15.9.07

Independência e idade adulta


Hoje é meu aniversário de França. Um ano desde que desembarquei em Paris e, de repente, sem motivo, bateu uma saudade irresistível das idiotices da puberdade. Esse é, certamente, o momento mais difícil da vida, mas, mesmo assim, vale a idéia de que só tende a piorar com o tempo. Quando garoto, a gente não pode nem acreditar, se nos disserem algo assim. Para um pré-púbere, acumular anos é uma escalada segura para a independência.

Que sonho louco, a independência! Dezoito anos, maioridade, um carro, entrar e sair quando der vontade. A faculdade, onde acompanharemos "as aulas que escolhemos", como nossa ingenuidade nos faz crer, malgrado as reclamações dos irmãos e primos mais velhos. Crescer parece muito bom.

A primeira vez em que temos a convicção de que rumamos a passo firme para a absoluta independência é quando nos vemos capazes de discordar com veemência das opiniões do pai, ou de dizer à mãe algo como "você é chata, mãe!". Quando se dá isso? Entre os nove e os doze anos, imagino. Não lembro. E, no entanto, parecia inesquecível. Depois, chega o momento de derrubar as barreiras que nos parecem tão injustas.

No caso dos meninos, pelo menos, isso envolve, pela ordem, os palavrões, o álcool e a revista de mulher pelada, que é o primeiro passo no caminho desesperado do "comer alguém". (Que palavra capciosa, esse "alguém".) Depois da etapa fundamental que é o primeiro porre, a pornografia parece a vitória definitiva, após a qual não haverá mais objetivos, porque todos os objetivos possíveis já foram alcançados. Bem se vê: para aprender as coisas da vida, é preciso começar não sabendo nada.

Isso explica o ar de general de um menino que comprou sua primeira "revista de sacanagem". Sente-se um transgressor, indomável, explorador dos maiores segredos das mulheres de plástico, todas nuas, com que irá se maravilhar dentro daquelas páginas, e que achará mais tarde, se tudo se passar bem em seu desenvolvimento, pior do que deploráveis. Se, nesse dia, ao entregar nas mãos do vendedor o volume rechado de nudez que escolheu, suas pernas tremeram e suas mãos se afogaram em suor, é mais um símbolo do sucesso. Da próxima vez, não haverá tremedeira, nem coração acelerado. Ele será um verdadeiro homenzinho. Está aí o buço não raspado, para provar.

Daí por diante, etapa após etapa, parece que tudo é conquista. Os momentos tão simples de auto-afirmação são como fincar uma bandeira em praia hostil. Depois, quando passa o tempo do vestibular e do exame de direção, vai-se com ele todo o deslumbramento com as tais conquistas. A universidade é uma decepção, verdadeira fábrica de gente mal qualificada, e andar todo dia de carro é meio caminho para o hospício. Finalmente, no subir do pano, uma verdade singela e amarga se revela: não há um pingo de independência na vida adulta.

Uma criança lida com duas grandes forças de contenção e autoridade, que são seus pais. Convém obedecer, vez por outra, e parar de chorar antes que eles sejam levados a nos estrangular. Uma situação castradora, pode ser, mas fácil de administrar, e que a escola só virá intensificar ligeiramente. Nada de mais. O problema, que ironia, só começa a se tornar mesmo sufocante (e não estou falando da opressão de que um adolescente se considera vítima) após a maioridade. Os centros de contenção de nossa criatividade se multiplicam e ganham outros nomes. Em geral, siglas: INSS, CPMF, DPF, RH. E não tem escapatória: errou no menor passo, é dor de cabeça garantida.

Um ano, hoje, como eu disse, em que estou na França. Isso significa, entre outras coisas, renovação de título de permanência. Graças a Deus, não houve grandes problemas, mas a tensão que precedeu a entrega da papelada interminável foi quase demais para os meus nervos. Meses e meses de angústia. Algum funcionário podia resolver que não posso continuar meus estudos. E não haveria nada a fazer. Não que, no Brasil, a coisa fosse diferente. Não votou? Não tira passaporte, malandro.

Enquanto isso, os bancos querem cobrar taxas por serviços que pareciam nem existir; o aluguel precisa ser renovado. Senão, rua. Há trabalhos a entregar, horários e prazos a cumprir. Senão, mesma coisa, rua. Enquanto estou aqui, escrevendo para o blog, sei que há alguém de olho em meu fígado e nos olhos da minha cara. Lembro do exemplo de um amigo próximo que caiu, recentemente, no golpe de um sujeito que dizia alugar um apartamento. Perdeu uma nota preta, e ainda precisou comemorar o fato de não ter sido seqüestrado ou esquartejado.

