2.6.06

Seção perguntas pertinentes: De que valem nossos planos?

Pra variar, fui tomado ontem à noite de uma daquelas insônias olímpicas, em que se vagueia por todo um apartamento pensando em todo tipo de bobagens. Mas até que o que martelou minha cabeça durante toda a madrugada não é tanta besteira assim.

Pensei o seguinte: Até segunda ordem, a vida é um acaso. Mesmo que você acredite que tem uma missão na Terra, ou uma "causa final", ou coisas assim: se você não for claramente capaz de apontar qual é essa sua missão/causa final, é como se não a tivesse, porque só vai saber qual era depois que morrer (se tanto). Portanto, vale que a vida é um livro em branco, absolutamente indeterminado, aberto a todas as possibilidades de escrita com a caneta que todo mundo tem nas mãos a nascer.

Pra quem gosta de ler filosofia, sim, isso tem um matiz fortemente existencialista: a existência precede a essência, blá blá blá. Mas, em linguagem de gente, o que fica é isso: Você existe e ponto final, independentemente daquilo em que acredite. Não somos capazes de determinar o que é a vida, onde ela começa, onde ela termina e assim por diante. Não sabemos se o pensamento determina o mundo ou se ele é apenas uma função química presente nos neurônios.

Vale considerar que a vida é, como dissemos, um acaso. Se cada um escreve no seu livro o que quer, por que seria mais correto escrever para si mesmo "O Grande Gatsby", vamos supor, do que "Xoank034 kojd0p", por exemplo? Porque um romance bem escrito é melhor do que uma série de letras e números à toa? Pode ser. Mas então, o que é melhor: escrever na própria vida "O Grande Gatsby" ou "Os Lusíadas"? Boa pergunta. Cabe a você decidir se tem espírito de contrabandista milionário presa do amor ou de viajante, explorador de novos mares.

Idéia interessante. Porque mesmo quando tomamos essas decisões, às vezes acontece de querermos escrever "O Grande Gatsby" e acabarmos escrevendo "O Processo". É capaz de querermos escrever "Os Lusíadas" e terminarmos com "Moby Dick" ou "Linha de Sombra". Isso porque há terceiros escrevendo nossas vidas junto conosco, às vezes a nosso favor, às vezes contra nós.

Mas o fato é que nós temos que agarrar a pena com força para garantirmos que as linhas principais serão fruto de nosso próprio punho. Talvez seja esse o desafio da vida: escapar às facticidades com que nos deparamos ao nascer. Rebelar-nos contra toda uma carga de determinações que parecem mais fortes do que nós.

Parecem, mas não é necessário que sejam. De fato, desde a alvorada da Humanidade, todos os indivíduos, grupos e sociedades tiveram que criar mecanismos aos quais eles mesmos se submeteriam, e aos quais submeteriam seus descendentes. Mais que isso, em todas as esferas humanas, seja a individual, a familiar, a social, tentou-se impor os mecanismos de um membro sobre os demais. Fonte de guerras, disputas, assassinatos.

Esses mecanismos são todos artificiais, ainda que funcionem perfeitamente. São formulações que cristalizam o Universo caótico à nossa volta (não é à toa que Chaos é a origem de todos os deuses) e nos ajudam a conduzir nossa existência, ao mesmo tempo enquanto indivíduos e enquanto grupos.

Nesse campo se inscrevem as leis, os deuses, as ambições, tudo. O homem, que a princípio se sentiria um ser flutuando no espaço, sem cordão umbilical que o una a nada, se inscreve em entidades que lhe dão sentido: a família, um time de futebol, um povo, uma empresa, o que for. Todas elas criam uma ordem que a princípio não existia, mas é fundamental para criar um campo no qual nosso ser, tanto individualmente quanto em grupo, possa se deslocar e ter uma noção suficiente de idéias como “de onde venho” e para onde vou”.

Mas, tornamos a dizer, o fato é que todos esses lastros, esses mecanismos, são criações artificiais cujo sentido é dado pela necessidade que têm de existir para aqueles a quem se dirigem. A razão de ser, portanto, desmorona no instante mesmo em que é questionada. Não porque percam validade, mas porque sua validade deixa de ter um lastro verdadeiramente imperativo. Ao questionar a profundidade essencial de cada uma de nossas crenças, nossas paixões, nossos vínculos e mesmo nossas ambições, corremos o sério risco de nos vermos novamente naquela situação de um ser flutuando num espaço caótico, sem ligação com coisa nenhuma.

