11.3.07

Primavera precoce, tempo de fotografar

Como todo mundo sabe, a primavera assaltou a Europa mais cedo, este ano. Não sou climatólogo, então não vou me apressar a culpar o aquecimento global, embora ele seja o principal suspeito, e com provas contundentes. Lamento o risco que nosso planeta corre, fico assustado ao ver as árvores todas floridas, as folhas que ameaçam brotar e já imprimem um certo verde às paisagens da cidade. Não posso negar que é preocupante. Ainda temos, ou deveríamos ter, um mês inteiro de inverno pela frente.

Mas (porém, contudo, entretanto), como não sou de ferro, timidamente, e até agora em segredo, comemoro a felicidade de não ter passado tanto frio quanto cheguei a temer. Eu, que me refiro a mim mesmo como "Paulo, o Tropical". Não vi neve que fosse digna do nome, nem precisei ficar escondido debaixo da cama, não o tempo todo. A única ferida que o inverno me causou foi uma conta de gás que parecia de aluguel.
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A alegria primaveril, mesmo se temerosa, é inevitável. Todos sabemos que Paris é linda, sorridente, extrovertida (essa última característica é discutível). No inverno, nada disso é verdade. A cidade é soturna, monocromática, quase imóvel. Instalar-se aqui em dezembro é decepcionante e põe à beira da depressão qualquer mortal. Vive-se da promessa quase messiânica de uma primavera vindoura. Ouvimos os relatos dos profetas do sol, narrativas com lendas fabulosas sobre gente nas calçadas, cafés abarrotados, árvores floridas. Abril em Paris, contam, é tudo que a canção diz. E mais um pouco. Abril, meus filhos. Um dia virá abril.
Os profetas tinham razão, embora o famigerado efeito estufa tenha causado um desvio nada irrelevante nos cálculos. Neste ano da graça de 2007, o mês da alegria chama-se março. E março, com toda sua luminosidade, torna Paulo (o Tropical) uma pessoa insuportável.
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Alguns posts (detesto essa palavra) abaixo, mencionei uma máquina fotográfica que ganhei de brinde. Disse que era furreca, mas quebrava um galho, e publiquei algumas imagens que ela produziu em um cemitério. Pois essa máquina simples, furreca, de baixa resolução, não sai mais do meu bolso. Um amigo, que sofre da mesma mania visual, uma vez me disse que conseguir boas fotos em Paris é moleza, difícil é fazer isso em São Paulo. Ele tem toda razão, mas como sempre fui chegado a uma vida mansa, não tenho pudores na hora de impedir a circulação das pessoas, ser quase atropelado ou chegar atrasado a compromissos. Se algo atrai minha atenção, saco imediatamente da minha caixa escura e aperto o botão.
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Para quem está acostumado a aparelhos de qualidade, conseguir boas imagens com uma máquina quase descartável é um desafio, diria mesmo uma lição. É impossível controlar a luz, jogar com as sombras, desfocar o fundo. Fotometria? Nem pensar. E reze para que o resultado saia aceitável. Mas todos esses contratempos são perfeitamente releváveis. Afinal, estamos na fabulosa era digital, em que o prejuízo de uma foto ruim se limita ao tempo gasto a apagá-la. Já revelar um filme, nesta terra, céus! Uma fortuna.

Então, meu procedimento é simples; segue estritamente a Lei Ricúpero: "o que é bom, a gente fatura. O que é ruim, a gente esconde". Adaptada para nossos tempos futuristas, fica assim: as boas fotografias, salvo e publico. As ruins, apago sem dó. As péssimas, chamo de artísticas e publico também. Quem lê este blog (sem olhar) será agraciado ao longo do tempo com um caminhão dessas imagens, que não exigiram nenhum conhecimento da arte fotográfica, mas foram tiradas com a facilidade de quem escova os dentes.
Por outro lado, minha relação com a máquina está começando a mudar. Não posso mais tratá-la como um objeto irrelevante e sem alma. Apesar de inanimada e movida a pilhas, minha discreta câmera tem vontade própria e um profundo senso artístico. Ela pensa. Ela é sensível. Não se trata de qualquer produto eletrônico vagabundo. É por isso que não a chamo mais de furreca. Ela pode se voltar contra mim.
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Vontade própria, sei que ela tem porque, lá um belo dia, resolveu simplesmente passar a imprimir data e horário no canto inferior direito. Em azul celeste, ainda por cima. Não comandei isso, nem consegui mandar tirar. Mais ainda, ela decidiu que não estamos em 2007, mas em 2004. Quem sou eu para discutir? Botão algum é capaz de mudar a decisão, já perdi imagens preciosas por conta disso, e o manual que a acompanha, em suas quatro páginas (sim, são só quatro páginas), não diz uma palavra a respeito. É um silêncio cúmplice. Só pode ser.
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Já a sensibilidade artística se manifesta quando a máquina toma decisões estéticas. Por exemplo, não é raro ela considerar que a perspectiva do fotógrafo - no caso, eu - é banal, limitada, prosaica. Enfastiada, resolve-se a, pura e simplesmente, distorcer a profundidade, exagerar nos contrastes, desconstruir o real insosso que deu origem à imagem. Coisas que eu mesmo não posso decidir fazer com os recursos escassos que ela me oferece. O produto, devo confessar, é não raro muito melhor do que eu tinha planejado. São releituras, às vezes críticas, outras irônicas, às vezes até apologéticas, da paisagem tomada. A cada vez que isso acontece, sinto que minha câmera me humilha. Mas, como não sou idiota, vou me apropriar das suas criações e dizer que exerci uma intenção autoral. Quem sabe não consigo uma exposição, champanhe, fotos à venda por milhares de euros? Sonhar não custa nada.
Um exemplo é a fotografia que abre o texto. Com meu senso de humor bastante limitado, quis enquadrar um homem que, sorridente de ver o sol quase pela primeira vez no ano, carregava um abacaxi como se fosse uma bola de basquete. Mas a câmera sabe mais. Que coisa mais sem graça... um abacaxi! Bom é registrar uma imagem impressionista, colorida, fazer do movimento da rua o movimento da obra, questionar nossa percepção do real, etcétera, etcétera. Se é ela que diz, apenas aceito. Não tenho como me opor.

