31.5.07

Silêncio em Rondonópolis


A programação regular se interrompe; invade a tela uma vinheta que anuncia notícias de última hora. Para minha surpresa, é coisa do Brasil e, portanto, me interessa. Mas, como sói acontecer com notícias vindas do Brasil, é problema. Durante um treinamento policial, informa a voz inabalável da jornalista, um menino de 13 anos foi atingido na cabeça por uma bala de revólver, e morreu na hora, claro, diante de vários de seus colegas.

Chocado, corri para procurar a informação na internet brasileira. Não posso negar que encontrei menções em todas as principais fontes de notícias, O Globo, Folha, Estadão, JB e assim por diante. Mas em nenhuma delas, curiosamente, nem mesmo na barafunda do UOL, o acontecido mereceu a primeira página (isto é, a página inicial). A pequena tragédia - pequena, bem entendido, para quem não está envolvido - mereceu da televisão de um país distante a interrupção de um programa. Mas no próprio Brasil, seu verdadeiro palco, o máximo que valeu foi uma nota de rodapé.

É natural, num certo sentido. Com tantos assassinatos intencionais, até gratuitos, por que dar destaque a um acidente? Por que anunciar mais uma criança que perde a vida de forma gratuita, se foi resultado de mera incompetência, não de mais um degrau superado na escalada do barbarismo? A incompetência, afinal, já está perfeitamente documentada; há tempos deixou de ser notícia. Ora, (direis,) se estamos em semana de final de Copa do Brasil! Há mais o que se noticiar, certo?

Mas acho que ainda há algo a comentar. Em primeiro lugar, é evidente que o treinamento que resultou no acidente já estava sendo mal conduzido. Era uma simulação de seqüestro com reféns para policiais militares em Rondonópolis, Mato Grosso. Em que pese o uso já pouco sensato de crianças nesse gênero de trabalho, o acidente só aconteceu porque, em algum momento, uma arma esteve apontada na direção da cabeça de um refém, e o gatilho foi puxado. Numa triste coincidência, aquelas balas não eram de festim, como se supunha.

Acontece que o tal treinamento era, também, uma demonstração, e teve lugar durante uma festividade local. Demonstração de seqüestro durante uma festa? A mim, isso soa terrivelmente estranho. Será que nossa população chegou ao nível de tirar prazer de um espetáculo de violência? Fingida, é verdade; mas violência, mesmo assim. A platéia estava disposta a aplaudir os bravos soldados, quando aniquilassem os falsos bandidos?

Isso ainda não é nada. Do mais terrível, só fui saber dois dias mais tarde. Os sete policiais envolvidos, afastados e presos, resolveram adotar uma estratégia questionável para embaralhar o inquérito. Questionável e pouco inteligente. Em conjunto, negaram que houvesse um revólver com munição verdadeira. Todos, segundo eles, tinham balas de festim, como manda o figurino.

Negar os fatos é o tipo de coisa que só acontece no Brasil. E se acontece, deve ser porque funciona. Todas as armas foram recolhidas, espera-se. Estão em posse da Justiça. Verificar qual delas tem balas verdadeiras é a coisa mais fácil do mundo, e talvez sejam todas. Em tese, negar que alguém tenha cometido um erro é inútil e, pior ainda, um agravante. Uma tentativa (estúpida, é verdade) de bloquear o trabalho da Justiça. Mesmo assim, é um recurso de que os acusados lançam mão com uma freqüência notável em nosso país.

A idéia é atrasar, o máximo possível, o inquérito e um eventual julgamento. Esfriar as coisas, como se diz, até que o caso seja esquecido, arquivado e, de uma certa forma tipicamente brasileira, perdoado. Reintegram-se os policiais e tudo volta ao normal, salvo para a família do garoto sacrificado.

Policiais e bombeiros, em tese, são os heróis da vida contemporânea, urbana e violenta. Seu assunto é nossa segurança. São profissões para quem está disposto a arriscar a vida pelos outros. Em tese, como parece que tudo na vida é "em tese", têm uma posição central na sociedade. Mas são humanos, cometem enganos; uma vez que lidam com armas e outros materiais delicados e perigosos, seus erros podem ter conseqüências funestas, como aconteceu em Rondonópolis.

Pelo menos um dos envolvidos, negligente e leviano, se confundiu; carregou sua arma com munição normal, em vez das balas de festim programadas. É um erro. Estúpido, admitamos. Mas é vergonhoso que alguém que recebe treinamento militar seja covarde a ponto de negar o erro, sobretudo quando é tão evidente. Mais vergonhoso ainda é que os sete, dos quais seis, espero, não cometeram o erro, se unam para bagunçar um caso que, desde o começo, já era suficientemente problemático.

Posso até louvar o senso de companheirismo dos sujeitos, mas é inaceitável a união, em nome da covardia, de profissionais investidos de uma enorme confiança da sociedade. Se nem mesmo nossos policiais, treinados para o heroísmo, conseguem ter brios, quem o terá? Se eles se juntam para abafar um caso desses, evidente e simples, vão deixar de se unir por motivos mais sérios?

É por isso que não posso estranhar a falta de destaque nos jornais brasileiros. Já não se espera, mesmo, nada de positivo das nossas instituições. Todas elas. O erro de um policial não significa grande coisa. A covardia, menos ainda. Que as forças da Justiça servem para garantir tudo, menos justiça, já é assunto para embrulhar peixe na feira. Não se pode querer chamar a atenção do leitor brasileiro acompanhando um caso desses. Para que atitudes condenáveis da polícia recebam destaque, precisam ser muito mais graves do que isso.

27.5.07

"Você pula, eu pulo"


Está em todos os jornais. Poderia figurar na coluna de faits divers, mas aparece, não à toa, logo na primeira página. Por telefone, duas amigas combinam: "você pula, eu pulo" - e, sem delongas, atiram-se pela janela. Mas não morrem. Com ferimentos graves, segundo as notícias, são levadas ao hospital. Aconteceu em Ajaccio, na Córsega, uma ilha do Mediterrâneo.

As duas meninas que se defenestraram são colegas de escola e moram a poucas ruas de distância uma da outra. Tendo lido a notícia, não pude tirá-la da cabeça. Lembrei-me imediatamente de Nelson Rodrigues, com sua fixação pelos pactos de morte. Como um, de 1919, que cita repetidamente. Um rapaz e uma moça, proibidos de se casar, resolvem morrer nos braços um do outro, selando com goladas de veneno sua união condenada.

Nelson falava com um entusiasmo reverente desses extremos da paixão. Românticos, verdadeiros, heróicos e, portanto, trágicos. Não posso deixar de concluir, lendo a notícia, que as duas garotas corsas nada mais fizeram do que um pacto de morte. Em versão moderna, é bem verdade. Todos os detalhes dramáticos e românticos da versão rodriguiana estão inteiramente excluídos. Os jornais não informam nem ao menos se as meninas estavam apaixonadas, ou se formavam um casal - o que, para Nelson, seria um tempero formidável -, nem se esse presumido amor tinha sido bloqueado por pais rigorosos ou escorraçados por colegas de uma escola repressiva.

