22.5.06

Cartas de um domingo triste

Domingo de resfriado, passado todo debaixo de cobertas na companhia de álbuns dos Beatles e do Bob Dylan com o dobro da minha idade. A intenção era dormir para estar bem na segunda-feira: impossível. Na churrasqueira um grupo de pessoas que depois descobri serem da mesma família (que família enorme, caramba!) produzia uma coletânea de todo tipo de música péssima que já se produziu desde que Benjamin condenou "a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica". Do pior popero (ou putz-putz) ao funk de morro, passando por Latino e sertanejos, até coisas que nem sei de onde vêm. Os Beatles foram a minha salvação: para combater o aparelho de som caríssimo que a família lá de baixo trouxe, só mesmo meu computador velho de guerra.

Um parêntese: é incrível como o putz-putz não mudou nada do meu tempo pra cá. As pessoas não evoluem mais? Quem gosta de música eletrônica sabe como ela evoluiu desde Kraftwerk até os Chemical Brothers; mas o putz-putz mesmo, esse que se ouve em boates há vinte anos, continua idêntico. Que mundo sem graça...

Recebo por e-mail um relato indignado de uma dessas auto-denominadas "pessoas de bem" contra o protesto da mãe de um rapaz da Febem. Ao que parece, o garoto vai ser transferido para uma unidade do interior, onde não poderá receber visitas da progenitora. A mãe não quer ficar longe do filho, e nesse e-mail o "cidadão de bem" reclama de todas as formas possíveis, exigindo que ela pague pelo colchão que o garoto teria queimado na última rebelião de sua unidade e assim por diante. Termina, claro, como sempre em mensagens de "cidadãos de bem", dizendo que "direitos humanos são direitos de bandidos".

Não sei como os direitos humanos entraram nessa história, mas acho uma estratégia brilhante transferir o rapaz. Senão, vejamos: todo mundo sabe que a Febem, a exemplo das cadeias para adultos, é uma fábrica de criminosos. Quem entra ruim sai péssimo, e pior: qualificado. Aprende a atirar, ameaçar, brigar e, sobretudo, odiar. A Febem, todo mundo sabe, não é segredo para ninguém, forma com louvores um vastíssimo exército de pessoas com raiva da sociedade que em algum momento vão para as ruas e, até serem executadas por algum capitão-do-mato (ou da PM), fazem um belo estrago.

Porém, existe uma força na direção contrária, que precisa ser combatida pelos brilhantes planejadores do Estado. Sim, elas mesmas: as mães. As famílias. Os garotos que passam a semana inteira convivendo com colegas violentos e monitores cruéis, aqui e ali um sodomita, sempre a lei da selva e da sobrevivência a quelquer custo, nos finais-de-semana ainda têm contato com uma realidade diferente. Isto é, aqueles que têm família, claro, o que não é a regra. Mas os que têm ainda recebem um pouco de carinho e influência positiva daquelas que sempre os amarão, ainda que se tornem os animais em que o Estado e a sociedade querem transformá-los.

Fico imaginando os diretores de unidades confabulando entre si: como eliminar essa ameaça ao nosso projeto de formar um verdadeiro exército criminal nas ruas? Essas mães não podem continuar assim! Talvez tenha sido assim que surgiu a idéia de afastar o garoto em questão da família. Tática brilhante.

Portanto, caro missivista do bem: não se preocupe, que a noção de direitos humanos passa longe deste país. Os bandidos vão continuar sem eles, e você também.

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