31.8.06

........Crédito da foto: Robert DoisneauPalavra-beijo

Palavra-beijo, ato:
...É beijo.
......É sombra, é bomba!
............É pomba
............fluente, tal
............qual corrente
............de fonte mineral:
............cristal quente.

Beijo evanescente:
............clímax.
...Mil megatons de saliva
...Quatrocentos cavalos
............arredios.
......Fumaça de línguas tesas
............presas
............coesas.

Retrato, signo:
......contato
.........braços, abraços
...embate de sonhos lassos.
............Poema, cinema
............amena mistura
............doença sublime
............subsume sinais.

Impulso-nome, desejo:
........................fome.
............Descontrole em rotação –
............Morde, é bicho
............Lambe, é louco
............Ofega, é vivo
............É vero, é falso, é tudo
........................é beijo.

29.8.06


Pergunto dos que podem erguer os braços e decidir. Pergunto dos que regem os destinos e ignoram os ensejos. Pergunto dos que discernem o relevante do urgente, com poder para prescindir de ambos em função do conveniente. Pergunto dos que decretam ser essência o contingente se com isso encaixam as exigências de quem pode exigir. Pergunto dos que afirmam. Pergunto dos que juram e se alimentam de perjúrio. Pergunto dos artistas que compõem a cada dia a polifonia da mentira. Pergunto dos grandes, dos fortes, dos gloriosos porta-vozes pintados de ouro. Pergunto dos que não oferecem a outra face, mas escolhem cabeças aos milhares para o sacrifício. Pergunto dos que deslocam curvas e esfacelam famílias. Pergunto dos que podem com um arabesco de tinta condenar nomes e sobrenomes a um suicídio ignóbil. Pergunto dos que se apertam as mãos, logo após remanejar os traços negros no chão que tornam vizinhos e parentes em estranhos e inimigos. Pergunto dos infanticidas, genocidas, fratricidas, parricidas, cujos bustos serão reverenciados. Pergunto dos pequenos deuses cercados de assessores, como Ganimedes sem estrelas. Pergunto dos que sorriem ao deixar sem resposta um pranto, dos que dão abraços mas não suam, dos que são pura concordância e auto-controle. Pergunto por mim, pelos meus e pelos demais infelizes que não são nada disso.

28.8.06

Seção obituário: Agosto também tem coisas boas



Atenção: este texto não é recomendado para usuários com problemas cardíacos ou hipertensão.

Estive sem computador durante toda a semana, o que é sempre muito chato, mas desta vez me causou ainda mais danos: impediu-me de saber imediatamente do falecimento de um indivíduo cujo nome não vou dizer com todas as letras porque não quero ser processado. É uma pena. Não costuma ser de bom tom comemorar uma morte, mas desta vez vou abrir uma exceção à regra (que não deixa de ser um pouco hipócrita).

Se eu tivesse visto a notícia na internet poucos minutos depois de sua confirmação, garanto que teria aberto uma garrafa de champanha. Quem disse que em Agosto só acontecem desgraças? Às vezes a Terra se liberta de seus pústulas, e quando isso acontece em Agosto, ora, ponto para o mês! Eu diria até que o dia do falecimento da figura deveria ser decretado feriado nacional (não vou dizer o dia porque não quero ser processado).

Bom, mas se não vou dizer quem era, tenho que pelo menos descrevê-lo um pouco para explicar o motivo de meu contentamento um pouco fora dos trilhos. O indivíduo em questão foi um que ousou conspurcar, aviltar, por que não dizer, esculhambar, uma das maiores paixões e um dos maiores patrimônios do povo brasileiro: isso mesmo, o futebol. O sujeito, parte de uma trupe que reúne outros tantos nomes mais do que conhecidos e que tampouco vou mencionar, em benefício de seu bolso (e o de alguns amigos próximos) destruiu algumas das mais sólidas instituições esportivas brasileiras, fez ruir todo um belo edifício de glórias e boas tardes de domingo, atirou no ridículo diversas carreiras sólidas de jogadores, técnicos, dirigentes, juízes e jornalistas. Ele fez de tudo um pouco. Assumiu o importante cargo que “exerceria” durante mais de duas décadas declarando para todas as rádios, redes de televisão e jornais que determinado time não seria campeão enquanto ele dominasse a torre daquele feudo (quase conseguiu). Foi afastado por irregularidades gritantes e voltou por liminares absurdas. Durante seu reinado, o que era grande se tornou pequeno. Ridículo, até.