A bem da verdade, pouco importa. Pelo que está escrito, poderiam ser duas quase desconhecidas. "Você pula, eu pulo", segundo o relato de vizinhas. Cada uma em sua casa, sem juras de amor, sem desespero, sem um traço de situação trágica ou terror diante do desconhecido. Combinada a ação, ambas cumpriram o determinado. Nenhuma delas mudou de idéia em cima da hora, desistiu, hesitou. Não queriam fazer drama, nem chamar atenção. É a morte desprovida de toda sacralidade, de todo mistério. É a morte sem significado ou valor.

Mas então a vida é igualmente casual?

Viver, um acaso. Morrer, nada especial. As duas meninas combinaram seu salto como se fosse uma ida ao clube ou às compras. Escolher a forma de morrer foi como decidir o modelo de um novo vestido. O suicídio, executado com frieza e planejado com uma leviandade sem precedentes, não deve ter causado um frio nas duas espinhas maior do que o entusiasmo de adquirir um celular mais moderno e vistoso.

Mesmo assim, para todos os efeitos, elas estão com toda razão. A vida uma vez pautada na ausência radical de transcendência, uma vez transferidas a vontade e as pulsões unicamente para a satisfação de pequenos caprichos e desejos, por que dar à morte uma dimensão maior? Por que tomá-la por algo mais profundo ou solene do que a própria vida, se estão estreitamente ligadas? Nada nos impede de considerar a atitude das meninas, por insólita que seja, perfeitamente racional. O que é, afinal, o nosso medo da morte?

A rigor, podem ser apenas instintos, ou pior, hormônios, que se materializam na figura de uma angústia que fazemos desaguar em religiões, metafísicas e, talvez principalmente, arte. Mas se concentramos toda nossa fé, nossa especulação e nossa estética em algo tão frígido como o acúmulo de aparelhos coloridos, que diferença faz morrer hoje ou daqui a décadas? Pensando bem, não faz diferença nenhuma.

Essas meninas encarnam um certo mundo, o nosso, em que se abdicou de toda formulação global, por que não dizer teleológica, para a vida; mas não é só isso. Abdicou-se, também, de todo ceticismo, que, embora negativo, pressupõe um interesse, um questionamento, uma tomada de posição perante a existência. Que significa a existência para as duas garotas? Nada, e se alguém lhes perguntasse, elas certamente dariam de ombros, que é justamente a reação de tanta gente.

Germain, meu amigo de que falei no último texto, vez por outra convoca uma teoria sua, normalmente entre risadas. Para ele, se o ser humano pudesse abertamente decidir pela própria morte a qualquer instante, o capitalismo acabaria imediatamente. O raciocínio é simples: o patrão explora o trabalhador porque esse último não tem opção, é obrigado a aceitar qualquer proposta, mesmo a mais indigna. Se ele pudesse preferir a morte e levá-la verdadeiramente a cabo, o patrão seria obrigado a agradá-lo, e sistema não resistiria.

Mas desta vez eu me permito discordar de meu amigo. O sistema de que ele fala é coisa do passado; fundamentava-se na produção, no enriquecimento, nas grandes descobertas e evoluções, nos monumentos fantásticos e verticais, cujo símbolo maior talvez seja a Torre Eiffel (assunto para uma postagem que já está no forno). Mas a morte já se tornou um bem comerciável, até ela. Tanto quanto uma saca de café, um barril de petróleo, o sexo seguro ou a água limpa. Só que, por enquanto, é muito mais barato. Uma ligação e o custo de oportunidade de caminhar até a janela.

Um excelente filão, com certeza. Já Nelson Rodrigues, com sua fixação pelos pactos de morte, não teria muito interesse em escrever a respeito.

24.5.07

Germain e o amor adolescente


Tomo o metrô na companhia de Germain, meu amigo autóctone-porém-simpático, com quem mantenho conversas deliciosas. Mas desta vez, numa estação, somos interrompidos pela entrada de um casal de adolescentes. Com seus chicletes e risadas, sentam-se bem à nossa frente. A menina, não posso negar que observei, é promessa de uma bela mulher no futuro. Traços elegantes e suaves, postura nobre, expressão firme. Algo nos olhos, no vestido, nas pernas cruzadas, que dá a adivinhar o instinto, a resultar um dia em arte, de encantar e ressaltar a magia de seu sexo. Já o garoto não vale uma descrição mais detalhada. É daqueles que claramente crescerão para se tornarem adultos desprezíveis, irrelevantes, provavelmente desonestos, atores de todos os crimes e pecadilhos obtusos de que ouvimos falar.

Ainda não tive, infelizmente, a oportunidade de falar sobre Germain neste espaço. Mais uma vez, deixo para outra ocasião, e me limito aos traços gerais de sua personalidade. É uma das pessoas mais brilhantes que jamais conheci. Não perde nenhuma oportunidade de fazer uma boa piada e, o que é a talvez mais importante, embora seja capaz de discorrer em profundidade sobre qualquer assunto, não tem vergonha de admitir quando desconhece algum ponto. É, em resumo, das melhores companhias que alguém pode ter durante uma viagem de metrô. Ele me explicava, por exemplo, as razões para a derrota da esquerda nas últimas eleições, quando o jovem casal entrou no trem.

Ficamos, ambos, de olhos fixos nas duas figuras. Aproximo-me de Germain e observo, ao pé do ouvido, que é um casal estranho, tristemente estranho. Espero, claro, a imediata adesão de meu amigo. Mas ele, ao contrário, demonstra surpresa diante de minha avaliação. "Não sei como as coisas funcionam em seu país", diz. "Mas, para mim, esse casal não tem nada de surpreendente. Considerando a idade, é claro". E como não pareço entender, ele explica sua teoria sobre a relação entre os sexos, na sua linguagem empolada de especialista em Montaigne.

"Para compreender os adolescentes, meu caro, é preciso colocar-se em seu lugar. Devemos tentar pensar como eles. Veja... é um período difícil, conturbado... Não me diga que você não se lembra da sua adolescência!" Lembro, sim; e muito bem. Ele continuou. "Na adolescência, são justamente esses tipos que estão na crista da onda. Sua personalidade viscosa se encaixa perfeitamente nas, digamos, idiossincrasias da faixa etária. Não é à toa que se destacam e chamam a atenção de suas coleguinhas. Elas, de seu lado, embora sejam realmente mais maduras que eles, isto é, em geral – Você sabe que as mulheres amadurecem mais cedo, não sabe?" Anuí com a cabeça, quase ofendido.

"Pois bem. Apesar disso, nessa idade elas ainda não descobriram os aspectos mais sutis da relação entre os sexos. Deixam-se levar pelo estardalhaço vulgar desses aspirantes a Don Juan de espinhas, por mais tolos que sejam do nosso ponto de vista. Você precisa entender, meu amigo, que o arcabouço propriamente sexual é estéril, nessa etapa da vida! Mas isso se compreende, não é mesmo? São quase crianças.

