga. Este punhal é meu único amigo.

O chapéu é de partideiro. Aba curta, fita verde. Não tenho mais precisão dele. Pode descer com a água suja.

Se Rosinha ainda se lembrar de mim, espero apenas que finque uma cruz bem em frente à ribanceira. Se ela ainda se lembrar de mim. Rosinha!

E de noite, não vai haver lua. Ninguém vai sambar.

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