Quando chegaram à final de um importante campeonato nacional brasileiro os dois clubes que mais se beneficiaram das maracutaias do sujeito, pensei: “Pronto. Não há mais esperança para o futebol do Brasil. É o fim. Agora esse pilantra só sai lá de dentro morto. Ele e os outros grandes caciques (cujos nomes não vou mencionar para não ser processado).”

E não é que eu estava certo? Para o bem ou para o mal, ainda há uma entidade neste mundo que não pode ser subornada, ludibriada, desviada, enganada, dominada, que foi o que o cara fez com o nosso futebol. É a morte. Dá até vontade de virar religioso: da morte, ninguém escapa. Dizem que vaso ruim não quebra. É quase verdade. Os demais vasos ruins (que não vou mencionar vocês sabem por quê) estão todos por aí. Mas eis aí um que quebrou, e creio que vale uma pequena comemoração.

Não serei ingênuo a ponto de crer que a partir desse milagre o futebol brasileiro (e particularmente da região tiranizada pelo falecido) vá se reerguer. É evidente que a estrutura que permitiu seus vinte e poucos anos de despotismo nada esclarecido segue intacta, e corremos o risco de vir um sucessor que seja pior ainda. Mas não posso perder essa oportunidade de fazer as minhas exéquias, sobretudo para que não seja mais um indivíduo que não faz falta alguma a só receber homenagens. Sei que sua tumba deve ser um mausoléu. Sei que presidentes de clubes devem ter dito coisas maravilhosas a seu respeito. Sei que farão bustos e estátuas em sua homenagem. Sei que haverá uma rua com seu nome. Faço, porém, questão de que haja um outro lado: este meu texto.

Portanto: Não, a morte do homem não é nada a ser lamentado, ao contrário. Deveriam pendurar seu corpo em praça pública para que a população lhe dê pauladas, mais ou menos como fizeram com Mussolini. Sei que enquanto escrevo seu arremedo de alma está tentando em vão equilibrar-se à borda do lago de fogo do sétimo círculo do Inferno. Queria ter um dia de Dante para poder apreciar o espetáculo, e quem sabe tirar uma fotografia. Sei que isso não vai acontecer. Tudo bem, basta-me poder fechar os olhos e imaginar.

* * *

Aproveitando que o assunto é futebol, gostaria também de comentar a final da Copa Libertadores, agora que a poeira baixou e os são-paulinos não estão mais querendo destruir a cidade. Mas o fato é que a conquista do Internacional de Porto Alegre deve ser louvada até pelos derrotados, por um fato até banal, mas muito relevante: é de certa forma uma vitória sobre a roubalheira.

Explico.

O campeonato brasileiro do ano passado foi o exemplo maior de como ainda somos uma república de bananas que quer tudo na mão, nem que para isso seja preciso passar por cima de tudo e de todos. Com a ajuda de um poderoso e obscuro investidor (provavelmente fachada para lavagem de dinheiro de mafiosos, segundo dizem), o Corinthians se armou para levar o campeonato a qualquer custo. Mas como o time não ajudava, começou a cair pelas tabelas, e os grandes candidatos ao título passaram a ser o próprio Inter e o Fluminense. Alarmado, o tal investidor simplesmente comprou o campeonato, que contou com cenas bizarras como um gol anulado por impedimento em lance de escanteio (!!!) e assim por diante.

Pois bem, o investidor conseguiu o que queria. Levou para casa o campeonato mais ridículo da história de campeonatos ridículos do Brasil (fora alguns casos clássicos do reinado do sujeito da primeira parte do texto). Nem por isso o quadro seria bom. Quando foi tentar a sorte na Libertadores, apanhou logo de cara de um River Plate que não pode definitivamente ser considerado um dos melhores times de sua história e voltou para casa com cara de tacho.

Já o Inter, um dos grandes prejudicados pela roubalheira do ano passado, chegou até a final e foi campeão. O Inter, que da última vez que jogou a Libertadores tinha chegado através de uma roubalheira acintosa na final da Copa do Brasil, há mais de década. Pois naquele ano, em que roubou, não conseguiu nada. Neste ano, em que foi roubado, ergueu a taça (contra todos os esforços do Abel Braga, que fez de tudo para perder os dois jogos da final e não conseguiu).

