14.5.06

"Sou feia mas tô na moda"

Chego em casa de minha mãe para comemorar o famigerado e caríssimo Dia das Mães. Mal entro, ela vem com papéis na mão pedindo a assinatura de um abaixo-assinado. Leio e fico estarrecido: a motivação do documento é impedir a construção de um shopping-center com quinze torres, cinemas e tudo mais que tem direito no terreno em frente.

Explico. Minha mãe mora no Morumbi, zona sul de São Paulo. Mas não é o Morumbi do shopping homônimo, nem da Casa da Fazenda, nem do estádio, nada disso. Ela mora no, digamos, "Morumbi profundo". Um lugar acessível apenas aos que têm a paciência e a força de vontade de percorrer quilômetros e quilômetros de avenida Giovanni Groncchi (aquela que todo mundo chama de nhoque).

O condomínio - quem mora em São Paulo já deve ter adivinhado - chama-se Portal do Morumbi. É o mais antigo do bairro; reza a lenda que seu idealizador e construtor foi à falência após realizar seu projeto e se suicidou de desgosto. O lugar era tão distante que ninguém queria morar lá.

Se tivesse esperado um pouco antes de se matar, o sujeito provavelmente teria virado milionário. A região cresceu bagunçadamente (como todo o resto da cidade), com o agravante de que é tão longe do centro que ninguém parece ter muita disposição de reclamar. A tal da rua do nhoque continua com suas mesmas duas pistas mirradinhas, mas dia a dia surge um novo edifício de vinte, trinta (não estou exagerando) andares em volta. Um prédio que a Globo sempre usa em suas novelas é um dos mais velhos. Fica aqui na frente. Data da década de 80 e é famoso por estar colado na favela de Paraisópolis, um enclave gigantesco escondido atrás de ambos os lados da avenida. Digo escondido porque a rua passa no alto do morro; as construções da cidade formal a margeiam e atrás, só para quem tem interesse em ver um pouco da realidade do nosso país, a gigantesca favela que de tão grade tem três ou quatro nomes diferentes (desculpe se não dou o número exato. Isto aqui não é uma redação e eu não vou checar).

E o Morumbi não pára. As duas avenidas que chegam até mais ou menos perto do Portal (estou sendo condescendente) continuam do mesmo tamanho que antes: estreitas. São a já referida nhoque e a insuportável Francisco Morato. Vá lá: tem também a Eliseu de Almeida, um pouco mais distante. A não ser pela faixa de ônibus da Morato, não mudou grande coisa em termos de infra-estrutura. (Pintura de faixas, colocação de sinais e outras maquiagens não contam.)

(A faixa de ônibus merece um parêntese. Eu queria saber da ex-prefeita Marta Suplicy por que ela acaba na altura do Shopping Butantã. A maioria das pessoas simples mora mais afastado. Por que a faixa vai só até onde vivem os ricos, que andam de carro e não precisam de ônibus? Mistéeeerio... Agora o pessoal do Taboão tem menos ônibus, mas quando chega na Rebouças ele anda mais rápido. Vai ver foi por isso que ela perdeu a eleição nas classes mais baixas...)

Depois desse nariz-de-cera enorme, que vou chamar pelo eufemismo de "introdução", vamos ao que interessa. O Portal do Morumbi é provavelmente o último lugar habitável de São Paulo. Todo dia o jornal vem com anúncios de lançamentos imobiliários prometendo "viver em plena São Paulo como se fosse no campo". Ou "um oásis verde no meio da maior (sic) cidade da América Latina". Mas, analisando mais de perto, não dá para chamar um quarteirão grandinho com um bosque de meia dúzia de árvores mirradas de "área verde", que dirá "oásis".

