15.10.06

Seção Dedo de Prosa: Aeroporto


Chegou à cidade e foi logo pedindo um copo d’água. No saguão do aeroporto, carrinhos para cá e para lá, ficou parado de pé como se esperasse a ajuda de alguém, mas na verdade lançava com os olhos um singelo pedido à cidade, com toda sua educação. Mas a cidade recusou. Então ele se virou e ficou a contemplar a pista, em que aquelas máquinas enormes espremiam suas turbinas até ganhar os céus. Aos suspiros, observou a graça mastodôntica com que os aviões desgarravam o trem de pouso do chão. A cada aterrissagem, piscava por reflexo. Não estava mais acostumado à cidade, ao espraiar marcial da cidade,à clareza hostil da cidade que recusa um copo d’água ao forasteiro que acaba de chegar.

Sentia-se velho porque era tomado por nuvens de aversão àquela terra velada pelo cimento, àquele catálogo de ruas que um dia foram suas, quando eram tão poucas a ponto de conhecê-las todas pelo nome. No tempo em que se viajava para o campo de bicicleta, sem precisar embarcar em um daqueles tanques de guerra voadores. A linha do tempo, pensou, é um rastilho que nos persegue em silêncio, sempre tentando parecer distante e inofensiva. Mas um dia os olhos já fundos se tornam e enxergam a faísca a atingir a pólvora. Aí é tarde.

Sentou-se ao lado de sua mala pesada, ainda contemplando os aviões; subindo, descendo, taxiando. Um trenzinho carregando malas que ameaçam cair. Um caminhão de serviço, com bandejas plastificadas até a borda. Homens de colete cor-de-laranja, boné e fones de ouvido do tamanho de bolas de tênis, que acenam suas raquetes chamativas para os monstros resfolegantes.

A distância, como o tempo, é um caldeirão de fermentar amargura. Uma vida de exílio auto-imposto pode tornar todo país estrangeiro. Pensou nas esquinas que um dia ele dominava como um rei, cortando de uma transversal a outra com a mesma agilidade dos cabos elétricos. Aquelas esquinas, símbolos de elegância e desenvolvimento, são hoje retratos de degradação. Seus antigos prédios de fachadas suntuosas e pé-direito imponente tornaram-se pouco mais que memoriais da decrepitude. Seus antigos vizinhos, enriquecidos, mudaram-se para bairros distantes e inacessíveis, ou por outro lado empobreceram e sumiram na poeira. Escaparam apenas aqueles que morreram. Uma doença, um atropelamento, um crime, pronto. Paz e um outro mundo.

Cada vez que uma voz aguda e desajeitada irrompia pelos saguões do aeroporto, um bando de pessoas de ar desamparado se erguia de suas cadeiras. Arrastando corpo e bagagem, iam postar-se diante do portão, em fila desordenada. Querem ser devorados. Pensam que serão recebidos no conforto de um aparelho servil, mas não sabem que aquilo é na verdade a encarnação urbana e metálica de Moby Dick.

Pequenos calafrios o chamavam de volta ao seu planejamento. Certamente a família já se acotovelava por entre parentes alheios do lado de fora, talvez preocupada com seu atraso. Brava família, que ficou para trás na selva negra. Como serão os netos? Ainda bípedes? Ainda têm dentes para mastigar? São ainda capazes de trepar numa árvore? Que raios, são crianças. Não têm culpa de nada ainda, mas um dia certamente terão uma culpa que não fará senão somar-se à nossa e à de nossos pais. Mas por enquanto são a encarnação da inocência, não têm culpa, só nós carregamos esse peso, talvez porque não saibamos agir de outra maneira.

Recolheu sua bagagem, lamentando o peso de todas aquelas roupas. Longa temporada na cidade. Foi caminhando, devagar. Tempo apenas para mais uma olhada pelo grande painel de vidro que dava para a pista tétrica dos aviões. Lá, pôde ver um que, destoando de seus pares, não quis simplesmente levantar vôo com um rugido, mas resolveu fazê-lo batendo as asas de alumínio. E assim tomou seu lugar nos céus, enquanto a cidade deslizava para se abrir.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Belo e suave texto. Isso faz a diferença.
Folhas secas desta que vos fala.

17:10  
Anonymous Anônimo said...

Singelo

20:09  
Blogger Mr. Somebody said...

Suave e bem descrito. E adorei a comparação com Moby Dick.

Abs,
Moby Dick foi demais! Não sei se vou conseguir olhar um avião agora sem pensar nisso.

22:16  
Anonymous Anônimo said...

estonteante! como eu demorei tanto em vir aqui, meo deos? (:

08:57  
Anonymous Anônimo said...

idade...

14:53  

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