17.12.06

Seção versos subcutâneos (passando por cima da seção obituário)

Como gastei uma seção de obituário com o pulha do Pinochet e estou me esforçando por não falar demais em morte, perdi a oportunidade de deixar uma homenagem ao grande Sivuca, que sucumbiu nesta semana a um câncer que o perseguia há tempos. Só que, ao contrário do general chileno, a alma do nosso músico, capaz de fazer tanta gente sair do chão, já deve ter voado diretamente para o céu dos artistas, que deve ser o melhor de todo (certamente não seria o céu dos filósofos). Sivuca agora é eterno: nós que por enquanto ainda estamos aqui poderemos para sempre aproveitar seu legado sublime.
Como não quero transformar isso num texto, mando aí embaixo um poema antigo, que fala de música. É uma homenagem ao violão, mas acho que também vale para o nosso Sivuca, embora ele fosse acordeonista: O violão também é um elemento imortal da nossa música.

Ao pinho

da madeira clara do aço teso do bojo vazio
o soar o ranger o grunhir o berrar
dos dedos com calos das unhas compridas da pele ferida
o doce o belo o triste o duro
nos trastes gelados no braço abaulado na boca expressiva
a vida a seiva a alma a morte
nas curvas corretas nas linhas exatas na ponte afinada
o fundo o negro o falso o calmo
pela boca fremente por poros abertos por ossos doídos
o novo o grande o grave o eterno
por pelos molhados por olhos cerrados por veias abertas
a cara a pena a pauta a pluma

14.12.06

Seção obituário: Augusto Pinochet


Estou há dias tentando arrumar um tempo para dar um pitaco sobre a morte do general Pinochet (se você não sabe quem foi o Pinochet, sorte sua). Aliás, acho que tenho uma certa fixação pelo tema: sempre que morre alguém, lá vai o Paulo escrever sua seção obituário. Não me digam, por favor, que isso revela um aspecto macabro da minha personalidade: na verdade, são apenas as notícias que aparecem e suscitam algumas reflexões...

Mas como não ando escrevendo muito, o tempo passa, passa, e o assunto morre. Todo mundo já disse tudo que havia para ser dito sobre o homem. Discutiram sua personalidade, seus méritos ou deméritos no desempenho da economia chilena, a crueldade de seu regime, a corrupção, a existência lamentável de seguidores seus até hoje no Chile (e mesmo fora dele), a declaração de tristeza da Dama de Ferro, Margaret Thatcher (que poderia muito bem ter ficado quieta). Lembraram que ele chegou ao poder por pura "trairagem", coisa que em qualquer quadrilha de traficantes é imperdoável.

Então não resta muito a dizer sobre a figura nefasta de que a Terra está livre (e daí, tantas outras continuam!). Augusto Pinochet morreu no Dia dos Direitos Humanos (esses que são "di bandidu", como dizem), ele que matou mais de três mil pessoas por mera diversão. Se, por um lado, até chegou a ser preso rapidamente algumas vezes (em domicílio), nunca foi condenado por um tribunal. Ele não viu o sol nascer quadrado. Não enfrentou o paredão (seria uma doce ironia). Seus crimes seguirão impunes, incentivando outros ditadores deste mundo (principalmente o Terceiro) a manter suas carnificinas.

Ele morreu tranqüilamente, na cama de um excelente hospital, com 91 anos, cercado de filhos e netos, contas bancárias invejáveis na Suíça, condecorações no peito. Conclusão: sim, o mundo é injusto e o mal vence. Não sempre, mas freqüentemente, talvez na maioria dos casos. Dá até vontade de acreditar na existência de um inferno, para esperar que pelo menos sua alma esteja sendo torturada. Mas de que adianta? Pensar que um facínora desprovido de qualquer traço de hombridade ou honradez possa sofrer os mesmos castigos de um sujeito que cometeu alguns adultérios é decepcionante.