O Portal, portanto, é a única área realmente verde da cidade. Pequena, mas fazer o quê? Pelo menos, podíamos desfrutar da vizinhança de uma escola que talvez não tenha se destacado em termos de qualidade e renome, mas certamente tem o melhor ambiente para a criação da molecada em toda a cidade. Plantada numa área gigantesca entre a avenida do nhoque e a rua São Pedro Fourrier, a Nossa Senhora do Morumbi (ou Mopyatã) só ocupa de fato cerca de um terço disso (eles não souberam informar a área exata. Acontece.) com as salas de aula, ginásio e o campo de futebol (enorme, excelente, já joguei lá). O resto é pura mata. É uma bênção para alguém condenado a viver em São Paulo ter como vista esse terreno.

Mas!

De repente descobre-se que esse mato todo não é protegido por nenhuma lei, só mesmo a boa vontade das agostinianas que cuidam do colégio. Ou cuidavam, porque a área foi vendida e é lá que vão construir as quinze torres, shopping center e mais o que a cafonalha do bairro quiser.

(cafonalha mesmo, desculpem, mas o pessoal do bairro é muito, muito cafona. Nouveau riche, como dizem.)

Vamos aos fatos: há coisa de doze anos, meus pais se separaram. Pouco depois, meu pai manifestou seu alívio de não precisar mais passar pela avenida nhoque para chegar ao trabalho. E ele tinha razão. É insuportável. Todas as vias que comunicam o bairro com São Paulo são insuportáveis: engarrafadas, esburacadas, estreitas, mal-iluminadas e perigosas. Em dois sentidos: tanto de acidentes - já perdi amigos nessas curvas descompensadas construídas por engenheiros provavelmente bêbados - e de assaltos: já perdi amigos baleados por bandidos que se aproveitam do fato de que a população é endinheirada, a polícia é distante e a prefeitura ausente.

Quando me mudei do Morumbi, minha qualidade de vida aumentou terrivelmente, embora tenha perdido o verde do Portal e do colégio. Isso porque eu moro na frente do Minhocão (papo para outro post). Só de não ter que circular por aquelas ruelas já sou um homem mais feliz.

Agora, digam-me: se numa época em que metade dos prédios altíssimos (e cafonas) não existiam já não se conseguia andar pelo Morumbi, como vai ser quando esse empreendimento estiver pronto?

Pergunta central: São Paulo não tem um plano diretor? Não existe uma separação de zonas? Não existem relatórios de impacto sócio-ambiental para a construção de novos empreendimentos? Não existem órgãos fiscalizadores?

Em Higienópolis, dia após dia um casarão quase centenário é derrubado para dar lugar a um desses espigões que escondem o céu. Surpresa: as casas nem sequer eram tombadas. Como é possível que esses monumentos não tenham nenhuma proteção? Começo a achar que o Cesar Maia, que tombou metade da zona sul do Rio de Janeiro, sob protesto das imobiliárias, não é lá tão maluco quanto parece.

Em Cerqueira César querem agora construir um hipermercado. Como?! Já ninguém consegue se deslocar por ali! Para chegar do meu trabalho, na Paulista, à minha faculdade, na Mooca, eu passo mais de cinco minutos só na alça de acesso à Radial pela 13 de março. São... cem? duzentos? metros. E nesse trechinho miúdo escorrem a cada mês duas horas da minha vida.

Pergunto de novo: esta cidade, cujos moradores se orgulham tanto do pogrécio, não tem um plano diretor? Será que as pessoas não se sentem desconfortáveis por não terem calçadas onde caminhar? Será que elas não vêem como uma maldição ter que viver encaixotadas em apartamentos, carros e shopping apinhados? Ou só ter como opção de área de lazer aquele fétido parque do Ibirapuera? Será possível?

Acho que estamos ficando loucos. De Gaulle tinha razão quando disse que o Brasil não é um país sério. Não é mesmo. Não pode ser sério um país cuja cidade mais rica permite sua autodestruição e ainda aplaude.

Assinei o abaixo-assinado no mesmo instante. E Deus permita que eu me mude logo de país!

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