11.6.07

A pequena porta


Eu dizia alguma coisa sobre a dificuldade de encontrar trabalho. Distraído, falando por falar, ao mesmo tempo em que acompanhava com o olhar preguiçoso o desenho das rachaduras no concreto da parede. Acreditava que Ricardo, meu amigo desenhista, também estivesse distraído. Até que, de um segundo para o outro, ele agarrou meu braço com uma força exagerada.

Interrompi-me a contragosto. Ricardo tinha os olhos arregalados, fixos num ponto além-trilhos. Segui a linha que partia de seu rosto, mas não consegui identificar o que tanto lhe chamava a atenção. Voltei-me novamente para ele, tentando demonstrar impaciência. Ele parecia crer que a coisa era evidente. Não me explicou nada, apenas fez um gesto breve e brusco com o pescoço. Só então me dei conta de que causara tanto transtorno em meu colega.

Por mais prosaica que pareça, era uma porta aberta na grade que separava os trilhos de nossa linha da que vinha em direção oposta. Uma porta aberta. Não era a porta de uma mansão ou de um jardim; era simplesmente o gradil entre dos sentidos do metrô, aberta para permitir a passagem dos funcionários da limpeza e lhes facilitar um pouco o pesado serviço - tão pesado que eles não conseguiam dar conta, a julgar pelo estado da estação.

Era uma portinhola humilde, medíocre, enferrujada, que não se prestava nem a esconder o que havia do outro lado. Não tinha naquela porta nada que pudesse chamar a atenção de alguém. Mesmo assim, estávamos ambos olhando para ela.

-Não consigo ver uma porta aberta, ele confessou, que fico com vontade de atravessá-la. Não resisto.

Como fiquei sem resposta, e ainda o encarava com uma expressão de incredulidade, ele se pôs a dar explicações.

-É uma mania minha, sou assim desde a infância. Vejo uma porta e quero atravessar, nem que seja para voltar logo em seguida. É como um tique nervoso!

Eu soltei uma risada. Ele me acompanhou de leve, depois deu de ombros e voltou a encarar seu objeto bem particular de desejo. Achando que o caso estava encerrado, comentei:

-Essa porta não tem nada de especial. A bem da verdade, não é propriamente uma porta. É só uma passagem no meio da grade. Não vejo o que pode te interessar nela.

Um pouco encabulado, ele confessou não conhecer a origem dessa sua fixação pelas portas abertas. Um impulso irracional, definiu. Só pude concordar. E acrescentei, enfático, que era engraçado. Mas ele não concordava, e deixou claro seu ponto de vista com um olhar. Calei-me.

-É mais forte do que eu, ele disse.
-Imagino, respondi. Mas sua expressão apenas se tornou mais determinada. Repetiu:
-É mais forte do que eu. Quanto falta para chegar o trem?

Por reflexo, estiquei o pescoço. É claro, não vi nada no túnel que pudesse dar uma indicação. Mas ele interpretou meu gesto irrefletido como uma adesão à sua causa.

-Você está brincando, claro.
-Quem dera. - Já se desembaraçava da mochila. - Hoje é domingo, vem menos metrô. Ainda vai demorar a chegar o próximo.
-Mas não tem nada de interessante! O outro lado é idêntico a este, não tem nada de mais...
Ele deu de ombros, mais uma vez.
-É como eu disse. É mais forte do que eu.

Então, ele tomou ar e me deu uma explicação, em tom de confidência. Disse que se via no direito de desejar aquela pequena transgressão. Intimou-me a lembrar de alguma vez em que eu o tivesse visto fazendo algo proibido ou condenável. Queixou-se de não conseguir jamais tomar atitudes drásticas, polêmicas, malcriadas. Confessou que, às vezes, se achava o mais chato e desinteressante dos seres humanos. Atentei para o fato de que atravessar aquela passagem não seria, de forma nenhuma, uma transgressão comparável a saltar o muro de uma mansão ou desviar os recursos de uma instituição de caridade. No máximo, arrematei, seria uma molecagem.

Mas era precisamente o que ele queria. Uma molecagem. A idéia de uma travessura inconseqüente fez seus olhos brilharem.
-Acho que eu não tive infância. Só pode ser. Nunca fiz molecagem, nem mesmo quando era moleque.
E concluiu:
-De hoje, não passa.

Lembrei a ele que o metrô funciona pela energia elétrica que circula nos trilhos. Descer é perigoso. Cabos de alta tensão, adverti. Carreguei o tom da voz com uma dramaticidade talvez ridícula.

-Você correria risco de vida. - Mas Ricardo não se comoveu.
-Eu entendo o que você quer dizer. Você está pensando que é uma idiotice minha, e tem razão. Mas poderia ser pior, pense bem. Imagine, eu poderia me arriscar dirigindo como um louco ou fazendo roleta-russa na própria cabeça. Mas, para não ser eletrocutado, basta não pisar nos trilhos. É simples assim. É o meu jeito burguês de brincar com o perigo, arrumar alguma adrenalina. Relaxa.

