15.2.07

Falando mais claramente

A comoção só se mostra maior, cada vez mais profunda. Traz à tona nossos instintos mais crus, aqueles que nos remetem à carne de que somos feitos. É difícil controlá-los, queremos expulsá-los de nós, precisamos dar vazão à força cega que geramos no peito e que nos consome. É claro que não somos racionais o tempo inteiro.

Nessas horas, dizemos a primeira coisa que vem à cabeça. É natural que seja assim, temos o dom da fala mas nem sempre o domínio da razão que a gera (curiosamente, os gregos tinham a mesma palavra para designar a fala e o pensamento: logos). Nessas horas, também lemos o que queremos, e nossa pulsão irrefreável nos conduz a trucidar qualquer voz que tente nos trazer à razão e nos concitar a ações mais úteis do que as gritarias ensandecidas. Num primeiro momento, esses clamores são estéreis e algo singelos, mesmo quando reclamam sangue para pagar mais sangue. Esse ódio, essa obliteração dos sentidos, depois que soterra em definitivo a razão, se torna perigoso, transforma seres humanos em uma massa violenta e disforme, pronta para se entregar ao mando do primeiro grande líder, guia, timoneiro ou como queiram designar-se.

Sim, isso já aconteceu mil vezes na História. As massas ignaras, ainda que formadas por povos cultos como o alemão e o russo, já se entregaram a seus rancores e alçaram ao poder monstros como Stalin e Hitler. Mas esses monstros não eram adolescentes bárbaros; eram homens formados, dotados de discurso, carismáticos, capazes de seduzir todas aquelas pessoas de bem que só precisam de alguém que dirija seus hormônios para alguma válvula de escape. Massas tão cheias de ódio quanto nós estamos hoje.

Nunca na história alguém foi capaz de, pela palavra, trazer de volta as pessoas ao juízo. Mas continuamos tentando. Várias vezes já ouvi que cada um nasce com uma missão. Não sei se é verdade; se for, não sei se nós mesmos podemos escolhê-la. Mas se pudermos, já tenho uma opção para mim: combater o obscurantismo que cresce como hera pelas vigas da consciência na maior parte do mundo por enquanto ainda civilizado, mais particularmente no Brasil. Se você acredita que o contrário de guerra é guerra, o de barbárie é barbárie e que sangue se lava com sangue, meu assunto é com você.

Portanto, tentarei ser mais claro. Criminosos devem ser punidos, justiça deve ser feita. Evidentemente. Mas a Justiça só existe onde há lei: uma lei que faça sentido e responda aos anseios da sociedade. Eis o princípio básico da sociedade liberal moderna. A idéia de justiça com as próprias mãos é muito impactante nos filmes de Hollywood, mas na vida real é o caos, mais adaptada à bandidagem do que a Estados bem sedimentados.

Não serei eu, repito, a defender criminosos; muito pelo contrário. Eles devem ser julgados e encarcerados, de acordo com os princípios do Estado de Direito. Isso se chama civilização. Tortura, morte lenta e coisas do gênero chamam-se barbárie, e vigeram durante um longo período da história, notadamente na Idade Média. Não são uma solução e não significam nada a não ser o fato de que retratam a mesma ordem social que fomenta o crime em primeiro lugar. Assim como queremos derramar o sangue dos nossos criminosos, eles querem derramar o nosso. De derramamento em derramamento, onde vamos parar?

Só terá paz uma sociedade que promova a paz em todos os seus domínios. Se no Brasil os professores não educam, os empresários não investem, o parlamento não legisla, os juízes não respeitam a lei e a polícia a quebra, o que se poderia esperar, senão a bagunça em que vivemos? Qual é a surpresa? Desculpem a honestidade, mas é piada querer resolver a situação exigindo a redução da maioridade penal. Qualquer um sabe que é só mais uma canetada, e não estou dizendo que ela deve ficar nos 18 anos, nem subir para 30, nem descer para 12. Digo, sim, que é uma perda de tempo e uma ótima maneira de manter o mesmo status quo, aparentemente muito confortável. E deve ser, mesmo: se os brasileiros são tão ávidos por sangue, ei-lo. Mudar alguma coisa seria estragar a festa.

Eu não gosto de banho de sangue, nem de país dividido. Não quero relativizar nada: quero acabar com a barbárie. Quero meu país civilizado, para que possamos andar tranqüilamente pela rua. Todos os brasileiros, não apenas aqueles que se vêem no direito de considerar-se algo mais do que os outros. Se você acha que a melhor maneira de combater o crime é atirar pela janela as conquistas mais preciosas e árduas da civilização, sinto informar: você está do outro lado, a um passo de cometer atrocidades tão graves quanto as que fazem seu sangue ferver nas têmporas. Aí, aqueles tais direitos humanos, que nunca, jamais, tiveram um mínimo de aplicação no nosso país, vão fazer falta.

2 Comments:

Blogger Lua em Libra said...

Gostei, Paulo, da sensatez. Sabe o que é pior? Eu quero - e muito - que tu estejas certo e eu errada. O mundo faria mais sentido. Beijo, gosto sempre de te ler.

23:54  
Anonymous Anônimo said...

Bela retórica. Como ousa colocar o nome do Comandante Supremo próximo ao daquele maluquinho cabo da Boêmia? Acho que você, na contagiosa inocência promovida pelas ilusões burguesas de sempre, ainda não tomou plena consciência de que hoje estaríamos todos falando alemão com sotaque bávaro-austríaco se não fosse a gloriosa intervenção do Grande Líder.

Carlos Roberto

18:11  

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