Máquina digital furreca à parte, ainda me considero um dinossauro fotográfico. Minha câmera oficial, por assim dizer, é uma Canon analógica, daquelas que só permitem ver o resultado depois de dias, gastando uma nota preta de filme, revelação e, agora, digitalização. Se eu tivesse uma câmera digital, não essa furreca, mas uma do nível da minha Canon, poderia me esbaldar de tirar foto. Seria a pessoa mais chata do mundo, não conseguiria andar cem metros sem apontar a lente em alguma direção. Pensando bem, até que a exclusão foto-digital não é assim tão perniciosa.
Por isso, estou lançando uma campanha. Quem não estiver engajado em causas mais nobres, bom, deveria. Mas, de todo jeito, pode ajudar Paulo, "o Tropical", a comprar uma máquina fotográfica digital de qualidade. Aceito contribuições de qualquer valor. Cem eurinhos já está ótimo. Aceito vale-transporte, até mesmo um Eurostar de três países. Basta me mandar um e-mail. Quem aderir receberá em troca, ao longo do tempo, uma batelada de fotografias.

13 Comments:

Anonymous Anônimo said...

não conheço a europa. belas fotos. beijos, pedrita

16:02  
Anonymous Anônimo said...

Amigo Paulo, não te darei cem euros porque prefiro gastá-los...rss. Mas te darei alguns elogios pois bem mereces. Escreves com muita leveza e graça. Fico curiosa por saber tua profissão.
Um abraço e aproveita esta delícia de primavera Parisiense.

22:15  
Anonymous Anônimo said...

Lindas fotos e o texto é excelente!!!

23:07  
Blogger Alexandra said...

Um belo texto que nos prende a atenção de sobremaneira. Quanto à máquina... bem, ela pode fazer o que lhe dá na real gana, pode distorcer imagens e pode até usar uma data diferente da actual, mas não deixa de nos dar a conhecer algumas belas imagens :)

Gostei de cá estar!

Até mais :)

23:23  
Anonymous Anônimo said...

Tropical, Paulo

Excelente! hehe

Aniram

00:00  
Anonymous Anônimo said...

Pais parece um sonho distante para muitos aqui do Brasil, talvez até para mim, com esse ar poético que a simples fonética "Paris" causa.

Belas fotos!

21:48  
Anonymous Anônimo said...

seu texto conseguiu despertar em mim um desejo que até agora ainda não tinha se aflorado: conhecer Paris. Mas conhecer mesmo, no sentido literal da palavra: estilo de vida, pessoas, trabalho, burburinhos, a Paris fora do citytour. Vamos ver quando consigo essa façanha. Beijos e bons textos.

21:58  
Blogger poeta_silente said...

Olá, Paulo!
Brasileiro, como eu. Que bom!
Obrigada pela visita. E devo te dizer que o que escreves prende nossa atenção. Gostei imenso de vir aqui e ler.
As perdas,caro Paulo, fazem parte da nossa vida. Eu sempre costumo dizer que a morte não me entristece. Porque sei que a pessoa que nos deixou está num lugar muito melhor. A vida aqui é que é difícil. Isto falo-te em relação ao "Sete de Março".
Quanto às tuas fotografias, numa máquina tão furreca, gostei. São fotos de Paris. E pronto.
Na realidade, sabe-se lá se, um dia, estes não vão ser novos paradigmas para a visão de boas fotos?
Tudo muda, pois não?
Deus te abençoe e... aparece!
Miriam

02:16  
Blogger Ivo Korytowski said...

Existe um programa muito bom, que tem uma versão gratuita, que permite manipular as fotos no computador, colocar mais luz, melhorar a definição, essas coisas, chamado Photo Filtre. Mesmo as fotos de uma máquina furreca acabam se tornando fotos de profissionais... o programa faz milagres!

14:34  
Blogger Camila said...

Achei a primeira foto à la Renoir. Bacana ; )

09:38  
Blogger Camila said...

Ou melhor: Monet ; )

09:40  
Blogger Bruno Garcia Restelatto said...

Este comentário foi removido pelo autor.

00:38  
Blogger Bruno Garcia Restelatto said...

Opa Paulo!
Realmente a primavera deve alegrar muito a cidade das luzes! Como nunca fui a Europa não sei opinar sobre o rigoroso inverno, mas penso que deve ser estonteante também! A respeito das fotografias, tenho um amigo que adora fotografar e até participa de um pág. especializada em tal ação! Seu nome é Daniel e seu blog é http://danielbosi.blogspot.com/
Abraço! Aproveite a primavera fora de época!

00:40  

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