15.8.06

Desperdício de genialidade

Meu último post opinativo teve um tom amargo demais. Não gosto disso; confesso que estava num dia particularmente estressante, e isso acabou transbordando para o texto. Prefiro manter um tom ponderado, não vejo grande resultado em manifestações de raiva. Continuo achando prejudicial a preguiça do brasileiro para a vida política, manifesta da alienação e na valorização excessiva do voto dentro desse processo. Mas hoje, para compensar o tom irritadiço daquele post, vou tentar ser mais positivo.

Então vou fazer grandes elogios ao Brasil; sim, vou falar de uma área em que o nosso país é imbatível. Uma área em que muitas terras se destacam, muitos povos realizaram feitos notáveis e, por que não dizer, divinos. Um campo da atuação humana que às vezes tem o poder de elevar a alma a instâncias sublimes. Uma verdadeira arte que nós não inventamos, mas em que nosso Espírito freqüentemente se eleva além de todos os nossos vizinhos.

Essa área, meus amigos, é a música. Tentei criar um suspense no parágrafo anterior para passar a impressão de que é o futebol, e bem poderia ser. Mas não: é a música. A opinião talvez seja polêmica, mas afirmo com todas as letras que o Brasil é o país mais musical que há no mundo, e pronto. Mais que os eua, mais que a Itália, mais que a Alemanha. Os dois últimos criaram a grande maioria das maiores obras eruditas da história, com monstros do tamanho de Beethoven, Mozart, Verdi e Vivaldi. Os americanos são pais dos gêneros que mais se difundiram no século XX: jazz, blues, rap e rock (embora nessa última seara as melhores produções venham do Reino Unido, pelo menos na minha opinião).

Mas o Brasil é algo difícil de explicar. Não podemos competir com os europeus em termos de música erudita, mas temos alguns nomes de peso, como o sagrado Villa-Lobos e os mais que respeitáveis Radamés Gnattali, Carlos Gomes, Koellreutter (alemão, mas brasileiro) e Camargo Guarnieri. Mesmo no período barroco, quando não éramos senão uma colônia aurífera de Portugal, nossos músicos não faziam feio. Segundo o maestro John Neschling, hoje na Osesp, nenhum outro país das Américas produziu músicos eruditos de primeiro nível ininterruptamente desde o século XVIII até hoje. Nem os EUA. Só o Brasil. Isso significa muito.

Agora, se formos falar de música popular, simplesmente não tem para ninguém. Damos banho em todo mundo, incluindo os americanos. A variedade e a profundidade da nossa produção musical não tem paralelo em nenhum canto. Se é verdade que o jazz corresponde ao choro, nosso gênero é mais antigo e mais vasto. Em muitos aspectos é mais complexo, embora músicos como Hermeto Pascoal freqüentemente sejam considerados jazzistas, e jamais chorões, o que não passa de um preconceito idiota.

Pois país nenhum no mundo pode contar com um Tom Jobim, certamente maior compositor não-erudito no século XX. Sem contar que ele compunha também música erudita, que se não fosse marginal em sua obra poderia ter produzido as melhores obras do gênero no período. Se bem que, se eu tivesse composto Desafinado e Luíza, tampouco me preocuparia em fazer música erudita.

Não só em compositores estamos bem servidos. Os arranjos de alguns discos de Elis Regina e Clara Nunes, para dar o exemplo de cantoras fenomenais, são de uma inteligência rara. Palmas para gente como Cesar Camargo Mariano e Wagner Tiso, que por sinal também são fabulosos como instrumentistas e compositores.

Um parágrafo de aplauso para mais alguns de nossos gênios: Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Cartola, Paulo da Portela, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Luiz Gonzaga, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Zequinha de Abreu, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Lamartine Babo, Lupicínio Rodrigues, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elizeth Cardoso, João Gilberto, João Bosco, Elton Medeiros, Aldir Blanc, Carlos Cachaça, Noel rosa, Aracy de Almeida, Ataulfo Alves, Sivuca, Dominguinhos, Egberto Gismonti, Paulinho da Viola, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Maria Bethânia, Gal Costa, João Nogueira, paulo César Pinheiro, Joaquim Callado, Raphael Rabello, Chico Science (sim, o cara era bom, vocês vão ver), Jorge Ben, Tim Maia, Renato Andrade...

