11.8.06

Ai, mas que preguiça!

Começo a achar que uma das melhores coisas do Brasil é o fato de que todo mundo é consciente de tudo. Bom, tudo talvez não, mas tem uma área em que não só cada indivíduo tem consciência plena como faz de tudo para que os incautos do entorno se conscientizem também. Obviamente, essa área é a política. E, como em todas as outras áreas da vida nacional, o debate gira em torno de “canetadas”: qual canetada é menos trabalhosa e poderia dar resultados melhores?

Pois agora que se descobriu que há corrupção no país, a imensa população consciente está também irritada. Como parou de brilhar a estrela que aparecia no horizonte, a saída fácil e bela pela esquerda (é o que se dizia, não sou eu que estou afirmando!) se estreitou consideravelmente. Resultado: o grande projeto de hoje, a descoberta fabulosa dos nossos analistas cotidianos, é a campanha do voto nulo.

Um exército de formidáveis militantes políticos calcula que se metade da população anular o voto, “vão ter que” (adoro esses sujeitos ocultos!) fazer outra eleição (e aí? Anula-se de novo?). Mas a idéia principal é outra: deixar claro o fim da paciência, a raiva, a ebulição do sangue ao pensar nos desmandos “dos políticos” (e viva os apolíticos?).

Certa rede de TV metida a moderninha, que jamais pode perder a onda (e a chance de faturar uns trocados a mais com as manias da galerinha) iniciou uma campanha publicitária incitando sentimentos de revolta silenciosa, isto é, revolta preguiçosa, de sofá (quem sai na rua não assiste aos comerciais). Em outras palavras, propondo ao povo que demonstra sua revolta contra o sistema político nacional da mesma maneira como vem demonstrando esse sentimento há tempos: sem fazer nada a não ser sair para votar e não votar em ninguém específico (porque é tudo igual).

Então vêm os militantes do lado oposto: isto é um absurdo, uma irresponsabilidade, que horror! O brasileiro deve votar com consciência! O voto é o exercício da cidadania! Da democracia! “Não reclame, vote!”, dizem. E completam: seu voto é sua arma. E já se fala, claro, como sempre, em processar a tal rede de televisão. Muito bem.

Mas o voto é realmente uma coisa fabulosa! Mobiliza um país inteiro que poderia estar pensando em coisas banais, como orçamentos públicos, bancadas de lobby, negociatas, mentiras descaradas de candidatos e por aí vai. Nada disso. Importante é saber se a pessoa deve votar ou não (cabe lembrar que o voto, neste país democrático pra chuchu, é obrigatório).

Pregar o voto nulo e criticar quem o prega são as faces de uma mesma moeda: a idéia preguiçosa, genuinamente brasileira, de que democracia e ação política são algo que se faz uma vez a cada dois anos (às vezes em dois turnos) e que consiste basicamente em sair de casa de manhã, pegar uma filinha, assinar um papel entregue por um sujeito que só está ali para não ser preso (o mesário) e digitar alguns números para ouvir o ti-lili-lili da maquininha.

“E vamos acabar com essa corja!“

Assim, da próxima vez que alguém perguntar “em quem você votou na última eleição para deputado estadual?” você poderá responder “Votei nulo contra essa corja!” em vez de dizer “Não sei”. E saia de peito estufado e queixo apontando para as torres da Paulista. Não é uma maravilha?

É claro que o ideal seria que as pessoas paradas na rua dêem respostas assim: “Votei em fulano, de partido tal, que fez tais e tais coisas na gestão. Nós, seus eleitores, enviamos uma carta exigindo tais e tais atitudes, e ele lutou pela implementação de nossas reivindicações. Votarei nele de novo.” Ou: “Votei em fulano de tal, de partido tal. Não nos atendeu, faltou na maioria das sessões, só propôs emendas idiotas. Nunca mais terá meu voto.” Ou, o que seria a coisa mais maravilhosa: “Votei em fulano, mas ele não foi eleito. No seu lugar, elegeram Beltrano, que fez tal e tal...” e por aí vai.