"Aos poucos, porém, as mulheres, ao menos as mais favorecidas pela Criação, vão tendo contato consigo mesmas. Descobrem onde está seu prazer e onde conseguirão realizá-lo. Seus olhares mais lânguidos vão aos poucos se direcionando para alguns rapazes que – e elas mal conseguem acreditar – eram até há pouco uns mancebos de pouca ou nenhuma importância, mas que sempre tiveram algo, uma coisa indefinível, no olhar, na voz, no jeito de ser, que as atraía. Antes mesmo que elas pudessem entender o que se passava, porque elas se esforçavam em ignorar e enterrar esse efeito sob camadas da paixão pueril que tinham por aqueles outros. Como esse aí, que, não demora, será considerado indigno por essa mesma crisálida que hoje afaga seus cabelos espetados.

"Felizes, meu caro, são as mulheres que descobrem esse novo mundo. Essas, sim, se realizam no amor. Não tenho dúvidas de que será o caso dessa jóia promissora. Por outro lado, também felizes são os homens que conseguem aproveitar a mudança favorável dos ventos. Que não estavam já entregues a um niilismo auto-destrutivo. Quando garotos, é verdade, eram obrigados a se contentar com pares de auto-estima tão baixa quanto a sua; em outras palavras, as meninas que eram rejeitadas pelos tais galãs juvenis, como eles eram rejeitados pelas mulheres que desejavam. Mais velhos, ao contrário, terão entre os braços aquelas com que sempre sonharam. Com a vantagem de que elas estarão mais formadas, maduras, femininas. Em uma palavra, irresistíveis. Não concorda, camarada?"

Honestamente, eu não teria o que objetar à teoria. Mas tampouco quero me associar de uma vez a uma visão tão determinista dos fatos. Com isso, ficamos em silêncio enquanto o casal parte, uma descida antes da nossa. E continuamos quietos até descer da estação. Já sob a chuva fina, desagradável, que cai sobre a rua, despedimo-nos com um abraço apertado. Enquanto observo as costas de Germain a se afastar, inclinando o pescoço para se proteger da garoa incômoda, reflito sobre suas palavras. Não estou certo, mas espero que ele tenha razão.

Ponho-me a caminho de casa, sempre pensativo. Ao chegar à soleira de minha porta, já estou convencido. Como de hábito, sou forçado a me dobrar ao raciocínio de Germain. Ele está absolutamente correto. Ainda bem.

20.5.07

O acordeon dos Cárpatos


Pode ter sido culpa minha, distraído que sou. Mas ele não deve ser muito melhor do que eu. Artista, ora. Eu estava concentrado na revisão de algumas anotações em meu caderno; ele, em encaixar o fecho de seu acordeon. Eu me encaminhava para subir no vagão, e ele para descer, ambos de cabeça baixa e pensamento distante. O resultado não poderia ser outro. Um choque, fomos ambos ao chão, e antes que nos recompuséssemos, o condutor ordenou o fechamento das portas e partiu.

Estávamos ambos envergonhados, pedíamos desculpas um ao outro. Minha caneta foi parar nos trilhos, nem pensei em buscá-la. Na queda, o fecho mal encaixado do acordeon se abriu, produzindo o som característico de uma sanfona sem comando. E do bolso daquele homem de faces arredondadas e bigodes bastos caiu uma quantidade indigitada de moedas, que se espalharam pela plataforma escandalosamente.

Por sorte, havia pouca gente na estação. Em outras palavras, ninguém desesperado por um trocado caído dos céus. Coloquei-me de joelhos e ajudei o homem a recolher suas moedas. Ele me agradecia, mas sem cessar sua seqüência de pedidos de desculpa. Estava afogueado, rubro. Devia ter mais de sessenta anos e pouco hábito de dobrar o corpo. A quantidade de moedas chamou minha atenção. Certamente, o valor acumulado não era desprezível. Parecia, como se diz, que ele tinha assaltado a sacola de oferendas de uma igreja. Quando lhe estendi minha parte do bolo e ele o enfiou no bolso interno da jaqueta, o tilintar foi grave e sumário. Ele, ainda afogueado, agradeceu com uma espécie de reverência e pediu desculpas, mais uma vez, pelo incidente.

Para esperar pelo próximo trem, que só passaria dali a três minutos, ele se sentou no banco mais próximo. Era um desses músicos que ganham a vida tocando no metrô. Mas eu jamais pudera imaginar que os rendimentos fossem tão altos. Enquanto ele, cansado, ofegante, inclinava a cabeça sobre o peito, perguntei-lhe se as contribuições dos passageiros valiam a pena de subir e descer dos vagões a cada estação. Com uma humildade que me pareceu ligeiramente estudada, ele respondeu que, às vezes, valia mais; às vezes, menos.

"Hoje, parece que valeu mais", observei. "É, está sendo um bom dia". E sorriu. Era evidente seu esforço para ser modesto. "Gosta de música?" Respondi que sim, gosto muito, e ainda arrisco alguns chorinhos no violão. Confessei que tinha uma certa vontade de fazer como ele, circular pelo metrô tocando Pixinguinha e Paulinho da Viola para fazer um trocado. Contei-lhe que sou brasileiro, e ele sorriu. Gosta de futebol, conhece Ronaldo e algum outro jogador, desses que saem jovens do Brasil e ninguém conhece. Perguntei-lhe sobre sua origem - estava claro que não era francês. "Sou ruteno." E apressou-se em explicar. "Dos Cárpatos. Conhece os Cárpatos?"

Só de nome. Uma dessas cadeias montanhosas do leste europeu, de que só ouvimos falar em livros antigos. Desenhando um mapa imaginário suspenso no ar, ele localizou as montanhas: "Polônia, Eslováquia, Ucrânia, Romênia... conhece esses países?" "Só de nome", confessei, sorrindo levemente, encabulado.

Com um misto de orgulho e nostalgia, ele me contou que tocava a música de sua região, onde fora criado a subir e descer escarpas, fugindo das obrigações escolares para ir de aldeia em aldeia, onde visitava os músicos mais velhos. Com eles, aprendera melodias inventadas por povos já extintos, atropelados pelas invasões e conquistas que os séculos impuseram àquelas terras. "É um patrimônio valiosíssimo. O que guardo gravado nos dedos não tem preço", sentenciou, solene, cravando os olhos nas palmas das mãos.

Havia alguma tristeza no fundo de sua voz. Quis lhe perguntar o que era, mas não foi necessário. "Meu povo", explicou, "parece condenado à escravidão. Estivemos submetidos à Áustria, à Hungria, à Alemanha, à Polônia, à Rússia. Mesmo hoje, não somos independentes. Nossas terras estão divididas entre vários países. Somos considerados inferiores por todos. Escravos, indignos. É como se nem existíssemos."

