31.5.06

Seção nova: um dedo de prosa

A imprensa traz hoje uma pilha de coisas interessantíssimas a se comentar. Protestos estudantis no Chile; crise nas universidades do Rio de Janeiro; no mesmo Estado, uma governadora diabólica cortando em 50% a verba dos museus; circo armado, pronto para o julgamento de Mlle. Baronesa Vermelha (e bota vermelho nisso).

Mas hoje não vai ser possível comentar nada disso: embora a vontade seja muita, o tempo é escasso, diria até nulo. Então vou ter que recorrer ao meu velho arquivo de escritos e mandar um texto. Mas desta vez, não será em verso, que já estou cheio deles: vamos à prosa. Se não gostarem, posso voltar ao de sempre. (Mas não vou.)

A árvore do lago

O sítio do meu avô não existe mais. Ele, muito menos. Foi embora num dia, o sítio poucos depois. Ambos deixaram saudade; muita. Uma saudade que me apertou demais naqueles dias de infância, e depois não quis me largar. Mudou de cara, de sentido, tudo; mas sempre me acompanhou e hoje mesmo está aqui do meu lado, sentada com naturalidade, muitas vezes ditando as minhas confidências.

Meu avô e seu sítio foram algo como a tábua de salvação da minha infância. Ele era uma espécie de herói: o homem inabalável, simples, um sábio ao seu jeito. Inquestionável porque não havia o que questionar. Sua propriedade, que não ocupava mais que um cantinho de terra entre fazendas muito maiores, riquíssimas, era por outro lado meu refúgio, meu reino, meu feudo. Lá, eu não era um garoto tímido e fracote, como em todos os meus duros ambientes urbanos. Lá, eu era o rei; o senhor das matas. Aquele cantinho de terra era o feudo interminável onde eu tudo podia. Onde nada me era negado. Lá, eu mandava de verdade.

A morte de vovô foi tranqüila. Ele já estava para lá de idoso, cheio de complicações de saúde. Ia para o seu velho sítio e ficava horas sentado na varanda com o olhar fixo em coisa alguma, sempre coberto com uma manta xadrez fina e puída. Quando eu me aproximava, ou qualquer outra criança, ele sorria e dizia alguma coisa. Mas eu não entendia. Sua voz já desmanchava, ia se perdendo junto com sua energia. Meu avô se desfez aos poucos, como se estivesse sendo absorvido por aquele chão que ele amava. Ao nos ver, crianças, emocionava-se; eu podia perceber por trás dos seus olhos mareados o prazer que nós lhe proporcionávamos.

Ninguém sabia o que fazer com a propriedade depois do sepultamento. Meus pais e meus tios discutiram muito. Ficaram semanas sem trocar palavra. Abandonaram meus domínios, aos quais eu só tinha acesso se me levassem de automóvel. O lugar tinha se valorizado. A cidade cresceu justo naquela direção. Uma companhia, dessas especializadas em retalhar a terra, fez uma proposta. O sítio morreu e aquele espaço, delimitado por engenheiros e satélites, ganhou outro nome.

O que ficou para mim foi isso: aquelas tardes, carrapatos, os cipós que viravam chicote nas brincadeiras. Minha solidão, que eu saboreava pelas narinas e pelos poros. Quantas vezes me queimei de sol, braços abertos nos gramados do campo! Quantas vezes não levei bronca da minha mãe por aparecer todo vermelho ao final do sol... e depois ia para a cama ardido, incomodado, sem encontrar posição. Era a minha alegria. Um prazer talvez masoquista, mas era meu e eu o saboreava.

É claro, porém, que eu tinha meus segredos. O que ainda resiste na minha cabeça de mais vivo é a árvore do lago, que às vezes, na confusão do meu universo juvenil, se tornava o lago da árvore. Longas horas eu passei lá embaixo, lá no fundo, onde ninguém se dava ao trabalho de ir. Onde ninguém achava que valia a pena chegar. Só eu.

Descendo por uma alameda esburacada, eu diria esquecida, chegava-se a um velho portão de ferro fundido, todo trabalhado em volutas e setas. Enferrujado por inteiro, aquele portão nem cadeado tinha e rangia quando um esforço monumental conseguia abri-lo. Jamais perguntei ao meu avô sobre ele, mas se perguntasse, sei que ele responderia que estava ali desde o tempo do Onça. Era a expressão que ele usava. Eu mesmo gostava de imaginar que estaria naquele mesmo lugar há “zilhões” de anos. Hoje, lembrando, não duvido de que fosse um resquício da época do Império.