O chefe mais desagradável que já tive era, por outro lado, um sujeito muito sagaz e, apesar de duro e grosseiro, justo. Certa vez, vendo a fumaça que soltava uma dúzia de cabeças em sua equipe, ele se virou para nós e disse: "Estão reclamando do quê? Vocês só têm um chefe. Eu tenho cinco." Nunca me esqueci dessa frase. Quanto mais se sobe, mais se é empurrado para baixo. Mais querem nos oprimir. Mas a única alternativa a continuar subindo é se esconder debaixo da cama, até que os agentes de despejo venham recolhê-la.

Sonho com uma existência em que não seria necessário se sujeitar às fustigadas da vida em sociedade. Morro de medo de acordar e ter à minha frente os guardas que executaram Joseph K. Às vezes, não consigo aproveitar os bons momentos, porque já antevejo os aborrecimentos do dia seguinte. E pensar que já houve um dia em que o que mais me deixava ansioso era ver uma mulher sem roupa.

12 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Mas estar na França é experiência única.

Gostei do blog e da leitura. Voltarei.

Beijos, querido!

06:34  
Anonymous Anônimo said...

meu amigo, eu sou um jovem de 23 anos, e sinto cada bez mais saudade da minha meninice. nada que perdi lá foi compensado pelos ganhos da dita "independência". eu escreveria mais sobre isso, se tivesse seu fôlego de cronista :-)

17:22  
Blogger Alexandre Kovacs said...

Diego, obrigado pela visita ao meu mundo. Algumas vezes também me sinto como Joseph K. Gostei dos seus textos e voltarei por aqui.

20:01  
Blogger marilia said...

salue diego...
ça c'est bon...
fait comme touts les garçons et les filles de ton ãge...
Cara, vai aproveitar o dia, vai baladé, promené, comemoré...( rsss) - desculpe o afrancesamento...rsss
afinal, apesar de tudo, paris é sempre uma festa aos olhos...
sucesso e que vc fique o tempo que precisar para realizar seus objetivos!
um abraço...

00:41  
Anonymous Anônimo said...

Oi menino, desejo que as coisas fiquem mais leves e alegres pra você... não esqueça que, de qualquer forma, é um privilegio estar estudando em Paris com a sua idade...
Grata pela visita e fique bem.
Beijo grande

02:11  
Anonymous Anônimo said...

Diego,

É sempre um enorme prazer ler o que você escreve. Hoje, porém, o prazer foi dobrado ao lembrar dos bons tempos -- aqueles que, e agora percebo com mais clareza, resistem para mim nos meus poemas.

abração,

Sylvio

13:49  
Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

Adorei o modo como vc descreveu a passagem da adolescência p/ a idade adulta, do ponto de vista masculino. Muito bom!

04:24  
Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

Tô aqui explorando seus posts mais antigos e descobri que um dia fomos quase vizinhos... moro no Jd Bonfiglioli. Adorei o seu post de 14.5.06 - "Sou feia mas tô na moda" - tanto vc queria mudar de país que consegiu, né?? Um dia eu chego lá!! []s

04:36  
Blogger Leila Andrade said...

É verdade, meu caro, o mundo é esse, cheio de estradas sinuosas e pessoas desgovernadas conduzindo.
No entanto, a poesia brota de asfalto.

Olha, tem Leva nova no www.diversos-afins.blogspot.com
Quando puder, apareça.
Beijos.

16:12  
Anonymous Anônimo said...

Eh, rapaz. Lembrei-me de vc, o mais moleque da turma de trainees da FSP, todo feliz com a "fortuna" do primeiro salário, enquanto os demais (incluindo este que vos escreve) xingavam a merreca recebida. Se eu tivesse me recordado de que a felicidade pode residir na aquisição de playboys e congêneres, veria a fortuna que tinha em mãos! Mto bom seu texto, como de costume. Saudoso abraço!

21:28  
Blogger Franciel said...

Meu velho, obrigado pela visita. Quanto ao fardo da passagem do tempo, furto o poeta baiano Antônio Brasileiro: "A verdade é uma só: são muitas. E estamos todos certos - e sem rumo".
abraços.

18:39  
Anonymous Anônimo said...

parabéns... e tô meio nessa fase de passar da aborrescência pra vida adulta. quero independência, mas tenho medo... sabe com é né?!!! bjs.

23:42  

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