16.11.07

Os notívagos



Quem for, saberá. Existe em certas almas o impulso de lançar-se às calçadas quando a cidade está paralisada, atemorizada pelo silêncio frágil que emana dos velhos postes. Os notívagos, no sentido inverso encontram nessa trégua forçada e diabólica seu verdadeiro universo. A atividade selvagem das horas de luz lhes parece de uma agressividade infernal. É insuportável.

Está além de suas forças resistir ao chamado da madrugada. É como se apenas durante à noite o mundo exterior entrasse em conjunção com as tribulações de suas mentes. São dois oceanos de fatos e mitos que, sob a regência do sol, vivem em conflito, uma guerra cruel e insolúvel, e só podem estender um ao outro uma palavra de conciliação debaixo do sereno.

É um arremedo de paz, supervisionado pelo luar, entre a subjetividade do notívago e seu impávido mundo circundante. Não poderia ser diferente, é claro. O congelamento das hostilidades é permeado de desconfianças mútuas, uma espécie de desprezo e, sobretudo, o receio da traição iminente. E ela sempre chega, instilando-se com os primeiros raios cor-de-laranja e violeta da alba.

Quem são esses corpos errantes encolhidos de frio, atravessando as avenidas sem lançar olhares para as janelas iluminadas, raras e inexplicáveis? Quero crer que há todo tipo de gente. Médicos, engenheiros, advogados, um grande investidor do mercado financeiro, um general da reserva. O próprio presidente da República, imagino-o a se esgueirar para fora do gabinete, despistar o invencível aparato de segurança, abandonar o palácio pela porta lateral que dá para um beco sujo e mal-iluminado, e cair incógnito na superfície de sua capital, a cidade que ele outrora conhecia tão perfeitamente, mas hoje se apresenta a seus olhos com as cores foscas que lhe conferem as janelas do carro oficial.

Quero crer, mas não posso afirmar se já topei com algum desses, político, industrial, profissional. Vi muito, isso posso garantir, de poetas e de loucos, categorias com grande facilidade em se confundir e multiplicar. Pouco me surpreende. Um louco é alguém que vive atormentado por fantasmas que só existem em sua imaginação. Um poeta é alguém que vive atormentado por fantasmas que existem na imaginação de todos. O poeta tem sorte com os fantasmas que o escolheram. Pode, durante o dia, travestir-se em cidadão. Comerciante, funcionário, burocrata, tudo. O louco pode apenas encolher-se em algum canto.

Na madrugada, os papéis se invertem. Os poetas invejam ao louco a exclusividade de seus fantasmas. Quando comungam de um mesmo reino, é o infeliz que detém cetro e coroa. Até que os assalte a alvorada, vagam todos nos domínios dos espectros, seus passos comandados pelo éter falante nos confins de seus espíritos e, aos olhos dos sensatos que dormem e ressonam, puros e criminosos igualmente, aparecem como desvairados, todos eles.

Já cheguei a me perguntar por que alguns desses poetas são puros poetas, apenas poetas, e nisso incluo todos os artistas que doam suas existências miseráveis à arte que produzem, e lhes parece tão grandiosa, ao passo que outros tantos poetas, tão poetas quanto, tão artistas quanto, mesmo se escamoteados, se metem a louvar o dia, esse tempo que cultiva doentes no lugar dos loucos e heresias em vez de fantasmas. Como pode um notívago, que dançava acordado com a encarnação de seus sonhos, comandar um país, uma corporação, uma esquadra?

Não compreendo que energia os empurra para duas direções tão distintas. Admiro a serenidade que transparece em seus momentos de normalidade. Mas posso apenas supor, fantasiar, o sofrimento que lhes causem as batalhas entre as duas metades de seus seres. A alma, que deveria ser indivisível, segundo nos ensinam há tantos anos, parece mais um espelho espatifado. É um autêntico enigma.

4 Comments:

Blogger Vai dar certo! said...

Gosto da noite, principalmente em cidades como Rio ou Sp que existe lugares onde posso encontrar pessoas que curtem a boemia.
Em épocas que eu andava muito fanfarrona, eu ficava doente direto porque não abria mão das noitadas, mas precisava estar de pé às sete.
E nem frequento boates ou danceterias. É a graça indizível de olhar estrelas, caminhar na praia e ver, luais com amigos e ver o sol nascer no arpoador que torna isso um hábito maravilhoso.
POsso te linkar?
Beijos

13:19  
Blogger Lunna Guedes said...

Eu confesso que a noite me abraça com calma e lucidez e que o dia me ofende e me expulsa para fora de mim. Sou alguém sem direção, perdido, sem vontade alguma. Enquanto a noite sou fera liberta, entregue as loucuras e insanidades da mente sempre aberta para tudo que existe do lado de dentro e de fora. O silencio trás o sorriso que não existe na agitação do dia.
Abraços meus...

01:15  
Blogger Lord Broken Pottery said...

Gosto muito da noite. Sobre o colchão, sob as cobertas.
Beijo

19:50  
Anonymous Anônimo said...

Uau! Tá ficando erótico o negócio...

00:23  

Postar um comentário

<< Home

online weblogUpdates.ping Para Ler Sem Olhar http://paralersemolhar.blogspot.com/ Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com Check Page Ranking Blog Flux Directory Blog Flux Directory Blog com crônicas e relatos da vida de um estudante brasileiro em Paris, França. Contos, críticas, reflexões políticas.