O Inter, roubando, não ganhou. Sem roubar, ganhou. O Corinthians, roubando, ganhou o brasileiro, mas perdeu o que realmente queria: a Libertadores. Quem sabe se por meio de um trabalho sério a coisa não possa acontecer de maneira melhor no futuro? Não consigo deixar de ver nisso um incentivo para que o brasileiro comece a buscar outras maneiras de se dar bem, além de simplesmente fazer tudo por fora ou por baixo do pano. Às vezes, a luta séria e honesta traz resultados melhores.
Nada, claro, contra o São Paulo Futebol Clube. Apesar de ter se tornado grande após receber um presentão de um governador-torcedor em forma de recursos públicos que deveriam ser usados na construção de metrô, casas populares e escolas, mas viraram um estádio enorme e um clube nababesco, a partir dos anos 90 as administrações do tricolor paulista são talvez as mais sérias do Brasil, e isso deve ser aplaudido, ainda que com ressalvas. (Também espero que eles percebam que contra times mexicanos que só se defendem um marqueteiro debaixo das traves é mais do que suficiente, mas contra times de qualidade que chutam a gol, é necessário um goleiro.)

22.8.06

Seção versos subcutâneos: Parvo e Pulcro

Parvo e pulcro

– Ponho meios nas cacholas
....e animo o Universo.

.............– Sim, mas não cabe arrastar
................os pescoços às latrinas.

– Um raio que não pragueja
....jamais pode me atingir.

.............– Mas um veneno no ar
................fará o seu corpo sumir.

– Eu espalho embriaguez
....e recolho a sua prole

.............– Só que os rebentos do absinto
...............Regurgitam os frangalhos.

– Pela noite há escritórios?

............– Circuitos de estrelas.

– E as fadas tinham cáries?

............– Tinham conexões.

– Mas os sonhos estão mortos?

............– Em liquidação.

19.8.06

Atravessando

Como se não existissem o tempo ou a vida e a verdade tivesse sido inteiramente construída pelos grandes engenheiros do último século, como se o mero sustentar-se sobre dois pés fosse um desafio a deuses sem nome, um corpo, sozinho, oscila com firme determinação por sobre o canteiro central das gigantescas salas de estar.

É um homem, na acepção antiga da palavra, de quando era mais que uma palavra ou uma codificação de hormônios e aminoácidos, como é uma alma com vasos sangüíneos e infinitos dentes, que tanto servem para morder pão dormido como para zombar das antigas virtudes, agora vivendo sob o disfarce de tímidos dogmas.

De ambos os lados do homem voam, indo e vindo, as cinzas da fogueira inextinguível, já tão frias que não podem aspirar ao estandarte do Reino, nem reconhecer em si os embriões da alegoria com que foliões do porvir vencerão os carnavais, nem aceitar o impulso misericordioso de alguma ventania que as espalhe.

Oscila o corpo, penso, pacificado, de braços abertos sobre a face amara de um ser incivil, rude, um navegante agarrado a seu astrolábio sem se dar conta de que jamais teve ou terá rumo, um leviatã frouxo, miríade de nulidades levianas e ambiciosas a espetar suas garras terra adentro, tal alfinetes nas carnes dos povos.

Como se não fosse necessário temer o alheio, o incerto, o frio, a pobreza e a morte.

18.8.06

Seção obituário: Moacir Santos (Hora do mea culpa)


Este blog passou, isto é, eu passei batido por uma notícia que deveria entristecer todos os brasileiros, mas duvido que tenha tocado mais do que a meia-dúzia de sempre. Só pra piorar um pouco, minha omissão se torna ainda mais gritante pelo fato de que nesse meio-tempo ainda ousei escrever um texto laudatório sobre os grandes gênios da música brasileira. Pois no dia 6 de agosto perdemos um que certamente está nos “Top 10”, se não estiver nos “top” três ou quatro. Que o sol suma do céu e a terra trema: perdemos Moacir Santos (1924-2006).

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Eu jamais poderia ter deixado tanto tempo antes de comentar, ou, melhor dizendo, homenagear um dos nossos mestres. Talvez isso se explique pela semana infernal que tive, a cabeça ocupada até o talo com uma série de obrigações de que falarei mais adiante, quando for hora. Mesmo assim, não tem perdão. A morte de Moacir Santos é caso de parar todas as atribuições do maldito cotidiano.

Certo, estou exagerando. Mas tudo isso foi só para aguçar a curiosidade dos muitos brasileiros que não conhece esse compositor. De fato, não são poucos: por falta do devido reconhecimento, Moacir se tornou mais um cérebro (genial, diga-se de passagem) brasileiro a tentar a vida no exterior, mais especificamente, EUA. Pena. Lá, ele produziu algumas grandes obras e ensinou a muitos músicos estrangeiros a beleza de música que alunos brasileiros poderiam ter aproveitado para expandir ainda mais as fronteiras da nossa música.

