O músculo criativo: digressão tautológica

Falam de um músculo criativo; a analogia é boa. Como um músculo que trabalhou mais do que pode, ou foi submetido a uma carga opressiva, a criação também se enche de ácido lático e fica estatelada. Nessa hora, as folhas seguem brancas. Se não voam, é porque um cotovelo as prega à mesa. E as janelas, fechadas, censuram o vento.
Com os dedos repousados, sem exercício, e os olhos afundados, o autor sofre em silêncio. E solitário. Ninguém percebe o vazio, onde deveria haver fantasias e fantasmas. A expressão melancólica se apresenta como apenas um momento entre outros, uma parte de algum processo insondável. Ele passa por normal.
Qual o quê. O autor se sente como o peregrino que sobe os degraus do templo e dá com as portas trancadas. Inexpugnáveis, as enormes portas de chumbo. Que se aproxime delas, e as veja ainda ornadas com os baixos-relevos imemoriais da tradição. Pouco adianta. Eles se fazem sempre opacos para sua visão exausta. O pobre se descobre um sacerdote excluído da celebração. Golpeará a barreira por dias a fio. Fará retumbar à toa a aldraba. A seus pés, a cidade seguirá sua vida, mas a catedral lhe negará o acesso.
Ele não maldiz os deuses. Não solta o grito de morte da esperança. De sua boa ressecada, o menor grunhido não sai. Figura-se em sua mente uma explicação. Uma solução, lícito dizer? Algo na sua atmosfera quotidiana o oprime. Seu músculo não tem um edema; está sufocado por um ambiente inóspito. Seu mundo é seu inimigo.
Em meio ao oceano em que se afoga o sentido, uma única palavra subsiste: a mudança. Ela se multiplica, costura-se qual tumor através de todos os tecidos. Ao autor emudecido, escapa sua principal fraqueza. Ela é desprovida de potência pelo que tem de idéia. Transmutada, animada, encarnada, soprada. Mas idéia.
Iludido pela fé na palavra, ele abandona a multidão das cidades. Rejeita o que, um dia, carregado por um espírito ébrio, louvou como solo inexaurível para sua imagem de vinha. Busca, no pólen do fígado e da memória, o contato com as musas ariscas. Estão, ele crê, escondidas nos troncos das árvores. E quando não respondem, ele é incapaz de reação melhor do que os golpes de machado.
O cansaço se apodera de sua vontade quando o último caule vai ao chão. Quando expira a madeira, voam, livres, as últimas ilusões. O misticismo, o romantismo, o simbolismo, tudo isso vai ao chão, espoucando com a folhagem morta.
Ao autor, resta apenas aquela analogia. O músculo. Toda sua busca foi vã. Ridícula, aos olhos de quaisquer deuses que comandem a arte. Como para toda a musculatura de seu corpo vincado, esse nada mais exige do que repouso e alongamento. Exercitaste-o demais, abusaste. Agora paga.
Ainda nervoso e inconformado, mas já pronto a admitir o fracasso, ele se deita. Fecha os olhos, não pelo seu peso, mas com grande esforço. Tenta dormir. Tem fé, mais uma vez, naquilo em que passou a acreditar. Pensa que, dali a pouco, será despertado por uma nova energia que invadirá esse tal músculo.
7 Comments:
Ola moço de paris.
gostei do texto.. gosto do seu estilo.
bom fim de semana!
Muito bom. Mas vou procurar uma palavra no dicionário: aldraba. E adorei ver a palavra "inexpugnável". Muito bacana essa sua costura gramatical.
oi, amigo. voltar-se para dentro, para um músculo, um osso, um neurônio, isso que nos faz ter o famoso distanciamento. nem sempre crítico, mas produtivo.
à bientôt
je rentre pour te souhaiter un beau dimanche, avec una nouvelle saison.
bisous
Ufa, enfim uma breve visita.
Gostei muito do texto (sagaz, criativo e inquietante), tanto que voltarei sempre!
Abraços.
Achei fantástica a abordagem do fenômeno "físico-químico" que, em última análise, é o ato de criação na literatura. Afinal de contas esse tal de cérebro é só um músculo...
Sim, Paulo, a nova energia existe, e ela também vem do equinócio da primavera! Seu estilo de entranhar a alma na carne é inconfundível e único. Beijos e a parabéns!P.S.: leia minha homenagem à primavera em meu blog http://morango.blogsite.org
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