Aos poucos, começou a contar mais sobre sua vida. Fugira das montanhas de seu povo com mulher e três filhos, vinte anos atrás, quando um período particularmente frio causou uma série de nevascas que devastaram seu povoado. As autoridades soviéticas, então controladoras do território, viraram as costas para aquela gente desprezível. A chegada à França não foi mais fácil. Sem documentos, sem dinheiro, sem conhecer nenhuma língua que não fosse a própria. O contato com os irmãos, espalhados pela Europa, até pelo mundo, se perdera por inteiro. Os pais morreram pouco mais tarde, atingidos por outro ano de terríveis nevascas, e mais uma negligência talvez proposital do governo - dessa vez, de uma das novas repúblicas que se formaram com a queda da Cortina de Ferro.

"Hoje, meus filhos são grandes", contou, tentando sorrir. "Estudaram na universidade. Trabalham. Falam francês e inglês, mas mal conhecem minha língua. A única ligação que me restou com meu povo são essas músicas que toco no metrô. Quando venho, toda manhã, tocar para os passageiros, é claro que faço isso pelo dinheiro. Mas não é só isso. Entende? Estou espalhando um pouco do meu sangue pelo mundo."

Voltou a fazer silêncio. O placar começou a piscar, avisando que o próximo trem chegaria em mais alguns segundos. Embarcaríamos juntos, eu teria a oportunidade de escutar as melodias de seus ancestrais. Enquanto isso, apenas o encarava, observando os cabelos grisalhos, a pele grossa e enrugada, mas saudável, os sapatos negros que pediam por um engraxate. O acordeon parecia tão velho quanto o homem. Pus-me a especular se não teria vindo com ele quando emigrou. Meus pensamentos foram interrompidos.

"Você perguntou se minha música rende bem no metrô. Escute, essas melodias não são apenas antigas. Acredite em mim, elas são mágicas." Dizendo isso, pôs-se de pé e me encarou. Sério, mas sereno e amistoso. Com um gesto brusco da cabeça, indicou que o trem se aproximava. "Vamos embarcar."

Segui-o até a beirada da plataforma. Pouco abaixo, adiante de nossos pés, minha caneta e algumas de suas moedas, brilhando como símbolos de nosso esbarrão. Ele vestia uma jaqueta verde, de inspiração militar, puída nos ombros. E, como não poucas pessoas em Paris, exalava um odor indisfarçável de falta de banho.

O trem chegou, alguns passageiros de olhar duro desceram, atravessaram nossa vista e partiram em passo apertado. Entramos quando já soava o sinal de fechamento das portas. O vagão não estava lotado, mas havia poucos assentos livres e algumas pessoas de pé. Com um gesto da mão, o músico pediu que me sentasse. Obedeci, sem tirar os olhos do acordeon. Calmamente, enquanto o trem se punha em marcha, ele o desatou, saudou o público e, dos dedos grossos, mas ágeis, emitiu as primeiras notas.

Não foram necessários mais do que quatro ou cinco compassos para que eu sentisse todo meu corpo começando a tremer. Como classificar aquelas cadências, a melodia, as modulações? Não sou capaz. Mais forte do que a algazarra da marcha no túnel, a celebração musical daquele instrumento, daquela pessoa, vibrava pelo ar pesado do vagão e não deixava incólume a alma encaixotada de nenhum passageiro. Todos se deixavam dominar, cândidos. Tinham os olhos vidrados no sacerdote dos Cárpatos.

Estranhamente, a música não parecia sair daqueles dedos. Era como se brotasse do chão, dos assentos, das alças em que os viajantes se seguravam. Em alguns olhos, já podia flagrar as lágrimas que brotavam. Não demoraria a acontecer comigo, também; meu corpo amolecia, acompanhando os movimentos espectrais das notas. Não havia um instante sequer de repouso na intempérie dos acordes. Em poucos segundos, entre uma estação e outra, acompanhei o mundo que se desmanchava como um líquido e se reconstruía, inteiramente diferente, mais belo e místico, por um golpe de mágica.

Subitamente, fez silêncio. Tive a impressão de que tudo escurecera, mas era só o silêncio. Ninguém falava, ninguém esboçava um movimento. Estariam enfeitiçados? Mesmo o barulho do trem parecia menos violento, quase harmonioso. O músico caminhava lentamente pelo corredor, recolhendo as contribuições. Pela primeira vez em minha vida, vi que todos os passageiros davam algo, moedas de bom valor, até cédulas. O bolso da jaqueta engordaria ainda mais.

Ele se aproximou de mim, olhos apertados, sorriso largo. Piscou. Sem planejar, sem controle sobre meus próprios movimentos, levei a mão ao bolso. Já ia puxar a carteira, quando um gesto seu me interrompeu. Eu queria lhe dizer que jamais ouvira aquilo antes. Que gostaria de ouvir mais. Que aquela música mudara minha vida. Não saiu nada. Talvez ele tivesse monopolizado o direito ao som.

O trem parou, a porta se abriu. Eu ainda queria falar, mas não conseguia. Muitas pessoas entraram, poucas saíram. O músico ruteno, ainda sorrindo, fez novamente uma ligeira reverência em minha direção, a que respondi erguendo a mão espalmada, provavelmente boquiaberto. Com isso, ele virou as costas e partiu. Entraria no vagão seguinte, poucos metros adiante, para enfeitiçar outra platéia e engordar o bolso da jaqueta.

Logo que ele sumiu de minha vista, o aviso sonoro soou, a porta voltou a ser fechada, o trem partiu. Os passageiros retomaram suas conversas, seus olhares baixos, suas vidas. A algazarra ganhou de volta sua violência implacável assim que se dissipou a vibração da melodia eslava. Nesse instante, lembrei-me de que aquele atraso de três minutos era suficiente para me causar problemas com meu compromisso.

Comecei a formular explicações e desculpas, afastei da mente a melodia dos Cárpatos, aquela cadeia montanhosa do outro lado do continente, de que só se ouve falar nos livros antigos. A poucos metros de distância, no vagão seguinte, divisei com dificuldade o som de um acordeon que começava a soar. Não tive dúvidas. Eram as notas daquela música enfeitiçada, que já penetrava em outras almas. Fechei os olhos, fiz esforço para escutar, e não pensei em mais nada.

16.5.07

Crise


Conhecendo as deficiências de minha memória e a seletividade cruel que ela cultiva, minha companheira usou de todo o tato possível para me trazer à lembrança alguns eventos de maio do ano passado. Em outras palavras, aqueles que antecederam o nascimento deste "Para Ler Sem Olhar". É bem verdade que senti uma ponta de repreensão na beirada de sua voz. Muito pouca, insisto, e mesmo assim compreensível. "Pois então", disse-me ela, "você se esqueceu de como estava naqueles dias? Não se lembra de como não queria ir trabalhar no dia 11? Da angústia? Da crise? Já esqueceu tudo isso?" Pois ela está correta. Com esse catalizador delicado, os idos de maio voltaram à minha memória de supetão. O passado parecia se passar diante dos meus olhos, claro e vivo, terrificante. Sim, a crise!

