27.8.07

Considerações sobre o amor à vida


Quando olho pela janela, não ando pela calçada. Caminhando pela cidade, não leio um bom livro. Lendo, não conheço novos países e, viajando, não bato papo com amigos interessantes, à mesa de metal daquele velho pé-sujo. A vida é assim: muito ampla, muito curta. Para nossa desgraça e maravilha, houve um dia em que deixamos de ser bichos, agindo por mero impulso e instinto, máquinas programadas para procriar e comer até sumir. De repente, por um capricho da evolução e dos deuses, fomos condenados a reconhecer a vida, encará-la de frente, amá-la feito loucos e praguejar contra ela.

Eis o nosso destino; fantástico, ainda que temeroso. Se a vida pudesse ser apenas um fato, um detalhe, não valeria a pena. Pois bem. Nossa vida, queiramos ou não, é muito mais do que isso. É uma obrigação que algo dentro de nós nos impõe. Ou seja, para o mal e para o bem, é um fardo: uma pena, e é essa a pena que vale. Somos carregados a ter desejos, pulsões vulcânicas. Não podemos nos furtar a escolher rotas, abrir mão de alegrias e mergulhar de bom grado em tragédias. E por quê? Apenas porque somos gente.

Pensei nisso quando me lembrei de uma certa noite, anos atrás, em que eu bebericava alguma coisa e pensava na morte da bezerra. Um desses amigos metidos a perspicazes ocupou o espaço livre à minha frente. Sem cerimônias e à revelia, declarou que eu tinha o ar triste. E arrematou, como em confidência: "o que não é raro".

Eu não sabia que meu semblante se mostrava entristecido com tanta facilidade. Ao mesmo tempo, a informação disparada pelo meu amigo não chegou a surpreender. Pode passar por tolice, mas me causa uma certa frustração que só seja possível fazer uma coisa de cada vez, estar em um único lugar, limitado ao mesmo corpo, com os mesmos olhos e ouvidos, as mesmas histórias, idéias e experiências, enquanto, ao redor, uma miríade de vidas e universos batem cabeça, fundem-se, dão à luz infinitas novas realidades, todas elas merecedoras de algum grau de interesse e fascínio. Quando penso em tudo que estou perdendo, dou lá uns suspiros sem conseqüência; mas que permitem ao amigo sagaz concluir que sou um triste.

Amar a vida, às vezes, produz sensações dessa ordem: melancolias sem rótulo, desejos irrealizáveis, vontades sufocantes, toda sorte de sofrimentos desnecessários. Dirão os sensatos, essa gente frígida e enrugada, que o amor à vida deve se dar segundo uma tal "justa medida". Que idéia! Que coisa pode haver de mais estagnado do que a justa medida? De mais anódino e conformista? A justa medida é o refúgio dos medrosos, aqueles que, da vida, só esperam que não seja dolorosa demais, e dariam tudo para descobrir a trilha da existência fácil, tranqüila, garantida, sem sobressaltos; mas, como isso não existe, erguem os braços para o céu, implorando por proteção e conforto.

Ora, para amar a vida, é necessário devorá-la com todas as suas páginas; as de euforia, medo, ódio, prazer. Nossa carne parece feita para receber as chagas da dor e da derrota, mas que pele lisa e imaculada poderia sorver devidamente o alívio e suas delícias? De ambos os lados de nossos caminhos, o que há são precipícios, verdadeiros abismos que nos convidam a escorregar. Daí o fascínio da corda-bamba. Daí a necessidade da arte. Para além, o que há é pura contingência. No limite, uma passagem meramente biológica pela Terra.

Nada de tristeza, amigo perspicaz. O ar distante é apenas um momento de descanso. Uma retomada de fôlego, antes de pular mais uma vez na maravilha de caminhar sobre a Terra. Há muito o que fazer. Que fazer? Continuo sendo um só.

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8 Comments:

Blogger Cláudio B. Carlos said...

Opa!
Passando por aqui.
Abraços do *CC*

00:41  
Anonymous Anônimo said...

Bela crônica.

04:09  
Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

sensacional.

04:14  
Anonymous Anônimo said...

o texto é excelente, e a imagem não menos. pudera eu ter tempo e capacidade pra fazer umas crônicas assim...

05:21  
Blogger Thiago Ponce de Moraes said...

Diego, obrigado por ter passado no blog. Comecei, na última semana, uma pequena loucura: fazer postagens diárias.

Certamente não escrevo tanto (nem perto disso) para ter material o bastante para cada dia. No entanto, leio o suficiente para que consiga montar uma programação diária interessante.

Comecei essa linha de postagens com um texto crítico do Adorno e, nessa semana, sigo com poemas de Paul Celan.

Espero que possa voltar. O poema que leu foi colocado ontem. Acabei de colocar o de hoje.

Obrigado e parabéns pelos seus dois blogs de diversos escritos.

Um abraço.

16:49  
Anonymous Anônimo said...

Estou encantada com o seu blog. Vou ler o outro também. Um beijo e obrigada pela visita.

18:27  
Anonymous Anônimo said...

Me identifiquei profundamente com o último texto do seu outro blog. Preciso descobrir o meu caminho (às vezes, tenho vontade de deletar o blog inteiro).

Enfim, tem outras coisas minhas aqui: http://www.verborragica.blogspot.com

Ah, tenho um blog conjunto de literatura, fotografia e desenho, se quiser me enviar um texto...

http://www.transitivos.wordpress.com

18:32  
Blogger Sandra Leite said...

olha, adorei esse post. Com toda a intensidade que você imprimiu às suas palavras.
Obrigadíssima pela visita
eu, daqui da sua Sampa, te visitarei sempre

Sandra

01:40  

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