31.5.07

Silêncio em Rondonópolis


A programação regular se interrompe; invade a tela uma vinheta que anuncia notícias de última hora. Para minha surpresa, é coisa do Brasil e, portanto, me interessa. Mas, como sói acontecer com notícias vindas do Brasil, é problema. Durante um treinamento policial, informa a voz inabalável da jornalista, um menino de 13 anos foi atingido na cabeça por uma bala de revólver, e morreu na hora, claro, diante de vários de seus colegas.

Chocado, corri para procurar a informação na internet brasileira. Não posso negar que encontrei menções em todas as principais fontes de notícias, O Globo, Folha, Estadão, JB e assim por diante. Mas em nenhuma delas, curiosamente, nem mesmo na barafunda do UOL, o acontecido mereceu a primeira página (isto é, a página inicial). A pequena tragédia - pequena, bem entendido, para quem não está envolvido - mereceu da televisão de um país distante a interrupção de um programa. Mas no próprio Brasil, seu verdadeiro palco, o máximo que valeu foi uma nota de rodapé.

É natural, num certo sentido. Com tantos assassinatos intencionais, até gratuitos, por que dar destaque a um acidente? Por que anunciar mais uma criança que perde a vida de forma gratuita, se foi resultado de mera incompetência, não de mais um degrau superado na escalada do barbarismo? A incompetência, afinal, já está perfeitamente documentada; há tempos deixou de ser notícia. Ora, (direis,) se estamos em semana de final de Copa do Brasil! Há mais o que se noticiar, certo?

Mas acho que ainda há algo a comentar. Em primeiro lugar, é evidente que o treinamento que resultou no acidente já estava sendo mal conduzido. Era uma simulação de seqüestro com reféns para policiais militares em Rondonópolis, Mato Grosso. Em que pese o uso já pouco sensato de crianças nesse gênero de trabalho, o acidente só aconteceu porque, em algum momento, uma arma esteve apontada na direção da cabeça de um refém, e o gatilho foi puxado. Numa triste coincidência, aquelas balas não eram de festim, como se supunha.

Acontece que o tal treinamento era, também, uma demonstração, e teve lugar durante uma festividade local. Demonstração de seqüestro durante uma festa? A mim, isso soa terrivelmente estranho. Será que nossa população chegou ao nível de tirar prazer de um espetáculo de violência? Fingida, é verdade; mas violência, mesmo assim. A platéia estava disposta a aplaudir os bravos soldados, quando aniquilassem os falsos bandidos?

Isso ainda não é nada. Do mais terrível, só fui saber dois dias mais tarde. Os sete policiais envolvidos, afastados e presos, resolveram adotar uma estratégia questionável para embaralhar o inquérito. Questionável e pouco inteligente. Em conjunto, negaram que houvesse um revólver com munição verdadeira. Todos, segundo eles, tinham balas de festim, como manda o figurino.

Negar os fatos é o tipo de coisa que só acontece no Brasil. E se acontece, deve ser porque funciona. Todas as armas foram recolhidas, espera-se. Estão em posse da Justiça. Verificar qual delas tem balas verdadeiras é a coisa mais fácil do mundo, e talvez sejam todas. Em tese, negar que alguém tenha cometido um erro é inútil e, pior ainda, um agravante. Uma tentativa (estúpida, é verdade) de bloquear o trabalho da Justiça. Mesmo assim, é um recurso de que os acusados lançam mão com uma freqüência notável em nosso país.

A idéia é atrasar, o máximo possível, o inquérito e um eventual julgamento. Esfriar as coisas, como se diz, até que o caso seja esquecido, arquivado e, de uma certa forma tipicamente brasileira, perdoado. Reintegram-se os policiais e tudo volta ao normal, salvo para a família do garoto sacrificado.

Policiais e bombeiros, em tese, são os heróis da vida contemporânea, urbana e violenta. Seu assunto é nossa segurança. São profissões para quem está disposto a arriscar a vida pelos outros. Em tese, como parece que tudo na vida é "em tese", têm uma posição central na sociedade. Mas são humanos, cometem enganos; uma vez que lidam com armas e outros materiais delicados e perigosos, seus erros podem ter conseqüências funestas, como aconteceu em Rondonópolis.

Pelo menos um dos envolvidos, negligente e leviano, se confundiu; carregou sua arma com munição normal, em vez das balas de festim programadas. É um erro. Estúpido, admitamos. Mas é vergonhoso que alguém que recebe treinamento militar seja covarde a ponto de negar o erro, sobretudo quando é tão evidente. Mais vergonhoso ainda é que os sete, dos quais seis, espero, não cometeram o erro, se unam para bagunçar um caso que, desde o começo, já era suficientemente problemático.

Posso até louvar o senso de companheirismo dos sujeitos, mas é inaceitável a união, em nome da covardia, de profissionais investidos de uma enorme confiança da sociedade. Se nem mesmo nossos policiais, treinados para o heroísmo, conseguem ter brios, quem o terá? Se eles se juntam para abafar um caso desses, evidente e simples, vão deixar de se unir por motivos mais sérios?

É por isso que não posso estranhar a falta de destaque nos jornais brasileiros. Já não se espera, mesmo, nada de positivo das nossas instituições. Todas elas. O erro de um policial não significa grande coisa. A covardia, menos ainda. Que as forças da Justiça servem para garantir tudo, menos justiça, já é assunto para embrulhar peixe na feira. Não se pode querer chamar a atenção do leitor brasileiro acompanhando um caso desses. Para que atitudes condenáveis da polícia recebam destaque, precisam ser muito mais graves do que isso.

4 Comments:

Blogger O natural de Barrô said...

Muito pertinente.Nas noticias aparentemente menores é que se vê e revê o estado da sociedade.
Para quê fazer este tipo de exercícios ?
Provávelmente existiram motivos económicos!Não faz sentido o exercício decorrer durante uma festa.

20:58  
Blogger Unknown said...

Já morei no interior do Brasil, Paulo. Tudo é festa. Ser policial, motivo de admiração. Uma polícia tão treinada a ponto de salvar os cidadãos de um sequestro em um ônibus (coisa q, suponho, jamais ocorreria em Rondonópolis) é um luxo, coisa mesmo de cidade grande. Daí estar no meio dos festejos. Quando falta diversão, tudo é diversão —fez sentido?
Sobre o desconhecimento da autoria do disparo, bem...é a invenção solidária dos advogados dos réus em casos assim. Se não se prova quem fez ou quem não fez algo, não há culpados.
Saudoso abraço,
Palhaco66, em seu primeiro comentário em um blog

02:57  
Blogger katy said...

o que aconteceu foi realmente um absurdo. difícil de acreditar que alguém possa cometer um erro desses. esperamos que o responsável seja punido. bjs.

23:07  
Anonymous Anônimo said...

Pode até ser que os jornais aqui no Brasil não tenham destinado a primeira página a esta estupidez (O GLOBO, na versão impressa, o fez, sim), mas a televisão divulgou maciçamente a notícia durante vários dias.
Lamentavelmente, concordo com você de que este acontecimento absurdo, inaceitável até, talvez não dê em nada em termos de punição, afinal já há tantos outros escândalos nas primeiras páginas e na TV.
Às vezes tenho a impressão de que o sistema é este mesmo: estar sempre chamando a atenção para uma nova "barbaridade" a fim de que a precedente caia no esquecimento. Triste.

17:11  

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