Moacir Santos era pernambucano. Tocou em várias bandas do nordeste até se mudar para o Rio de Janeiro, onde arrumou emprego em vários lugares, principalmente a Rádio Nacional. Fazia arranjos sem saber teoria (o que não é fácil), e seu talento chamou a atenção do professor Hans Joachim Koellreutter, alemão que viveu e compôs no Brasil. Moacir foi assistente do maestro e, mais tarde, deu aulas para João Donato, Baden Powell, Paulo Moura e outros grandes músicos brasileiros.

Tocava vários instrumentos, como a maioria dos grandes músicos, mas tinha uma queda para o saxofone. Sua música é de uma beleza difícil de crer. Moacir tinha a rara qualidade de fazer o complexo parecer simples. O som que criou é uma mistura quase mágica entre influências nordestinas, cariocas (samba e choro), eruditas e norte-americanas (jazz). O resultado é difícil de definir até para o compositor: seu primeiro disco chamou-se Coisas, pelo simplíssimo motivo de que cada uma das músicas ali dentro era uma “Coisa” seguida de um número. A “Coisa” que ficou mais famosa é a no 5. Não vou dizer que é a melhor, porque cada um deve ouvir por si e escolher qual é de sua preferência. Mas o fato é que a “quinta coisa” foi regravada inúmeras vezes.

Depois de Coisas, Santos lançou dois outros discos, já nos EUA. Por fim, quando se reconciliou (mas não voltou) com a nossa pobre pátria, comemorou o reencontro com o lançamento de um disco duplo delicioso de se escutar, todo negro, com um encarte fabuloso, chamado “Ouro Negro” como a pele e o coração do compositor (são músicas instrumentais, então não se pode dizer, como seu antigo parceiro Vinícius de Moraes, que o som é “branco na poesia”).

Pois Moacir Santos, já octogenário, foi-se, legando essas composições monumentais, e uma série de ex-alunos que dignificam nossa história musical. Só acho uma pena que ele não tenha gravado mais discos. Saravá, Moacir!

16.8.06

Seção versos subcutâneos: Litania para o capital


.
...Litania para o Capital
.
Ó Vós que permitis, benevolente,
A acumulação de patrimônio!
.
............
Concedei-me viver de renda
.
Ó Vós que sois pai de todas as Bolsas,
ídolo cruel dos investimentos!
.
............
Concedei-me viver de renda
.
Ó Vós que distribuís fortuna
e fome segundo vosso desejo!
.
............
Concedei-me viver de renda
.
Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!
.
............
Concedei-me viver de renda
.
Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:
.
.............
Concedei-me viver de renda!

15.8.06

Desperdício de genialidade

Meu último post opinativo teve um tom amargo demais. Não gosto disso; confesso que estava num dia particularmente estressante, e isso acabou transbordando para o texto. Prefiro manter um tom ponderado, não vejo grande resultado em manifestações de raiva. Continuo achando prejudicial a preguiça do brasileiro para a vida política, manifesta da alienação e na valorização excessiva do voto dentro desse processo. Mas hoje, para compensar o tom irritadiço daquele post, vou tentar ser mais positivo.

Então vou fazer grandes elogios ao Brasil; sim, vou falar de uma área em que o nosso país é imbatível. Uma área em que muitas terras se destacam, muitos povos realizaram feitos notáveis e, por que não dizer, divinos. Um campo da atuação humana que às vezes tem o poder de elevar a alma a instâncias sublimes. Uma verdadeira arte que nós não inventamos, mas em que nosso Espírito freqüentemente se eleva além de todos os nossos vizinhos.

Essa área, meus amigos, é a música. Tentei criar um suspense no parágrafo anterior para passar a impressão de que é o futebol, e bem poderia ser. Mas não: é a música. A opinião talvez seja polêmica, mas afirmo com todas as letras que o Brasil é o país mais musical que há no mundo, e pronto. Mais que os eua, mais que a Itália, mais que a Alemanha. Os dois últimos criaram a grande maioria das maiores obras eruditas da história, com monstros do tamanho de Beethoven, Mozart, Verdi e Vivaldi. Os americanos são pais dos gêneros que mais se difundiram no século XX: jazz, blues, rap e rock (embora nessa última seara as melhores produções venham do Reino Unido, pelo menos na minha opinião).