É verdade. Aquela que sofre comigo cara crise por que passo me chamou à razão. Este meu blog, que me é tão caro, foi concebido sob os lençóis da melancolia. O que teria deflagrado aquela crise? Talvez a falta de dinheiro; talvez a frustração profissional, política, artística. Talvez até o futebol, quem sabe? Mas provavelmente não foi nada. Uma configuração perfeitamente casual das correntezas inconscientes, uma aglomeração tensa de partículas, uma nuvem transcendente atravessando a alma. Atire a primeira pedra quem jamais teve uma crise, um período de moral baixo, uma ameaça de depressão.

Como não levei nenhuma pedrada, posso concluir que não sou o único a passar por momentos de angústia e prostração. É um alívio. E deixo, para meus companheiros de amargura, uma palavra de incentivo. Asseguro que se, algum dia, os segredos do mundo se revelarem, será àqueles que silenciam diante do abismo; aos que tiram da euforia uma lição de dor; aos que desconhecem os nomes das divindades. A melancolia, esse estado patético que nos atinge sem motivo, é um contato inexplicável, súbito, com o nada, porque o maior mistério da existência nada mais é do que a própria existência. Você, que ontem executava os planos de um porvir suntuoso, mas hoje está entregue à contemplação de uma realidade em ruínas, saiba que não há melhor arquiteto. Um palácio só se pode construir sobre terreno arrasado. Ao escarrar entre os olhos do mundo, você o obriga a oferecer a outra face.

Sei bem qual é a desgraça que os atinge, espíritos em crise. Não há mais espaço no mundo para abrigar os amaldiçoados. A produtividade e a eficiências não podem ser colocadas em xeque por um tombo no abismo. Em priscas eras, os atormentados, os patéticos, eram alçados à condição de sacerdotes. Édipo, Tirésias, Cassandra. Hoje, ao contrário, têm à disposição uma série de classificações para o que se tornou apenas mais uma doença: bipolaridade, disforia, depressão endógena, mania, esquizofrenia. E tome análise. E tome remédio. Cada caso tem um fármaco que se lhe encaixe. E tome gravata.

É preciso colocar os melancólicos sob controle. É preciso torná-los eficientes. Eles precisam ser capazes de realizar seu trabalho. Pouco importa o clamor das profundezas. Pouco importam a transcendência, o nada, o despenhadeiro. De que servem os palácios que se constroem sobre terreno arrasado? O amanhã venceu a batalha contra o sempre.

Mas subsiste ainda o não conseguir entregar-se, candidamente, às alegrias de vida anódinas que a realidade oferece em cada gôndola. Ainda existem espíritos que abocanham a escuridão e só autorizam a alvorada quando a digestão é concluída. Onde estão eles? Respondo: por trás de cada feição tranqüila, cada voz firme, cada postura segura, cada botão que apertamos nas camisas.

A crise irrompe, finalmente, quando esses fantasmas que nos habitam tentam se soltar dos grilhões para flutuar rumo à indeterminação que nos cerca. E nós, armados de nossa fé na vida que levamos, da certeza, injustificável que seja, de nossos atos e vontades, procuramos estrangulá-los com a pressa de nossa contingência.

Ai de nós, que ousamos atentar contra imortais!

12.5.07

Nascido em 12 de maio


Não me lembro de praticamente nada sobre 12 de maio de 2006. O que estava pensando, como foi meu dia no trabalho, o que aconteceu na ida, na volta, no horário do almoço. Não consigo nem lembrar o que me impulsionava nas decisões que tomei. E não foram poucas. Só o que guardo desse dia são seus resultados, que estão longe de serem pequenos, pelo menos na minha vida.

Nasceram em 12 de maio de 2006 o "Para ler sem olhar", o Paulo Osrevni, a figura de Magritte como ilustração. Todos, de uma só vez. Até então, eu tinha escutado repetidamente: "você deveria fazer um blog". Mas não tinha acatava. O nome era estranho. Blog? Que raios! A bem dizer, ainda me incomoda. Estava sob a influência da idéia de que "essa bodega" só servia para adolescentes desocupados papagaiarem. Já isso, não penso mais: acho que blogs não servem para nada específico. Ótimo, é assim mesmo que deve ser. À fogueira com todos que insistem em enquadrar a blogosfera!

Por algum motivo, minha resistência foi quebrada em 12 de maio de 2006. Talvez tenha sido o dia em que descobri como é fácil usar o Blogger, ainda que o resultado seja questionável e as falhas, muitas. Talvez seja algum outro motivo. Não me lembro. Minha memória sempre foi péssima, já me conformei. Mas às vezes ainda me irrito.

O primeiro post fala justamente disso: "Este é meu primeiro post. Demorou, mas tenho meu blog. Um dia acontece, a gente cede ao devir. Não planejei nada: cá está. Pra quê este blog? Boa pergunta. Não tenho idéia, teve gente por aí dizendo que era uma boa e acabei comprando. Vamos ver se dá caldo." Continuo querendo ver. Pelo menos, cheguei a doze meses contados, o que não é pouco. Tive pouco mais de 8 mil visitas nesse período, o que é pouco, mas compreensível. Além de ter passado bons três meses quase sem postar quando me mudei, ainda escrevo textos longos e, supremo pecado, com pseudônimo. Para este segundo ano, as coisas hão de melhorar, valha-me São WWW!

Voltando ao primeiro post, constato minha admissão de ignorância: "O que vou fazer aqui? Vamos ver. Não pensei muito nisso, mas acho que à medida em que for pensando em uma e outra coisa, posso postar aos poucos. Se alguém se der ao trabalho de ler, por favor comente, responda. De repente começa um debate, uma conversa interessante. E a coisa engrena." Debates, até houve. Não como eu gostaria, claro. Mas já é alguma coisa. Talvez com o novo sistema de comentários que instalei, as conversas se desenvolvam melhor.

Posso recordar o processo de criação do nome do blog, vagamente descrito nesse primeiro post: "O que quer dizer esse título? Parece um paradoxo, mas, pensando bem, é o que a gente faz na maior parte do tempo. Não é sempre que lemos coisas realmente vendo, olhando o que está escrito. O mais comum é que as mensagens que flanam à nossa volta simplesmente se imprimam na nossa cabeça sem que percebamos." Minha opinião mudou? Expandiu-se, certamente. Ganhou nuances. Acho que o nome do blog pode abarcar mais significados do que apenas isso, então calo, para não dirigir a interpretação alheia.

Finalmente, a última frase do primeiro post, um post scriptum: "PS: Não bebam de estômago vazio. Realmente não dá certo." Talvez essa pequena frase explique muita coisa...

Por pouco que me lembre do 12 de maio de 2006, percebo que foi um ponto-chave em minha vida. A partir de lá, deixei de ser um sujeito refratário à tecnologia para tornar-me um blogueiro refratário à tecnologia. É fantástico! Faz toda diferença. A cada semana que passa, sou obrigado a aprender, apanhando muito, algo novo sobre códigos de página, widgets, feeds e outras loucuras parecidas. Nesse ponto, devo agradecer aos que me ajudaram e incentivaram: Oraco, Marcão, Tina, por exemplo. Agradeço também aos que me visitam e comentam com regularidade, aos que dão links para cá (se você não dá, intimo que dê!), aos que perdem horas de suas vidas percorrendo esses textos enormes que não vão mudar grande coisa em sua vida.