Pinochet me faz pensar em Fidel. Muita gente quer fazer do ditador cubano o maior monstro do século XX, mas esse é o tipo de pensamento em que claramente as convicções políticas obliteram a razão. Como comparar um homem que libertou um país da ditadura de um marionete a um outro que encarnou esse papel com gosto e crueldade? De um lado, um indivíduo que, após uma luta sangrenta nas montanhas, transformou uma ilha caribenha, em que os mafiosos passavam férias, no centro da política internacional. Do outro, um caudilho latino-americano dos mais caricaturais, aproveitador barato e corrupto. Na ilha de Fidel, o analfabetismo foi erradicado, os médicos são talvez os melhores do mundo e, em algum momento dos anos 70, a economia chegou a ir bem, apesar do bloqueio dos EUA. Já na tripa de Pinochet, a intervenção de um economista chamado Hernán Büchi salvou o país de um desastre econômico inaudito, apesar de toda a ajuda de Washington (mas em alguns quesitos, como distribuição de renda, os números são vergonhosos).

O Fidel pós Muro de Berlim é um ditador algo ridículo, verborrágico, caricato. Mas nada parecido com Pinochet, que sempre foi o arquétipo do milico latino-americano de cara fechada, óculos escuros, ar de "quem manda aqui sou eu" e cabeça de penico. Sua tirania no Chile faz a ditadura brasileira parecer democracia, até porque aqui pelo menos havia a vergonha na cara de fingir-se que havia alguma. Fidel teve muita grandeza em sua vida e, apesar do que dizem os reacionários enrustidos, não chega a ser um monstro (a despeito de seus fuzilamentos e achaques à imprensa, coisa que não pode ser admitida jamais). Pinochet não teve grandeza de nenhuma espécie.

Augusto Pinochet, "general". Simplesmente a figura maior da maldição colonial latino-americana. Ele espelha tudo que temos de mais ridículo e abominável. Mas não é o único. Discursos como o seu podem ser ouvidos no elevador de qualquer prédio comercial de Brasília, Rio, São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Buenos Aires, Bogotá, Santiago etc., até hoje. Eis a nossa maldição. A tranqüilidade com que o facínora encontrou a morte indica que um tipo como ele é normal para nós, os latino-americanos. Pior, torna a figura do señor Castro profundamente admirável.

2.12.06

Devo, não nego. Pago quando puder.


Sei que estou em dívida com o meu blog. Novembro foi o mês em que menos postei (fora setembro, quando eu nem tinha acesso a computadores...), e me envergonho disso. Mesmo o pouco que postei foram textos escritos há tempos. Quando criei este espaço, a idéia era publicar alguma coisa todo dia, e durante algum tempo cumpri com a minha determinação. Mas agora a coisa meio que degringolou.

Por quê? Não é certamente por falta de acesso a computador, agora que eu tenho um, de teclado normal e tudo. Nem, garanto, por falta de assunto. Muito pelo contrário, os temas se amontoam e eu não escrevo sobre eles. Já tive ímpeto de falar sobre as eleições brasileiras, que acompanhei à distância, mas acompanhei, a ponto de ter uma opinião (aleluia!). Quis discorrer sobre a alimentação na França, sobre os desperdícios que tão bem caracterizam o nosso Brasil, sobre a vida com quatro estações muito bem determinadas, sobre uma teoria meio idiota que desenvolvi para explicar a existência de uma bebida como o vinho, e assim por diante.

Mas não escrevi. Tornei-me talvez um preguiçoso? Não, isso é o que eu era antes. Não sou mais, muito pelo contrário. A instituição tão brasileira da faxineira (aquela que vem uma vez por semana em casa (ou até mais) e em troca de uns duzentos reais (até menos) deixa tudo impecável, arruma os armários e ainda faz comida congelada para os sete dias que correrão), isso não existe neste continente de bem-estar social. Os empregos (tanto públicos quanto privados) em que você fica horas sentado diante de um computador esperando alguma coisa para fazer mais ou menos bem feito, isso tampouco é concebível nesta terra em que um funcionário é caro e a exigência enorme. Mas, o mais importante de tudo, nosso "prato típico", ou melhor, nosso tipo típico (para tentar ser engraçadinho) é algo que não dá nem para explicar para meus colegas daqui.

