8.3.07

Sete de março


Desde 2006, sete de março é uma data de memória traumática para mim. Hoje, completa-se um ano da morte de Igor. Parece muito menos. Quando sua figura me vem à memória, uma sensação incômoda ainda me acomete, algo como a constatação de que o absurdo talvez seja mais normal do que o rotineiro, ou a convicção de que todo o sentido que vemos no mundo não passa de um produto da nossa vontade. Há ainda as coincidências, que causam uma sensação inversa. Sim, a realidade está submetida a uma organização superior, mas ela é sarcástica, cruel e patética. São deuses que não nos amam, são mônadas embriagadas. São o que forem, a conclusão é que nós não somos nada, senão reféns de um senso do trágico que descamba freqüentemente para o cômico.

Tinha 28 anos, Igor Zuvela, ator de muito talento e vontade de cultivá-lo. Amante da Moóca e da vida, deixou na Terra um filho de cinco anos que durante meses ainda sonhou com o pai. Um garoto que era o combustível da luta infatigável que Igor conduzia para vencer na carreira. Poderia ter falhado, como tantos jovens, sobretudo artistas. Mas sempre houve como pagar a pensão do filho. E, como seria belo e justo que acontecesse a todos os lutadores virtuosos, os vento estavam se tornando favoráveis. Os bons convites de trabalho começavam a vir com mais freqüência. O reconhecimento paulatinamente se expandia. Ontem, pouco antes do aniversário de sua morte, estreava em cinemas de São Paulo um longa-metragem em que ele tinha um bom papel.

No campo pessoal, a instabilidade de anos desaguava num relacionamento estável e amoroso como poucos. Acabava de mudar-se para uma casa pequena, mas deliciosa, dentro de uma vila, com jardim à entrada. Seu aneurisma o acometeu no dia 5 de março de 2006. Era o dia seguinte ao aniversário de seu menino, festejado na nova casa. Passamos, seus muitos amigos, a segunda-feira entre boletins médicos otimistas e pessimistas. Na terça-feira, o otimismo acabou.

Falei, acima, de coincidências. Ora, cada um constrói as suas, a partir de datas, circunstâncias, detalhes. A minha coincidência particular é que o sepultamento se deu no mesmo cemitério em que descansa um outro amigo, falecido em circunstâncias parecidas, seis anos antes. Ninguém entendeu quando comprei flores e parti, só, para o meio dos jazigos, poucas horas antes do enterro. Fui prestar minha homenagem a Ligivânio Luiz do Nascimento. Com muitos anos de atraso, porque até então não tivera a coragem de visitá-lo.

Vânio, como o chamávamos, passou mal durante uma aula, numa quarta-feira à noite. Sentiu-se enjoado, voltou para casa, precisava descansar. Não acordou. Só fui saber do acontecido na sexta-feira, porque uma escavadeira rompera a fiação de telefone do meu quarteirão. Eu fiquei incomunicável durante dois dias. Por isso, não fui ao enterro, o que me entristece ainda hoje.

A notícia me transtornou. Vânio era a pessoa que eu mais admirava no mundo, e ainda é. Eu acreditava, talvez com uma certa ingenuidade, que se algum dia o Brasil se erguesse, haveria nisso um dedo seu. Como Igor, era um batalhador. Filho de imigrantes nordestinos, chegara de Pernambuco com um ano de idade. Aos 25, já tinha aparência de 40. Reflexo das dificuldades. Como tantos estudantes pobres, prestou vestibular para Geografia porque era a nota de corte mais baixa da Fuvest. Cursou dois anos, depois trocou para Economia em busca de salários mais expressivos, que o ajudassem no sustento da casa. Assim como Igor sustentava o filho, Vânio sustentava os pais. E, como Igor, começava a colher os primeiros frutos da boa vontade da Fortuna. Um novo emprego, no Banco do Brasil, para substituir o trabalho de motorista do Zoológico. Um carro novo, velho, mas seu.

Essas duas perdas têm ainda em comum o fato de terem causado em mim toda sorte de sentimentos. Soube por um grande amigo, que tentou me contactar durante todo o tempo em que estive inalcançável, do que ocorrera a Vânio. Logo que desligamos, corri para o computador e redigi, aos prantos, de um fôlego, um extenso elogio fúnebre, que tentei fazer publicar no jornal da faculdade. Mas o jornal, mal administrado, jamais saiu. Daí por diante, decidi fazê-lo eu mesmo. Mas o texto jamais foi impresso. Não tive coragem de relê-lo, e ele ficou guardado debaixo dos meus olhos até que o computador em que estava armazenado se perdeu de vez. Não sei até hoje o que minha fúria foi capaz de produzir.

Já a morte de Igor, um sujeito que tinha o ímpeto de um cavalo normando, deixou em estado de catatonia dezenas de pessoas que nutriam por ele um carinho gratuito. O tempo parecia suspenso. As faces denunciavam uma agonia metafísica. Não havia espaço na sala do velório para todas as coroas de flores, que amanheceram enfileiradas pelo corredor. Para realizar um desejo expresso por nosso amigo, brindamos com um conhaque e derramamos metade da garrafa sobre a sepultura. Em seguida, aplaudimos o último espetáculo de que foi protagonista.

Jamais esquecerei aquela manhã. Foi a mais terrível e dolorosa que já tive. Era como se todas as minhas dores aflorassem, violentas, explosivas, ao mesmo tempo. Enquanto velava um amigo, investiguei onde estaria a sepultura do outro. Seis anos passados, já o tinham transferido para o ossário. Encontrei-o, depus as flores debaixo da fotografia de Vânio, formal em sua gravata, mas sorridente e tranqüilo como de hábito. Eu estava só. Permiti-me um choro agressivo. Meus pensamentos não tinham forma, não tinham sentido. O raciocínio estava sufocado, perdi a noção de tempo. Quando retornei, já era hora de partir o cortejo.