Mas é igualmente claro que isso seria exigir demais. Mesmo assim, do ponto de vista do voto, isso é participação política. Não tem nada ver com voto nulo, contra ou a favor. Aliás, até apóio que pessoas desinteressadas do processo político votem nulo, por sinal nem deveriam precisar votar (voto obrigatório é dose pra mamute...). Mas é necessário entender que política não se limita ao voto, muito pelo contrário. O voto é a ponta de um processo que envolve os cidadãos do começo ao fim de suas vidas, da hora em que acordam até se deitarem novamente, e em muitos sentidos até mesmo enquanto dormem.

Quando a sua rua é esburacada, não é “a bagunça desse governo”, é política. E política te inclui profundamente. Política é buscar conhecer os meandros, posicionar-se em relação a eles e opinar. Política é gestão de vida pública, ou melhor, política é aquilo que é público em sua gestão. A esta hora eu poderia lembrar da origem grega da palavra, mas isso é bobagem. O fato é que discutir a mágica do voto, nulo ou não, é perda de tempo e uma maneira de continuar no mundo das canetadas. É se abster de encarar a questão política de frente. É uma tentativa de acalmar a própria consciência ao mesmo tempo em que se entrega a gestão da nossa vida à mesma “corja” do mundo político, que só existe porque ocupa o gigantesco vácuo deixado pela nossa sociedade preguiçosa.

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

nossa... depois de um post desses, tbm preciso de um trago. obrigada por comentar no meu blog. um abraço.

20:12  
Blogger anouska said...

texto primoroso, paulo. eu sempre me pergunto de onde é que esses malucos tiram essas idéias de que se o percentual de votos nulos for tal e tal haverá nova eleição. a lei eleitoral não prevê isso. até onde sei, será eleito no primeiro turno aquele candidato que tiver 50% + 1 dos votos VÁLIDOS. não diz quantos votos válidos o fulano precisa ter. esse povo que prega a revolução do sofá me lembra aquele filme do bertolucci, "os sonhadores". se bem que talvez eu esteja fazendo uma análise errada. o contexto ali era outro. um bj

15:44  
Blogger i said...

Esse lugar é simplesmente maravilhoso! Tanta coisa boa neste mundo que a gente não conhece! E eu nesta cidade infecta...

17:14  
Anonymous Anônimo said...

Caríssimo Paulo,
sempre é muito bom encontrarmos dedos de olhos abertos que sabem os segredos escamoteados da Língua e decraram linguagens. Assim, Para
Ler sem Olhar, alías, paradoxal, demonstra personalidade e inteligência.
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Política, a máquina-mãe geradora dos fatos. Seu combustível é a ação. Talvez, a maior dificuldade da população brasileira (a polpulação pobre), grosso modo, seja vencer a camadas sempre enrijecidas do capitalismo. As camadas da dominação e da exploração. O rico domina e explora. Por isso, o rico sempre rico e o pobre sempre pobre. E como no capitalismo-político são os ricos que financiam as campanhas políticas, não há dúvida de quem será beneficiado, não é mesmo?!
Bem, embora saibamos dessa realidade, enquanto não chega a Guerra Civil, mantenhamo-nos com os coraçõs firmes e esperançosos. Artigos como os teus ajudam na reflexão, na proliferação de idéias consubstanciadas de realidade e clamor de justiça.
Votar? Ainda que o sistema político só me desagrade, a começar pela desigualdade da propaganda política na televisão, eu voto. Eu voto no candidato/candidata em que acredito. Agora, se não houver candidato que me agrade, não voto, Voto nulo. Isso é revolução? acho que não. Voto consciente? talvez.

Abraços, amigo.
Merivaldo

Conheça meu artigo "Carta ao Sr. Diretor".

www.poesiadealmatorta.zip.net

12:47  

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