Não quero que a lista fique infinita, então paro por aqui. Não é qualquer país que pode contar com um time desses, que atravessa gerações. Algumas gravações, e algumas músicas, de autores brasileiros estão entre os momentos mais sublimes da humanidade, como Ingênuo, de Pixinguinha, Elis e Tom cantando Águas de Março ou a escultura digna de Vaticano em que Milton Nascimento transformou Beatriz, um monumento de Edu Lobo e Chico Buarque (este último, um xodó das moças que é de fato um rei).

Onde entra o desperdício do título? Pois aqui entra a crítica que quero fazer. Fico triste demais quando vejo que um país capaz de produzir toda essa obra insuperável a trate como velharia e rebotalho, e prefira prestar atenção em seus produtos menos valorosos. Não estou falando de cançonetas sem grandes pretensões, como os sucessos da Jovem Guarda ou a berraria sertaneja que faz tanto sucesso. Esses não são o melhor exemplo de música brasileira, mas têm seu valor e sua razão de ser no universo a que pertencem.

Por outro lado, fui apresentado alguns dias atrás a um grande vilipêndio de nossa música genial. Uma prima adolescente se manifestou apaixonada por uma música de uma determinada cantora. A cantora, não vou dizer quem é. Mas a música era Beatriz.

Em primeiro lugar, tive que explicar que a música não é da tal da cantora. Que aquilo era apenas uma versão, e que versão deprimente. Vejam, depois que Milton Nascimento gravou Beatriz, regravá-la se tornou uma grande responsabilidade. Um cantor, para executar Beatriz ao vivo, precisa ter, em primeiro lugar, muita coragem, e depois muita certeza do que está fazendo. Já é uma música difícil, que vai do extremo grave (os pés no chão) ao extremo do agudo (sétimo céu). Cair no cafona ao cantar essa música é um risco constante. É necessário um controle absoluto da voz, uma noção perfeita de leveza, uma atenção constante para a letra, um comedimento calculado da orquestração.

Em resumo, é difícil. É muito difícil. Muito difícil mesmo. Mesmo! E a tal da cantora arriscou. O resultado foi uma gritaria sem sentido, um desrespeito ao trabalho de todas as atrizes, e mais uma prova de que ser Milton Nascimento não é fácil. Em trinta segundos de audição, quase atirei a caixa de som para longe. E a menina adorando. Claro, ela nunca tinha ouvido o Milton cantar, mas depois que eu corrigi essa falha, ela entendeu a diferença. Precisamos de mais Milton Nascimento neste país.

À cantora, uma dica: estude mais antes de querer arriscar uma música como Beatriz. O tempo, por exemplo, gasto com autopromoção por motivos completamente alheios ao seu trabalho musical, poderia ser melhor empregado em aprofundar-se no que a música brasileira tem de melhor. O país agradece, e meus ouvidos também.

6 Comments:

Blogger Larissa Marques - LM@rq said...

Foi bom ter me visitado, passei por aqui para ler-te também...
Beijos!

00:58  
Blogger anouska said...

ué, eu gostei bastante do seu último post...

agora..........quem é, quem é? é a ana carolina? falou em berraria, lembrei logo dela. aff!

03:18  
Blogger anouska said...

ah! da nova safra de cantoras eu gosto da mineira ceumar e da mônica salmaso. e da maria rita também, que tem seus méritos apesar das críticas. bj

03:20  
Blogger Bela said...

Eu ouvi issooooooo...ai, dá vontade de ir lá chacoalhar a criatura!
Não morro de amores pelo Milton, mas sei dar pela diferança entre ELE e ela, que aliás eu a-b-o-m-i-n-o.
beijo

06:05  
Anonymous Anônimo said...

Ana Carolina!Sim, pecou em cantar tal música assim como tantas outras que ela "tentou", mas...
Pois então,"o xodó das moças"!!foi ótimo hein!!e é verdade, que as moçoilas ficam doidas!Com a voz não tão afinada e bela qto a de Milton, Chico é show! E Milton..é algo assim..aiai!!Já disse Elis Regina: "Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton.." dúvidas?!
esse post sobre música merece um elogio, um não, vários, pois ainda valoriza a nossa MÚSICA!e é isso que é tom...nos clubes das esquinas do Brasil, dentro de tábuas de esmeraldas, o que precisa fazer hoje, é soltar o pavão!!e assim, se faz a música no Brasil!

16:48  
Anonymous Anônimo said...

Está falando da Ana Carolina, não há dúvidas!

17:33  

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