Para o futuro, claro, muitos projetos. Nos próximos dois meses, ou seja, quando passar meu período de provas, pretendo começar a escrever em dois novos espaços, além de abrir versões em inglês e francês (para treinar, ora). A aparência deste site está em constante mutação, enquanto vou aprendendo a manipulá-lo devidamente. Os textos também mudam, claro. Simplesmente porque a vida vai mudando. E aqui, textos são vida.

Tinha planejado um tom muito mais festivo para o aniversário. Só que, como sempre, interveio o imprevisto. O primeiro a chegar na festa não havia sido convidado: um infernal vírus da gripe. Em vez de champanhe, trouxe xarope, e estamos aqui, só ele e eu, brindando ao "Para ler sem olhar". Não faz mal. Pelo menos, sei que dos leitores posso esperar presentes maravilhosos neste 12 de maio de 2007. Certo?

9.5.07

Ode a um copo


A mesa de ferro, quadrada, enferrujada, bamba, tampo gravado com alguma marca de cerveja. A garrafa de 600 ml, sempre o mesmo modelo. A loura espumante, brilhosa, para a qual só há uma exigência: que esteja gelada. Amarrando o pacote, um detalhe, um pequeno objeto que poderia passar despercebido, mas não passa. Um elemento imprescindível, quase nunca mencionado, encontrável em qualquer bazar de esquina por um punhado de centavos.

Esse objeto, e quem é familiar ao ambiente que descrevi já o identificou com certeza, é talvez o que me dá mais saudades do Brasil. Confesso que tinha me esquecido de sua existência, mas vi-o em cena, mero figurante, em diversos longa-metragens, documentais ou de ficção, que acompanhei nas últimas semanas no Festival de Cinema Brasileiro de Paris (9a edição). Não pude resistir à nostalgia. Sou obrigado a admitir a falta que ele me faz, esse mais que singelo copo americano.

Nunca soube por que esse pequeno cálice, tão brasileiro, é chamado de americano. Talvez seja uma estratégia de marketing. Pois é, nome chique, vem dos States. Se for, funcionou. Boteco algum pode dispensar o copo dos ianques. Só os bares mais pretensiosos oferecem calderetas, tulipas e, supra-sumo da elegância germanófila, canecões. O pé-sujo, único estabelecimento em que se pode beber pelo simples prazer de engolir a divina cerveja, já está dominado.

Minha iniciação ao copo americano se deu pelo final da adolescência, quando conquistei, não sem alguns traumas familiares, o direito de ficar na rua madrugada adentro, entregue aos riscos da cidade, sem a supervisão castradora de algum parente. É bem verdade que os adultos que me acompanhavam até então não faziam grande questão de limar meus movimentos. Mas era incômodo de todo jeito, que se há de fazer? Poder tomar um coletivo e desembarcar no coração dos bairros boêmios dá ao garoto a sensação de que seus anos de submissão vão ficando para trás. Ilusão, concordo, mas o curto período antes dos tormentos da vida adulta são os melhores de qualquer existência.

Quando travei conhecimento com Vila Madalena e Consolação, Lapa e Humaitá, encantei-me mais pelas cadeiras na calçada do que pelas filas nas boates. Muito, muito mais. Chamar atenção pelos discursos anti-governistas, logo percebi, trazia mais resultado do que usar camisas chamativas ou passar gel no cabelo. Principalmente, se faltava a música massacrante dos clubes noturnos, sempre aparecia alguém com uma caixa de fósforos e outros instrumentos musicais. Fingíamos saber cantar, entoávamos os sambas consagrados., Até acreditar que éramos nascidos no Estácio ou em Oswaldo Cruz. Nós, que nunca fomos senão burgueses metidos a boêmios.

Para mim, era mais do que suficiente. Fiz grandes amizades, conheci moças adoráveis, gente que pensava como eu e vinha das mesmas origens. Confesso que tive, nessas madrugadas, minha única participação na roubalheira nacional. Afetado por efluências etílicas, deslizei para dentro do bolso alguns copos desse meu modelo preferido, inconsciente do ato pecaminoso que cometia. Não nos esqueçamos que a cerveja tem 4% de álcool, ora. Causei ao proprietário do boteco, até hoje minha única vítima, um prejuízo de, somando, pouco mais de um real. Peço desculpas com quase uma década de atraso, tomado de um remorso alegre e nostálgico. Quanto aos copos, estão até hoje na casa de minha mãe, para quem precisei inventar uma fábula absurda. Um bar, prestes a fechar definitivamente as portas, distribuía seus copos entre a clientela. A mim teriam cabido os miseráveis copinhos.

Numa cena do documentário que comentei no último post, Aldir Blanc (esse aí será homenageado em breve neste blog) e João Bosco cantam "O Bêbado e a Equilibrista" em algum boteco tijucano. A platéia chorava, lembrando-se dos exilados. Mas desconfio que grande parte também foi atingida pela saudade dessa nossa maneira toda especial de passar uma tarde, de tomar uma cerveja, de papear com os amigos, fazer música, recordar as desgraças e esperanças que se cristalizaram no passado. O fermento espesso desta terra de vinhos não nos assenta bem no estômago. O sorriso contido, muito menos, e temos uma certa dificuldade em tirar prazer das conversas afogadas em convenções.

Agora, se me permitem uma verdadeira blasfêmia, vou compartilhar o veredicto a que cheguei. Com toda sinceridade, acredito que tudo na vida que os bares e cafés de Montmartre e do Quartier Latin gostariam de ser, mas não poderão jamais, é um pé-sujo como aqueles que eu adorava freqüentar.

5.5.07

Seção pipoca no escuro: Espelhos do que não somos


Um festival de documentários. Todos brasileiros, mas o cinema, a sala de projeção, é em solo estrangeiro. A platéia dividida entre os locais e os nossos, esses últimos ávidos para ver o que se anda fazendo na terra. É a oportunidade perfeita para se deixar abalar.

Eu tinha ouvido muito pouco sobre "Três irmãos de sangue". A história dos irmãos Souza não dá abertura a nenhuma resistência. A trajetória épica e, ao final, trágica desses três homens brilhantes, sorridentes e de sangue frágil, quebra nossas barreiras emocionais. Todas elas. Henfil, cartunista. Betinho, sociólogo. Chico Mário, músico. Mineiros, geniais, hemofílicos. Vítimas, todos eles, da Aids. Quando as luzes se acenderam, espocavam na sala os soluços e fungadas. Rostos inchados e vermelhos tentavam disfarçar a fraqueza. Entre eles, o meu.

Os brasileiros são, talvez, maioria na platéia. Do lado de fora, no bar, esperando pela sessão, o riso solto, os tapinhas nas costas, tudo nos denuncia. É gente que está fora do país, alguns há décadas, outros há meses. Nenhum conseguiu, se é que tentou, vestir a máscara do novo país. Todos têm prazer em morar numa cidade como Paris, mas sofrem, talvez gratuitamente, talvez até inexplicavelmente, de uma saudade enorme das nossas coisinhas, das nossas pequenas delícias. Essas coisas que só a gente sabe.