Do outro lado daquele portão de aparência algo mágica na fertilidade da minha imaginação, estava-se em outro mundo. Pensando bem, nem sei mais se aquele território ainda fazia parte das terras de meu avô. Chego até a duvidar de que tenha existido de fato: era algo tão discrepante do resto do sítio que já começo a desconfiar de que foi um sonho recorrente e muito real. De fato, não posso dizer. Sei apenas que aqui dentro ele existe ainda, e isso basta para que sua realidade me seja indubitável.

Seguindo o caminho do portão, chegava-se a um ponto onde bastava afastar os galhos para vislumbrar uma paisagem que na minha imaginação era um recorte da pré-história. Uma série de lagos dispostos irregularmente, gansos nadando em bandos, do lado de cá um vasto relvado, salpicado de árvores frondosas e, na outra margem daqueles lagos, uma floresta densa e escura, amenizada por manchas alegres de ipês roxos e amarelos. Os quero-queros passeavam pela grama, ciosos de seus ninhos; as rãs pulavam na água deixando marolas. Parecia que o gênero humano jamais chegaria sequer perto dali. Eu me sentia um grande explorador. Quando finalmente me dei conta de que num raio de duzentos metros tudo em volta eram fazendas, plantações e tratores, a descoberta me pareceu tão inverossímil que eu não quis acreditar. Não quis me privar do meu enclave, do meu triunfo.

Ali escorreram quentes tantas boas horas da minha vida. Foi naquele lugar que plantei e cultivei as sementes da minha esperança. Por isso aquele lugar é ainda hoje tão especial dentro de mim. Graças àquela relva onde eu corria e rolava sem motivação, sem nada, pude um dia ser um homem. A energia que alimenta minha vida adulta, sim, vem daquela época brilhante, das folhas que brigavam com o vento morno. A vida urbana me empurrava para baixo como um grande pé a me esmagar o cocoruto; mas aquelas poucas centenas de metros faziam de mim um grande rei, um ditador. De quê? Daquela natureza? Não. Dos fantasmas, demônios e seres imaginários que povoavam a minha cabeça e só podiam se afastar quando eu estivesse exatamente naquele ponto do nosso planeta.

A árvore que me serviu para batizar aquele lugar era ao mesmo tempo o torreão do meu castelo. Debaixo dela eu me sentava para descansar depois de um dia inteiro despachando com os meus súditos do outro mundo. Ficava à beira do lago mais elevado, de cuja queda saía a água que ia alimentar todos os demais. Era também, ao meu ver, a árvore mais alta da região. Mas tinha um detalhe: ela estava morta.

Não era mais que um grande tronco em pé. Bifurcado no alto, sua madeira clara e desfolhada fazia contraste com o céu azul, e a imagem daquela diferença era de uma eloqüência impossível de traduzir no papel. Um pilar firme de resistência, era como eu via aquela árvore morta, elevando seu desafio aos céus, como quem admitisse a derrota da vida, mas se recusasse ao desaparecimento da matéria. Aquele objeto que bem poderia ter sido convertido em lenha tinha o ar de quem gritasse: sou árvore! E ai de quem ousasse negar.

Por isso me apeguei àquele mártir vegetal. Ela não dava sombra. Dois metros adiante havia outra, viva, viçosa, até mais próxima da água. No gramado havia dúzias. Mas aquela, sem vida, sem verde, sem seiva, era minha amiga, minha camarada. Talvez porque quando estava longe eu me sentisse tão oco quanto ela. Talvez porque nossa relação fosse simbiótica: ela me preenchia, enquanto eu lhe retribuía com uma vida. Nela entalhei meu nome. Seu nome impus a todas as demais árvores e formas de vida do entorno. E hoje tenho plena consciência de como ela se increveu inteira dentro de mim; minha vida está orientada para imitar a atitude daquele ser: desafiar os céus. Os homens. Negar a morte, a fraqueza, o vazio. Viver de despeito. A despeito. De tudo. Do que for.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

, recordações infantis de amizade com árvore. interessante...
de a infância guardamos muitas lembranças por a vida afora...
|abraços meus|

19:20  
Anonymous Anônimo said...

Lindo, lindo, lindo!
Uma infância vivida ou inventada? Não importa.
Voto nos textos em prosa! Nada contra a poesia, mas...

Beijos!

03:37  

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