20.7.07

A derrota é uma vitória mal contada

Não será por causa da decadência geopolítica, da aniquilação cultural ou do sufocamento econômico que a velha França deixará de manter seu indefectível nariz empinado. Quando o assunto é salvaguardar a fleugma que constitui o cerne da identidade nacional, não se pode medir esforços. Verdadeiras guerras podem ser deflagradas em nome dessa imprescindível arrogância. E, como sentenciou o sábio Hiram Johnson, em tempos de guerra, a primeira vítima é a verdade. Os franceses, quem já lutou contra eles pode confirmar, não conhecem a misericórdia.

A mais recente vítima atende pelo nome de Piotr Ilitch Tchaikovski, o compositor russo de "O quebra-nozes", "Capriccio Italien", "Romeu e Julieta" e a "Abertura 1812". Esta última é minha preferida. Dura quase 16 minutos e conta a história daquilo que os russos chamam de Guerra Patriótica. Ou seja, a campanha russa de Napoleão, chamado até hoje de "imperador Napoleão I" pelos franceses. Foi, claro, em 1812. É fantástico como todos os detalhes podem ser ouvidos na música. Está presente a invasão (em junho) dos quase 700 mil homens que formavam o maior exército jamais montado, até então invicto. Em acordes tristes, lânguidos, são narradas as vitórias iniciais da "Grande Armée" de Napoleão. À medida que os franceses avançam, a Marselhesa se eleva por detrás das tropas e as empurra para mais uma vitória fácil e gloriosa.

Acontece que "1812" celebra um triunfo russo, não francês. A "Grande Armée" ganhava terreno com facilidade, mas não havia batalhas. Os exércitos do czar batiam em retirada, deixando para trás um enorme país arrasado, incinerado, calcinado, de que os soldados invasores não podiam arrancar nem uma mísera batata. O enfrentamento só se deu em 7 de setembro, na batalha de Borodino. Ao final, não havia um vencedor. Mas havia 100 mil mortos.

As escaramuças estão descritas em detalhe na composição de Tchaikovski. Com canhões, carrilhões, o hino francês e temas russos. Após a carnificina, Moscou estava aberta para as tropas napoleônicas. O czar Alexandre I havia batido em retirada. O último grande baluarte da Europa continental parecia aos pés do maior guerreiro da era moderna. Mas, se os franceses estão dispostos a tudo para resguardar seu orgulho, os russos estão dispostos a muito mais por sua terra. Atearam fogo à própria capital e deixaram o inimigo privado de mantimentos, batendo em retirada às portas de um inverno tão rigoroso que mereceu a patente de general.

Foi o maior desastre militar francês. No caminho de volta, os soldados iam sendo abatidos pela fome, pelo frio e pelos ataques dos cossacos. Voltaram para casa apenas 70 mil homens. Um décimo dos que haviam entrado. A "Grande Armée" estava dizimada.

O final de "1812" reproduz a festa dos russos vitoriosos, salvos da invasão, heróicos, ébrios, triunfais. A peça foi executada pela primeira vez em 1882. Depois, tornou-se uma das composições mais interpretadas no mundo.

É, afinal, a maior das peças patrióticas. E o 14 de julho, data nacional francesa, acabou de passar. Como todo ano, houve dezenas de celebrações; umas interessantes, outras cafonas. Uma delas foi, justamente, um concerto de músicas patrióticas, com obviedades como "Pompa e Circunstância", de Elgar, e coisas divertidas, como a marcha "Liberty Bell", de John Philip Sousa, mais famosa como o tema do "Monty Python's Flying Circus". Mas o fechamento, como sempre, foi a "Abertura 1812". Nada mais natural, a não ser pelo texto de apresentação. Segundo a interpretação francesa, "a obra foi composta em comemoração aos 30 anos de reinado do czar Alexandre I." Mas o que estariam fazendo trechos da Marselhesa nessa peça? Boa pergunta, que o texto tenta responder: "Sentiu falta da Marselhesa? Pois apure os ouvidos, e você a escutará, avançando com a bandeira tricolor!"

Que importa se a bandeira foi destroçada, junto com os exércitos que a carregavam? Nada. Fidelidade aos fatos é conversa de perdedores. Para os franceses, não será torturando-se pelas humilhações do passado que o país se manterá rico, mais ou menos influente e razoavelmente forte. Ainda que a percepção da lenta derrocada esteja clara para todos, somente um olhar para as grandezas da história poderá incitar um novo crescimento. Escarrar sobre o próprio passado é a forma mais segura de repetir seus piores erros. O que pode esperar do futuro um país que não sabe honrar aqueles que o construíram, para o bem ou para o mal? Quem haverá de querer continuar a construí-lo? É mais provável que queiram dilapidá-lo.

9 Comments:

Blogger jorgeferrorosa said...

Espaço interessante. Um abraço

10:50  
Anonymous Anônimo said...

A França é imunda, sempre foi e sempre será.
E não é de higiene que eu falo.

16:10  
Anonymous Anônimo said...

Paulo,

um texto de verdadeira beleza poética.

Abraços, Guilherme.

02:13  
Blogger Madalena Barranco said...

Olá Paulo, a história torce os fatos a seu bel prazer... Eu gostei de conhecer este outro lado da batalha - fiquei curiosa em conhecer a música 1812 e como amo música clássica, agora vou atrás dela! Beijos.

16:51  
Blogger Ivo Korytowski said...

O desastre napoleônico na Rússia é magistralmente reconstituído no clássico da literatura russa Guerra e Paz!

23:53  
Anonymous Anônimo said...

Caro Paulo,
Como você sabe, estou de volta ao Brasil depois de minha temporada em Paris. Aqui, somos obrigados a lidar com aqueles inúmeros problemas de um país pobre. Contudo, devo admitir que não sinto a menor falta do nariz empinado francês, nem dos delírios deles mesmos sobre sua pretensa grandeza. A França, camarada, é "decadance avec arrogance". Ainda é melhor que o Brasil, sem dúvida; mas eu arriscaria que falta pouco para a pilhagem começar.

01:56  
Blogger i said...

É verdade, Ivo. Imagine ler Tolstoi ouvindo Tchaikovski? Deve ser uma loucura...

02:15  
Blogger i said...

Fala Rafa!

Chegou tranqüilo? O avião não caiu? Maravilha! É engraçado, eu cheguei a escrever a expressão décadence avec élégance, mas tirei porque o texto estava muito longo... É bom ver que o pensamento de nossos amigos sintoniza com o nosso!

Abraço!

02:16  
Anonymous Anônimo said...

"Para os franceses, não será torturando-se pelas humilhações do passado que o país se manterá rico, mais ou menos influente e razoavelmente forte."


Não só para os franceses, como para os japoneses (que o texto me fez recordar). Depois de bombardeios e caos, eis que surge uma super-potência tecnológica.
O Brasil poderia seguir o exemplo e ressurgir das cinzas. Me faria feliz.

03:22  

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