Cada um tem uma relação toda particular com seu país. Os mais antigos, em geral, se gabam de pertencer a um outro tempo, ao "país do futuro", quando essas palavras exprimiam uma esperança e uma previsão, não uma ironia desiludida. Do fundo desse orgulho, vê-se aflorar a perplexidade diante de tudo que deu errado. Balançam a cabeça, perguntam "como é que pode", mostram-se estupefatos com o que têm lido nos jornais. Tentam manter longe da consciência a histeria coletiva do brasileiro, célebre, capaz de repetidamente abortar nossos lampejos de desenvolvimento. Envergonham-se, preferem não se envolver. E já ouço gente dizendo: como nós...

Muitas dessas pessoas deixaram o país "num rabo de foguete", debaixo dos cascudos da Ditadura, como Betinho, "o irmão do Henfil". Mas, ao contrário do nosso ativista-maior, não voltaram. Outros saíram mais tarde, por falta de estrutura profissional. Um, físico nuclear nascido em João Pessoa, vive no exterior porque sabe que, se ficasse, teria que se contentar em dar aulas em cursinho. Há também os que queriam apenas subir na vida. Conseguiram, ou não, mas continuam aqui. Finalmente, tem aqueles que não agüentaram nossa loucura, a tensão constante, o quotidiano sitiado, alimentado por nossas pequenas desonestidades levianas.

Esses estão fora há menos tempo. Sua reação a filmes como "Três irmãos de sangue" e "Vinícius" é inteiramente diversa. Os antigos sentem saudade. Os novos, raiva, inveja e uma certa incredulidade. Quando vêem o Rio de Janeiro glamouroso e reluzente, Cidade Maravilhosa de Vinícius de Moraes, têm dificuldade em associá-lo ao "purgatório da beleza e do caos". Ao mesmo tempo, não compreendem como se pôde passar de um estado a outro tão rapidamente, nem por que seus pais e avós viveram no país da esperança e do futuro, mas deixaram como herança um espelho estilhaçado de seu mundo.

É angústia, o que lhes dá.

Da mesma maneira, acompanhando na tela a luta sublime de Betinho, Henfil e Chico Mário, não faz sentido como, restabelecida uma certa democracia, só floresçam no Brasil os aproveitadores, os pusilânimes, os espertos. Perdemos a esperança no país? Sim, admitimos sem rodeios. Nas ruas, nas conversas, nos bares, todos repetimos o desencanto com a sociedade, a política, o futuro. Cada um tenta salvar o que lhe resta, como sob uma enxurrada que ameaça carregar nossos móveis. A imprensa se contenta em acompanhar à distância o desmoronamento paulatino da nossa estrutura nacional. E relatar com frieza. Um pouco de exaltação só aparece em alguns comentaristas políticos, mas é artificial, inócuo e, a bem dizer, ridículo. São tão aproveitadores quanto aqueles que denunciam. Filmes como "Três irmãos de sangue" escancaram diante de nosso rosto como nos entregamos ao vire-se-quem-puder. Fica claro como desistimos de ser um país.

É por isso que nenhum brasileiro da platéia foi capaz de resistir à fita. A estranha verdade é que nós amamos nosso país. Mesmo que escarremos em sua imagem. Nós o amamos, ainda que tenhamos desistido inteiramente dele. Nós o amamos, e reconhecemos que a culpa de seu desmoronamento é nossa, demasiado nossa. No fundo, sabemos que não adianta sermos depositários de uma das culturas mais adoráveis e fascinantes da Terra, se a cada dia contribuímos para sufocá-la. Todo brasileiro é apaixonado pelo Brasil, ainda que seja necessário atravessar oceanos para chegar a essa descoberta. Cada brasileiro, nessa situação, é seu próprio Cabral.

Os rostos inchados e afogueados, que citei no início do texto, escondiam-se atrás das poltronas não apenas porque envergonhados de se terem entregue às lágrimas. Foi também de se perceberem pequenos, diante daqueles homens frágeis, doentes e inabaláveis. Entre nós, após o jantar, gostamos de baixar os olhos e sentenciar: "não tem mais o que fazer". Não tem? Não sei. Mas houve quem fizesse. Cada tira que Henfil publicava poderia se tornar uma sentença de morte. Preso, a primeira sessão de tortura daria cabo de sua vida. E ele desenhava. Chico Mário compunha músicas de denúncia que nem mesmo se preocupavam, como as de Chico Buarque, em fazer uso de metáforas. E Betinho, já macerado pela doença, cruzava o país todo em sua luta contra a fome.

Pouco adiantou!, dirá alguém saudável, de sangue forte; nossa tragédia não se deixou afetar por nenhuma dessas atitudes; eles morreram sem ver os resultados de sua luta; Nada mudou!, não há o que fazer!, não há o que fazer!, não há o que fazer.

Não há? Não sei. Betinho, Henfil e Chico Mário, três batalhadores doentes que jamais deixaram de fazer, desnudam nossa imobilidade. Em sua grandeza e em suas doenças, são espelhos do que não somos.

1.5.07

Uma semana de seção pipoca

Este blog não foi aberto para abrigar comentários ou críticas cinematográficos. Mas, como aconteceu com todos os imperativos categóricos deste site, esse vai ser quebrado (aliás, diria mesmo que já foi). Na última semana, freqüentei o festival de cinema brasileiro que ocorre todo ano nesta bela cidade. Vi todos os filmes que quem ficou na Terrinha já viu, ou deveria ter visto. Estou cheio de impressões a respeito, não penso em outra coisa, só me vêm à cabeça assuntos ligados ao cinema...

Ou seja, não dá para passar ao largo. Restaria, então, me decidir entre falar rapidamente de cada filme que vi ou comentar mais extensamente um só. Ou ainda, falar do festival como um todo, sua organização e seu público... Mas, para variar, não consegui chegar a uma conclusão. Esse é o lado bom de escrever em meu próprio, ainda que pobre, blog, e não para algum editor chato, cheio de regras, técnicas e exigências. Posso produzir uma verdadeira barafunda: quem quiser ler, lerá.

A julgar pelos representantes do festival, o cinema brasileiro vai de mal a pior. São filmes convencionais, lineares, com raríssimas manifestações de ousadia e invenção. Os atores deixam muito a desejar, inclusive alguns consagrados, como Simone Spoladore e Mariana Ximenes. Falam como se tivessem decorado o texto logo antes de entrar no set (pior é que isso é bem possível). Mas, para não me tomarem por cricri, asseguro que há boas surpresas. Excelentes, aliás.