Mas isso não é necessariamente um desastre. Alguém poderia ser levado ao suicídio quando se desse conta desse abandono ontológico, tudo bem. Mas o fato é que, com o devido distanciamento, podemos entender que isso nos abre uma infinidade de possibilidades quando somos verdadeiramente capazes de estabelecer os limites desses nossos mecanismos e instituições.

Vou ilustrar o pensamento com um exemplo: freqüentemente, consideramos determinadas atitudes das pessoas “pouco ponderadas”, ou melhor, “verdadeiras loucuras”. Em que nos baseamos para emitir esses juízos tão categóricos? Ora, naquilo que temos determinado em nossas cabeças que é uma atitude sensata ou, estendendo para toda a existência de um indivíduo, um projeto adequado de vida.

É com essa base que consideramos louco uma pessoa que se enfurna na selva para estudar os hábitos de um determinado grupo de primatas, ao passo que são sensatos todos aqueles que acordam de manhã para fazer parte da enorme procissão dos escritórios, em busca de um sonho nebuloso de riqueza, uma panacéia de conforto futuro. Esse segundo indivíduo se casará, terá filhos, fará tudo sensatamente; porém: quem garante que a riqueza virá? Vindo, quem garante que será satisfatória? Quem garante qualquer coisa em relação a esse modelo de vida? E quanto ao outro? Quem garante que ele não voltará à sua cidade apenas para perceber que preferia ficar no mato? Quem garante qualquer coisa? Quem garante que não cairá um meteoro na Terra e ambos morrerão junto com todos nós, e nada disse fez nenhuma diferença na conjunção infinita dos astros?

Nada, a não ser os nossos mecanismos quiméricos que têm a terrível capacidade de, sem serem chamados, determinarem todo o andamento de nossas vidas. A verdade é que não existem loucuras por si só. Quem for capaz de domar seus próprios preconceitos (no sentido que usamos aqui no texto, nada a ver com discriminação de cor e quetais) poderá expandir todo o seu horizonte. Poderá fazer, a rigor, qualquer coisa. Isso nada tem a ver com hedonismo ou desmoralização. Não é porque você não tem amarras formais que você se sentirá no direito de praticar ações criminosas ou que prejudiquem terceiros. Isso é outra seara, o campo da Ética. É com Kant e companhia, não comigo.

O que quero dizer aqui é que todas essas nossas ambições e projeções para o futuro não necessariamente estão corretas, pelo simples fato de fazerem sentido segundo configurações históricas e sociais dadas. Tudo pode ser mudado: o mundo, o país, a vida de uma pessoa. É perfeitamente possível abandonar as preocupações com carreira, filhos que virão, casamentos a se realizar, tudo isso, em função de uma viagem sem lenço nem documento ao redor do mundo. É perfeitamente possível que a carreira e o casamento naufraguem, os filhos não venham. E é perfeitamente possível que a viagem ao redor do mundo resulte em convites de emprego, livros publicados, sei lá, fama, dinheiro, o que for. Tudo é possível. Nada garante que as coisas trilharão qualquer caminho que já tenham trilhado. A capacidade que “as coisas” têm de mudar de rumo é simplesmente fantástica.

Não adianta querer se prender ao que quer que seja.

Quanto à minha insônia, ela foi longe. Só consegui pegar no sono quando já era quase hora de acordar. Passei o dia inteiro pescando no trabalho. Mas até que valeu a pena.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Mais do que um exercício teórico abstrato, o texto é uma declaração de como Osrevni vê e vive a vida. Uma vida cheia de projetos intensos, mas nunca definitivos.A experimentação parece ser o único fio que une projetos aparentemente díspares.
Se levará a algum lugar?
Não sabemos, mas sempre é gostoso conversar com pessoas que souberam viver a vida!

02:41  
Anonymous Anônimo said...

Eu topo conhecer o mundo e mandar os planejamentos futuros para uma vida bem organizada às favas!!! Posso fazer a mala?

03:27  

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