Não mantive contato com a família de Vânio. Mas o filho de Igor foi objeto de uma mobilização verdadeiramente admirável. Através de doações e uma apresentação extraordinária do espetáculo em que o pai atuava, conseguimos juntar dinheiro suficiente para abrir uma poupança em nome do menino. Poderá pagar, talvez, uma faculdade, um apartamento, o que for. Embora órfão, ele sem dúvida se orgulhará, quando crescer, da estima tão forte que seu pai mereceu, e de tanta gente.

Com este texto, tento corrigir um erro histórico de minha parte: o silêncio sobre Ligivânio, por quem nutri tanta admiração e em quem gostaria de poder me inspirar. Nesta homenagem aos amigos perdidos, uno pela memória dois bravos que se foram cedo demais, injustamente antes da hora. A morte os aproximou, não só nas minhas palavras, mas também fisicamente, com seus jazigos tão próximos. É uma pena que essas pessoas louváveis, em que vejo tantas semelhanças, jamais tenham se encontrado em vida.

11 Comments:

Blogger Lua em Libra said...

Sabe, Paulo, às vezes penso que os melhores se vão primeiro. Às vezes - e isso deve ser porque procuramos sempre uma explicação para o que não há - quero crer que as metas destes seres talvez mais iluminados do que os outros, já foram cumpridas. Às vezes também me defendo de encarar o fim puro e simples. Abraço solidário.

PS: fiquei curiosa com o comentário que não veio no Lua.

00:38  
Blogger Sorriso largo no rosto said...

Paulo, meu grande amigo. Lembro com pesar da noite em que passamos no velório de Igor. Lembro-me de voltar pra casa, dirigindo um velho escort azul, aos prantos, suspiros profundos, prometendo a mim mesma que nunca mais deixaria de dizer à meus amigos o quanto os amo, o quanto os considero, para que saibam a importância que dou à um abraço, um sorriso, ou um simples olá, antes que esses amigos partam sem o saber. Por isso, digo à você e a sua digníssima esposa, que são pessoas tão importantes em minha vida, como eu nunca tive igual. Em minha agenda, a distância de São Paulo a Paris é de apenas 8 cm, o que considero muito distante, em relação à nosso contato por telefone e internet. Saudade demasiada de Igor. Nunca esquecerei daquela manhã ensolarada, que seria alegre, não fosse a triste despedida, o brinde e a salva de palmas. Emocionante. Contagiante.
Parabéns pelo texto.

03:18  
Anonymous Anônimo said...

perder pessoas queridas é muito triste. belo texto.

06:02  
Blogger Jorge Ferreira said...

passando por aqui pra retribuir a visita e dizer que teu blog vai estar linkado no rasgamortalha. abraço

17:13  
Anonymous Anônimo said...

salve paulo, certas palavras ficam melhor no silêncio, não precisam ser ditas. falar sobre a morte diante de sua presença é algo como transpor uma rocha invisível. é preciso tempo para ver seus contornos e conseguir a escalada.
abraço

17:03  
Anonymous Anônimo said...

Pois é Osrevni, outro dia desentendíamo-nos sobre o que eu queria dizer com "humano". E aí está, em sentido pessoal e literário, um belo exemplo produzido por você e inalcançável para inumanos de todo tipo, de aliens a body snatchers do passado (Goebbels, por exemplo) e do presente (Pedro Malan, por exemplo).

Carlos Roberto

18:33  
Blogger i said...

Malan, do presente? Talvez seja melhor falar em Corrêa do Lago.

01:34  
Anonymous Anônimo said...

Paulo, antes de mais nada, obrigado pela visita ao meu blog. Agora deixe-me parabenizá-lo pelos textos muito bem escritos do seu. Adorei! Principalmente quando conta detalhes da história da França ou outras curiosidades e pela lucidez com que discorre sobre os mais diversos assuntos, como este sobre a morte de um grande jovem ator. Parabéns! Já virei seu fã e vou adicionar o seu blog no meu. Abs

16:13  
Blogger l said...

Tão difícil o equilíbrio da intimidade assim exposta de uma maneira tão tocante e sensível.
que texto.

19:41  
Anonymous Anônimo said...

simplismente saudade...
nosso igor deve estar orgulhoso de você...
lembrei demais daquele dia tantas vezes... da união de todos... da dor...
será que um dia a gente aceita????
Sabe que dia 5 (aniversário do joão Lucas) ele disse pra mãe: "Mãe, meu pai vem no meu aniversário!"
depois da festinha a mãe o colocou na cama às 11 da noite. Às 11:30h ele foi pro quarto da mãe dizendo que não conseguia dormir. Dois minutos depois passa uma matéria na TV. O filme do pai com cenas pai... Ele disse muito, mas muito feliz: " Não falei mamãe! Que meu pai vinha no meu aniversário?!!!"
Coisa mais linda!!!!!
Beijos "Paulo" obrigada...
cuida bem de você e da minha nega... em breve estarei aí...

22:40  
Anonymous Anônimo said...

Por quê Patrícia escreveu "Paulo", entre aspas? O sobrenome é descarada invenção a respeito da qual você, Osrevni, já fez graciosa confissão, mas agora o prenome sob suspeita!!!. Bem, naturalmente deve ser apenas alguma disfunção no teclado da Patrícia. Quanto à sua observação sobre a obsolescência de "Malan", tem toda razão. Mas por favor evite utilizar o outro nome e dê preferência ao clássico de Sax Rohmer: Dr. Fu Manchu.

Carlos Roberto

04:06  

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