23.8.07

Reprovado em bom humor


Perdi a conta de quantas vezes já me repetiram que, na vida, nada é mais importante do que o senso de humor. É necessário mantê-lo, sentenciam, mesmo nos momentos mais adversos. Sucumbir à irritação, jamais! Essa gente positiva quer me convencer de que é preciso encarar todas as faces da vida, mesmo as mais sombrias, sempre com o mesmo sorriso. Pode ser, pode ser. Falar é fácil.

Tendo a crer que tudo isso é bobagem, coisa de quem tem espírito de Poliana; mas se me disserem que é uma boa maneira de encarar a vida, anuirei. No meu entender, todo indivíduo tem direito a seu momento de nuvens negras. Agora, não posso negar que, quanto mais rapidamente ele conseguir contra-atacar as verdades da existência com uma bela tirada sarcástica, tanto melhor.

Donde posso concluir que, mesmo se meu humor não anda lá nos seus píncaros (T.M. Vicente Celestino), este texto deve ter um tom que puxe para a alegria. Vá lá, a faceirice. Falando assim, não soa difícil; saiba, então, que todos os meus instintos querem me coagir aos impropérios. Digitar amenidades é um desafio, pura e simplesmente.

Por outro lado, é um exercício de estilo como nenhum outro. Imagine-se tendo que escrever algo feliz enquanto, para lá de sua janela, cai a mesma chuva fina que já vinha caindo há três dias, e que continuará a cair pelo próximo tríduo, quase com certeza? Está bem, continua não soando difícil. Vou ter de aumentar a carga dramática.

Continue imaginando: é verão. Um verão com que você sonhava desde o ano anterior, que seria o tempo em que os casacos grossos seriam relegados ao armário, os cachecóis ficariam apenas pendurados, e você se esticaria nos gramados e jardins para tomar um sol que, diziam, poderia chegar aos quarenta graus. Imagine que esse sonho se revelou um atestado berrante de otário. A temperatura que se prometia na casa dos quarenta, com velhinhos morrendo de sede por todo o continente, raramente atinge os vinte graus. O sol que você sonhava em tomar resolveu não cruzar o Trópico de Câncer. Os tais jardins e parques, em que você ousou pensar que repousaria, estão cobertos por uma camada de orvalho.

Enquanto isso, os dias vão passando, o bom tempo não vem, o outono se aproxima. Algumas árvores, apressadinhas, tomaram a dianteira do calendário e já começam a tingir suas folhas. Não adianta lhes dizer que ainda temos um mês de verão (opa, esqueci as aspas: de "verão"). Assim como as rosas, as árvores não falam. Nem escutam. Prossegue a marcha das folhas, amarelando, enrubescendo, esticando os músculos para o dia em que se precipitarão sobre o infinito das calçadas.

Mais um inverno virá, e mal pudemos provar a doçura do verão. Os sol, que há pouco mais de um mês não se punha antes das dez e meia, daqui a pouco já nos deixará no escuro antes das cinco. Luvas, gorros e botas voltarão a compor o figurino. O governo francês, sempre com seu olho enorme, já espera recordes de depressão para o inverno; é da memória do calor de julho e agosto que vive a população quando as temperaturas são negativas. Em 2007, porém, que raio de memória teremos do verão?

Respondo eu mesmo: guarda-chuvas dobrados pelas ventanias. Resfriados e dores de garganta. Jogos de gamão, quando o plano era um passeio pelo campo.

Ah, sim, já ia me esquecendo! Eu tinha prometido um texto bem-humorado. Vê como não é fácil? Fazer rir à beira de uma piscina, com caipirinha e churrasco? Ora, isso, todo mundo consegue. Debaixo de nuvens lúgubres, pesadas e próximas, só riem os loucos e os bêbados. Aliás, isso é o que não falta por aqui.

4 Comments:

Blogger Lord Broken Pottery said...

Excelente texto, muito bem escrito. Também me chateia essas afirmações meio vindas do nada. Não é fácil manter sempre o bom humor. Parece coisa de auto-ajuda. Os livros do gênero, por sinal, esquecem de um detalhe para mim fundamental: as pessoas são diferentes. Vamos tentar ficar felizes quando der, já é muito.
Grande abraço

16:38  
Blogger Silvia Regina Angerami Rodrigues said...

Diego!! que legal saber seu nome. Preciso confessar uma coisa: eu conheci Paris em pleno inverno, no reveillon, e então, me tornei uma pessoa que adora dias nublados. Fico feliz mesmo. Já o calor, com aquele monte de gente suando, já não me traz assim tanta felicidade. Será que sou do grupinho dos "loucos"?? peut-être...

04:42  
Blogger Cris Teles said...

O bom humor é uma qualidade 100% espiritual. Ele vem da alma e se manifesta pela criatividade, flexibilidade e adaptabilidade.
Parabéns pelo texto!!
Bjos!!!

15:45  
Anonymous Anônimo said...

Obrigado pela visita, Monsieur.
Amitiés,
Beto.

22:18  

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