É claro que estou falando do "professor picareta". Conto nos dedos a quantidade de professores que tive no ensino superior brasileiro (e olha que freqüentei por períodos mais longos ou mais curtos três diferentes faculdades paulistanas, todas com um bom nome a defender) capazes de escapar a essa classificação. O que é lamentável, mas compreensível, pelo fato de que os alunos não querem nada de diferente, uma vez que só estão nos cursos atrás de seu diploma. Ao mesmo tempo, as próprias direções das faculdades não têm incentivos para mudar o quadro, já que a concorrência tampouco é brilhante; por sinal, as notas dos estudantes tendem a ser mais altas sob professores menos sérios. É assim que se cria aquela famosa descrição dos professores que fingem dar aula para alunos que fingem estudar. Isso não é lenda.

Apesar de todos os defeitos da educação francesa, assunto para (hélas!) outro texto (se eu conseguir voltar ao meu ritmo normal), uma coisa deve ser sustentada: todos os professores, os meus pelo menos, levam a sério seu trabalho. Eles são, de fato, professores. Preparam suas aulas, conhecem seus assuntos, respondem às questões, planejam o semestre. Os alunos, que na maioria dos cursos nem sequer passaram por um processo de seleção, também têm uma atitude séria, pelo menos em sua maioria. Apesar de sempre haver os relapsos, a maioria é de gente que espera tirar alguma coisa dali, e não estou falando de um diploma ou uma lata de cerveja, estou falando de conhecimento.

Lembro-me das minhas aulas no Brasil, com professores discorrendo sobre a morte da bezerra, provas de múltipla escolha, alunos querendo de alguma maneira saber antecipadamente o que vai cair nas provas, choros para conseguir meios-pontos salvadores. E, o que me parece mais grave, docentes contratados em tempo integral por faculdades públicas (ou seja, sustentadas por impostos) mas que jamais aparecem para dar aula, passam o dia todo dedicando-se a suas consultorias e coisas do gênero.

Por isso, pela primeira vez na vida sinto-me uma pessoa ocupada. Preciso estudar verdadeiramente para não passar vergonha nas provas, ao passo que no Brasil bastava passar os olhos pelos manuais, os malditos manuais, que a aprovação era certa. Preciso anotar cuidadosamente o que os professores dizem, ler todos os livros indicados (centenas), entregar trabalhos em profusão e assim por diante. Dá trabalho, mas você aprende. Além disso, preciso manter a casa limpa e com uma razoável provisão de comida, ainda que seja enlatada, preciso correr atrás de algum trabalho para não me ver daqui a alguns meses com os panos dos bolsos virados para fora. Preciso fazer toda uma série de coisas.

Ocupado, eu! Quem diria... Nem no trabalho eu era assim, salvo em alguns momentos de pescoção, que podiam ser diários, semanais, mensais... Mas que nunca duravam muito. É por isso que estou em dívida com o blog. Mas não quero que isto pareça uma queixa. Um milagre também se opera: apesar de eu estar muito mais ocupado com as coisas centrais da minha vida, a ponto de não dar conta de tudo (freqüentemente falta comida e às vezes eu só consigo terminar um trabalho na hora mesmo de entregar), pouco a pouco estou me adaptando a esta nova realidade e começo a conseguir fazer todas as bobagens periféricas que marcavam minha vida no Brasil, entre elas escrever este blog (não que eu o considere uma bobagem... mas dá um certo efeito dramático). Sinto que isso é um crescimento.

Talvez eu consiga abordar os assuntos que ficaram para trás em novembro. Quem sabe? Mas uma conclusão eu já tirei: comparando o dia a dia dos sistemas educativos do Brasil e da França, começo a entender por que, com toda sua caducidade, seu aperto, suas cretinices, seus inúmeros defeitos, a velha Europa continua sendo rica, e o Brasil, com toda sua pujança, todo seu território, todo o seu vigor e a criatividade do seu povo, continua sendo miserável. E fico triste, nem consigo dizer quão triste eu fico. Sei que nosso país poderia ser a menina dos olhos deste planeta. Mas não é.

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