16.5.07

Crise


Conhecendo as deficiências de minha memória e a seletividade cruel que ela cultiva, minha companheira usou de todo o tato possível para me trazer à lembrança alguns eventos de maio do ano passado. Em outras palavras, aqueles que antecederam o nascimento deste "Para Ler Sem Olhar". É bem verdade que senti uma ponta de repreensão na beirada de sua voz. Muito pouca, insisto, e mesmo assim compreensível. "Pois então", disse-me ela, "você se esqueceu de como estava naqueles dias? Não se lembra de como não queria ir trabalhar no dia 11? Da angústia? Da crise? Já esqueceu tudo isso?" Pois ela está correta. Com esse catalizador delicado, os idos de maio voltaram à minha memória de supetão. O passado parecia se passar diante dos meus olhos, claro e vivo, terrificante. Sim, a crise!

É verdade. Aquela que sofre comigo cara crise por que passo me chamou à razão. Este meu blog, que me é tão caro, foi concebido sob os lençóis da melancolia. O que teria deflagrado aquela crise? Talvez a falta de dinheiro; talvez a frustração profissional, política, artística. Talvez até o futebol, quem sabe? Mas provavelmente não foi nada. Uma configuração perfeitamente casual das correntezas inconscientes, uma aglomeração tensa de partículas, uma nuvem transcendente atravessando a alma. Atire a primeira pedra quem jamais teve uma crise, um período de moral baixo, uma ameaça de depressão.

Como não levei nenhuma pedrada, posso concluir que não sou o único a passar por momentos de angústia e prostração. É um alívio. E deixo, para meus companheiros de amargura, uma palavra de incentivo. Asseguro que se, algum dia, os segredos do mundo se revelarem, será àqueles que silenciam diante do abismo; aos que tiram da euforia uma lição de dor; aos que desconhecem os nomes das divindades. A melancolia, esse estado patético que nos atinge sem motivo, é um contato inexplicável, súbito, com o nada, porque o maior mistério da existência nada mais é do que a própria existência. Você, que ontem executava os planos de um porvir suntuoso, mas hoje está entregue à contemplação de uma realidade em ruínas, saiba que não há melhor arquiteto. Um palácio só se pode construir sobre terreno arrasado. Ao escarrar entre os olhos do mundo, você o obriga a oferecer a outra face.

Sei bem qual é a desgraça que os atinge, espíritos em crise. Não há mais espaço no mundo para abrigar os amaldiçoados. A produtividade e a eficiências não podem ser colocadas em xeque por um tombo no abismo. Em priscas eras, os atormentados, os patéticos, eram alçados à condição de sacerdotes. Édipo, Tirésias, Cassandra. Hoje, ao contrário, têm à disposição uma série de classificações para o que se tornou apenas mais uma doença: bipolaridade, disforia, depressão endógena, mania, esquizofrenia. E tome análise. E tome remédio. Cada caso tem um fármaco que se lhe encaixe. E tome gravata.

É preciso colocar os melancólicos sob controle. É preciso torná-los eficientes. Eles precisam ser capazes de realizar seu trabalho. Pouco importa o clamor das profundezas. Pouco importam a transcendência, o nada, o despenhadeiro. De que servem os palácios que se constroem sobre terreno arrasado? O amanhã venceu a batalha contra o sempre.

Mas subsiste ainda o não conseguir entregar-se, candidamente, às alegrias de vida anódinas que a realidade oferece em cada gôndola. Ainda existem espíritos que abocanham a escuridão e só autorizam a alvorada quando a digestão é concluída. Onde estão eles? Respondo: por trás de cada feição tranqüila, cada voz firme, cada postura segura, cada botão que apertamos nas camisas.

A crise irrompe, finalmente, quando esses fantasmas que nos habitam tentam se soltar dos grilhões para flutuar rumo à indeterminação que nos cerca. E nós, armados de nossa fé na vida que levamos, da certeza, injustificável que seja, de nossos atos e vontades, procuramos estrangulá-los com a pressa de nossa contingência.

Ai de nós, que ousamos atentar contra imortais!

13 Comments:

Blogger bruno cunha said...

Este teu post é bem a propósito pois eu sinto-me perfeitamente assim (recém-desempregado, sem saber se irei receber subsídio ou não, declínio profissional, etc.)...

:(

22:34  
Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

Nossa! que sensacional esse seu texto. Nossa!! Como me identifico com o que você diz. Nossa!! Encontrei uma palavra que eu ainda não sei bem o significado (coisa rara de acontecer ultimamente): anódina. Vou pesquisar e começar a usar também.

03:25  
Anonymous Anônimo said...

Tão "existencialista" o seu texto... do jeito que eu gosto.
De certa forma me identifiquei com suas palavras, mas às vezes sinto que qualquer gesto para "mudar" é tão vão quanto a inércia. Talvez eu esteja cansado...
Em todo caso, pelo visto, sem a(s) crise(s) seu blog não existiria — ou, se existisse, seria totalmente diferente deste.

Abraço.

05:10  
Blogger Wagner L. said...

As crises são mesmo necessárias, são portas para a mudança. Mas só os melancólicos mais sábios poderão transformar uma lágrima em um sorriso.

14:13  
Blogger Leila Andrade said...

Paulo, é isso mesmo, e assim vamos bebendo em doses eficazes, os dias banais, os dias totais.
Bom final de semana que já se aproxima. Bjs

18:24  
Blogger Carlos Zev Solano said...

Oi Paulo,

Demorei, mas vim e não me arrependi.
Belo texto que mostra a nossa realidade humana. Dias de mortais, imperfeitos e frágeis.

Já espero pelo próximo.

Abraços.

Rascunhos na Net

19:11  
Anonymous Anônimo said...

Cara sei muito bem o que é isso!Estou me tratando desde o começo do ano com antidepressivos e terapia.Melhora...mas tem uma tristeza lá no fundinho da alma saca?
Valeu!
Abração
Ben

22:43  
Blogger Gabriela said...

Bendita crise? Maldita crise? Bendita crise?

Que bom que a partir do que for vc produz, não a produção exigida pela sociedade só, mas você visita suas profundezas e traz riquezas para a superfície.

Beijos

02:06  
Blogger Mariana said...

Retribuindo a visita, me deparo com esta pérola. Uma ode à(s) crise(s), ou pelo menos ao direito de vivê-la(s) sem pudores e de tirar dela(s) o melhor. Se este blog surgiu de uma crise, assim como o meu, bem não pode ser tão ruim assim...

21:49  
Anonymous Anônimo said...

Você é foda!!!!!

00:43  
Anonymous Anônimo said...

Paulito! desnaturada e atrasada como sou entrei na sua página somente hoje. Coruja e fã também, sou suspeita para elogiar mas elogio mesmo assim. Está genial!
me explica o "epônimo" (mediquês para pseuônimo)depois? espetada: Adorei a memória seletiva....

02:04  
Blogger Paulo de Tarso said...

Paulo,

belo texto! sem as crises não conseguimos no suplantar. "assim deixo a vida me levar".

abs,

04:39  
Blogger vitoria angela said...

oi paulo...

como diria a nicole, nossos blogs são gemeos... este layout é o melhor... fazer o que?

ah... aproveitando, adoro seu blog!

bjs da vitória

Blog: não pense que a cabeça aguenta se você parar.

16:56  

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