Vamos, então, aos filmes. O primeiro a que assisti foi "O ano em que meus pais saíram de férias", de Cao Hamburger. É um filme lindo, vale a pena. Principalmente se você nunca viu nada feito por ele, pelo Bráulio Mantovani ou pelo Newton Cannito. Caso contrário, vá prevenido de que todos os velhos truques de roteiro que eles usam nos outros filmes, longas e curtas, estão presentes. Massivamente, por sinal. Narrações em off, sub-tramas, encaixes miraculosos. Tudo. Mas, seja como for, os truques funcionam, então eu recomendo o filme.

Em seguida, "O céu de Suely", de Karim Aïnouz. Eu estava impaciente para poder ver esse filme, que recebeu pilhas de prêmios. Além disso, considero "Madame Satã" uma das melhores películas brasileiras desde a "retomada", e não podia esperar para conferir o que viria em seguida. Mas confesso que saí decepcionado. Fica evidente, neste segundo filme, que Aïnouz sabe filmar, tem sensibilidade, controla a câmera com precisão e virtuosismo na medida certa. Mas o roteiro é um pouco previsível, os personagens não têm carisma, e não se pode comparar esse filme ao Madame Satã. Palmas para Hermila Guedes. Não a conhecia, mas é uma atriz estupenda. Compará-la com nossas principais estrelas é até covardia.

"O Cheiro do Ralo" é um filme de primeiríssimo nível. O roteiro é ótimo, a direção é impecável, até o Selton Mello está muito, muito bem no seu papel. O cinema inteiro morria de rir. Viva Lourenço Mutarelli, nunca imaginei que aqueles quadrinhos doentios chegariam tão intactos à tela do cinema. Não preciso dizer mais nada.

"Zuzu Angel", apesar do desempenho primoroso da Patrícia Pillar, não faz jus à importância da personagem histórica. Muito preocupado em mostrar as belezas do Rio de Janeiro, mais preocupado ainda em ter um formato que se possa aproveitar na televisão, o filme cai naquelas velhas armadilhas, bem conhecidas, de quem está ligado demais à Globo. Uma pena. Pobre Stuart Angel, que lutava justamente contra... deixa para lá.

"Vinícius" fez muita gente chorar. Pessoas que estão fora do Brasil há mais de 20 anos e não sabem o que o país, outrora "do futuro", se tornou. Foi uma experiência emocionante. Vinícius de Moraes deu um nó na cabeça cartesiana dos espectadores franceses. Ponto para ele. O lado negativo é Camila Morgado tentando interpretar poemas. Não entendeu, como Ricardo Blat, que poemas não são feitos para serem interpretados, mas declamados. Em alguns momentos, chega a ser constrangedor, mas não é nada que comprometa a beleza do filme como um todo.

"A Máquina" também se vendeu para a televisão. Nada a ver com o texto teatral que lançou tantos bons atores: Wagner Moura, Lázaro Ramos...

"Dois filhos de Francisco" conhece bem seu público, e o atinge diretamente. Cada momento de emoção é sublinhado com música, olhares, movimentos de câmara. Exatamente como deve ser um filme de Sessão da Tarde. Os críticos e jornalistas detestaram. A maior parte do público, idem. É claro! Esse filme não tinha nada que estar num festival! Como cinema, não recomendo. Só para quem gosta de música sertaneja ou quer um motivo rápido e fácil para soltar lágrimas de esguicho. Mas reconheço que, como produto industrial, é das melhores coisas que o Brasil já fez.

"Fica comigo esta noite"... Meu Deus, como são ruins os atores brasileiros! Que vergonha! Quem colocou esse filme no festival?

Vamos a "O maior amor do mundo". Cacá Diegues parece ter desaprendido a fazer cinema. Não sei explicar como o diretor de "Bye-bye Brazil", "Quilombo" e "Xica da Silva" pode ser o mesmo desse filme e dos últimos que ele fez ("Orfeu" e "Deus é Brasileiro"). Ou melhor, até poderia achar explicações, mas é melhor deixar para lá. O José Wilker, por sinal, também virou uma pálida sombra do ator que fez o Lorde Cigano do Bye-bye Brazil. Lamento muito, porque, com os recursos que temos hoje, seria ótimo ver do que seria capaz aquele Cacá Diegues de outrora...

"Fabricando Tom Zé" é ótimo. Ou melhor, Tom Zé é ótimo. Nesse filme, podemos ver como a babaquice triunfou no Brasil, com o perdão do vocabulário. Enquanto esse gênio fenomenal, autor das melhores músicas que os Mutantes gravaram, ficou esquecido, Caetano Veloso e Gilberto Gil degeneravam nas figuras desinteressantes que são hoje. O engraçado é que ambos dão depoimentos no filme. Contrapor os dois ao Tom Zé me enche de tristeza. Caetano ainda admite, embora com relutância, que, de jovem gênio, tornou-se um velho... mixuruca. Mas o Gil, quando fala, faz aflorar no espectador seu lado mais cruel e violento. Triste, muito triste. Viva Tom Zé!

Finalmente, cheguei ao filme que gostaria de comentar mais de perto. "Proibido proibir" tinha tudo para ser péssimo. A principal atriz, Maria Flor, deve ser amadora. Não sei como conseguiu o papel de protagonista num filme profissional. Caio Blat, como sempre, atua com um ar de quem só quer mostrar suas enormes capacidades de interpretação. O outro protagonista, Alexandre Rodrigues, faz um bom trabalho mas, como é menos conhecido, acaba eclipsado. Pena.

De toda forma, o roteiro é cheio de falhas e pontas soltas. A primeira metade do filme é arrastada demais da conta. Os personagens são muito menos carismáticos do que os de "O Céu de Suely" e, para piorar, não são críveis. Há incongruências, elementos desnecessários, diálogos sem sentido. O título remete a uma música dos anos 60, sobre a ditadura militar, mas o enredo oscila entre um triângulo amoroso tolo, mal formulado, e um retrato social do, digamos assim, verdadeiro Brasil.

Mas é justamente esse retrato que resgata a película do desastre absoluto. Quando finalmente ele entra em cena, tudo está salvo, e só é colocado novamente em risco por todas as falhas que elenquei nos dois parágrafos acima (sobretudo a parte romântica, executada com uma incompetência inacreditável). A questão da violência, tão batida e aviltada em nosso cinema, que o trata em geral como uma peculiaridade mórbida brasileira, recebe nesse filme a abordagem mais sensata e estruturada que já vi na ficção. O ciclo vicioso que alimenta nossa doença está lá, explicitado. A gênese do ódio interminável, idem. Atinge mesmo (sem querer estragar a surpresa) o intelectual de classe média que acreditava, como tantos de nós, que sua boa vontade e seu trabalho duro bastariam para reverter a marcha rumo ao abismo. Graças a isso, saí da sala achando o filme excelente, apesar de reconhecer que tudo o mais nele é ruim, ruim demais.

Ainda haverá mais uma semana de festival, consagrada aos documentários. Sim, sei que dois dos filmes que citei acima são documentários. Mas passaram na primeira semana, fazer o quê? Reclame com a organização do festival, não comigo. Espero poder ver, finalmente!, "Estamira", "Cartola", "Três Irmãos de Sangue" e "Santiago". Se for o caso, escreverei algo aqui. Nunca se sabe!

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