Não relaxei, mas tampouco o impedi de aproximar-se da beirada da plataforma. Sua respiração era forte, cada inspiração se fazia acompanhar de um assovio. Eis que me descubro esperando o metrô na companhia de um maluco. Comecei a me questionar. Não seria o caso de deixar de lado meus receios e apenas esperar que ele realizasse seu impulso transgressor? Só para acabar com tudo aquilo, de uma vez por todas. Se ele não pisasse onde não devia, se não chegasse um trem, se não aparecesse um policial, qual seria o problema? Ele desceria, espantaria os camundongos cinzentos, atravessaria a tal da porta aberta e atingiria a outra linha. Nada vendo de interessante, pensei, acabaria voltando no momento seguinte. A princípio, incólume. Com isso, ele dormiria mais satisfeito, teria o que contar às moças nos bares, daria algumas risadas, aliviaria a tensão, e pronto. Sem precisar beber, ou pagar um psiquiatra, ou assaltar um banco. Compreendi, finalmente, seu argumento. Decidi não intervir.

Mas percebi que o destino, ou sei lá o quê, intervinha em meu lugar. Tive a sensação, ao longe, da vibração que anunciava a marcha pesada da composição. Com o canto do olho, divisei o reflexo dos faróis que se aproximavam. O alívio que eu deveria sentir, porém, transmutara-se em decepção.

Quis compartilhar com ele meu sentimento; foi sorte. Ao voltar o olhar, dei com suas costas viradas, já esticando o pé para alcançar o cascalho que cercava os dormentes. Com o pouco sangue-frio que me restava, puxei-o de volta. Mas a tarefa estava além de minha capacidade. Ele se debatia, tentando libertar-se da ameaça que eu representava para seus desígnios. Não percebera que uma ameaça bem mais concreta estava a caminho. Reclamou, ofendeu-me aos berros. Seu rosto ficou vermelho, bem diante dos meus olhos, e sua voz nervosa abafava minhas tentativas de alertá-lo para a aproximação do perigo.

Num último esforço, dei um impulso para puxá-lo, acompanhado de um grito. Ao mesmo tempo, o condutor do metrô notou a presença de meu insensato amigo e atacou sua buzina roufenha, que reverberou com violência. Assustado, Ricardo se entregou finalmente ao meu puxão e subiu de volta para a plataforma.

Caímos estatelados no chão, ofegantes. Meu cotovelo se chocou contra o concreto. Doeu, mais tarde incharia. Parada a composição, bem à nossa frente desceu um homem, alto e barrigudo, que mal tomou conhecimento de nossa presença e por pouco não pisou no joelho de Ricardo. Levantamo-nos sem dizer palavra, sob efeito do susto, impressionados com a proximidade ainda sensível de um acidente mortal. À nossa frente, a porta aberta do metrô, como se esperasse apenas por nós, o interior todo iluminado, com algumas pessoas mascando chicletes e lendo revistas.

Lado a lado, encaramos aquele ambiente silencioso e estéril; asséptico, mas sujo. Ninguém, de dentro, levantou os olhos em retribuição a nosso olhar afogueado. Ricardo estalou os dedos e esticou a mão para a mochila, largada ao lado. Engoli em seco. Tive um ligeiro sobressalto quando soou o aviso sonoro. Estranhamente, eu não o esperava, esquecera sua existência. As portas automáticas fecharam-se sumariamente. Em sua custosa aceleração, partiu o trem com seus usuários, chicletes e revistas. Ficamos nós, a espreitar a porta aberta.

7 Comments:

Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

Nossa, suspense sensacional.... Ufa... mas a história da porta aberta terá parte 2?

00:31  
Anonymous Anônimo said...

o mistério das portas abertas... sempre buscar além...

01:28  
Anonymous Anônimo said...

Meu querido amigo!
Isso é muito ALBEE, quase uma "Zoo Story"! Transforme isso em texto teatral!! Se não o fizer, eu o farei em algum momento!! Abraços saudosos a todos vocês!

15:00  
Anonymous Anônimo said...

Olá!
Adorei seu blog!!!!!!!!!!
Voltarei!
Beijos

23:52  
Anonymous Anônimo said...

Amigo Paulo!

Excelente conto! Conduzir um cenário desses faz com que sintamos uma lenta agonia que nos vai tomando à medida que lemos. Existe todo um envolvimento que vai aumentando à medida em que nos aproximamos do final.

Grande abraço, hILTON

05:49  
Blogger Juℓi Ribeiro said...

Adorei seus textos
e as suas fotos!

Você escreve
com sensibilidade maravilhosa
e um talento marcante.
As fotos me fizeram pensar,
você percebe o que ninguém vê...
E repassa suas descobertas
de uma maneira simples, objetiva
sem perder a sensibilidade.
Como sou observadora
reparei que OSREVINI
é INVERSO.
Muito bem pensado...
Parece até nome árabe(Risos...)
Venha me fazer uma visita.
Será um prazer!
Um abraço.

12:43  
Blogger alma said...

Sensacional relato de um T.O.C sub-clínico! Eu teria feito o mesmo que Ricardo.
Gostei muito do seu blog. Voltarei para lê-lo com mais calma.
Abraço

20:15  

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