Mas o Brasil é algo difícil de explicar. Não podemos competir com os europeus em termos de música erudita, mas temos alguns nomes de peso, como o sagrado Villa-Lobos e os mais que respeitáveis Radamés Gnattali, Carlos Gomes, Koellreutter (alemão, mas brasileiro) e Camargo Guarnieri. Mesmo no período barroco, quando não éramos senão uma colônia aurífera de Portugal, nossos músicos não faziam feio. Segundo o maestro John Neschling, hoje na Osesp, nenhum outro país das Américas produziu músicos eruditos de primeiro nível ininterruptamente desde o século XVIII até hoje. Nem os EUA. Só o Brasil. Isso significa muito.

Agora, se formos falar de música popular, simplesmente não tem para ninguém. Damos banho em todo mundo, incluindo os americanos. A variedade e a profundidade da nossa produção musical não tem paralelo em nenhum canto. Se é verdade que o jazz corresponde ao choro, nosso gênero é mais antigo e mais vasto. Em muitos aspectos é mais complexo, embora músicos como Hermeto Pascoal freqüentemente sejam considerados jazzistas, e jamais chorões, o que não passa de um preconceito idiota.

Pois país nenhum no mundo pode contar com um Tom Jobim, certamente maior compositor não-erudito no século XX. Sem contar que ele compunha também música erudita, que se não fosse marginal em sua obra poderia ter produzido as melhores obras do gênero no período. Se bem que, se eu tivesse composto Desafinado e Luíza, tampouco me preocuparia em fazer música erudita.

Não só em compositores estamos bem servidos. Os arranjos de alguns discos de Elis Regina e Clara Nunes, para dar o exemplo de cantoras fenomenais, são de uma inteligência rara. Palmas para gente como Cesar Camargo Mariano e Wagner Tiso, que por sinal também são fabulosos como instrumentistas e compositores.

Um parágrafo de aplauso para mais alguns de nossos gênios: Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Cartola, Paulo da Portela, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Luiz Gonzaga, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Zequinha de Abreu, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Lamartine Babo, Lupicínio Rodrigues, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elizeth Cardoso, João Gilberto, João Bosco, Elton Medeiros, Aldir Blanc, Carlos Cachaça, Noel rosa, Aracy de Almeida, Ataulfo Alves, Sivuca, Dominguinhos, Egberto Gismonti, Paulinho da Viola, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Maria Bethânia, Gal Costa, João Nogueira, paulo César Pinheiro, Joaquim Callado, Raphael Rabello, Chico Science (sim, o cara era bom, vocês vão ver), Jorge Ben, Tim Maia, Renato Andrade...

Não quero que a lista fique infinita, então paro por aqui. Não é qualquer país que pode contar com um time desses, que atravessa gerações. Algumas gravações, e algumas músicas, de autores brasileiros estão entre os momentos mais sublimes da humanidade, como Ingênuo, de Pixinguinha, Elis e Tom cantando Águas de Março ou a escultura digna de Vaticano em que Milton Nascimento transformou Beatriz, um monumento de Edu Lobo e Chico Buarque (este último, um xodó das moças que é de fato um rei).

Onde entra o desperdício do título? Pois aqui entra a crítica que quero fazer. Fico triste demais quando vejo que um país capaz de produzir toda essa obra insuperável a trate como velharia e rebotalho, e prefira prestar atenção em seus produtos menos valorosos. Não estou falando de cançonetas sem grandes pretensões, como os sucessos da Jovem Guarda ou a berraria sertaneja que faz tanto sucesso. Esses não são o melhor exemplo de música brasileira, mas têm seu valor e sua razão de ser no universo a que pertencem.

Por outro lado, fui apresentado alguns dias atrás a um grande vilipêndio de nossa música genial. Uma prima adolescente se manifestou apaixonada por uma música de uma determinada cantora. A cantora, não vou dizer quem é. Mas a música era Beatriz.

Em primeiro lugar, tive que explicar que a música não é da tal da cantora. Que aquilo era apenas uma versão, e que versão deprimente. Vejam, depois que Milton Nascimento gravou Beatriz, regravá-la se tornou uma grande responsabilidade. Um cantor, para executar Beatriz ao vivo, precisa ter, em primeiro lugar, muita coragem, e depois muita certeza do que está fazendo. Já é uma música difícil, que vai do extremo grave (os pés no chão) ao extremo do agudo (sétimo céu). Cair no cafona ao cantar essa música é um risco constante. É necessário um controle absoluto da voz, uma noção perfeita de leveza, uma atenção constante para a letra, um comedimento calculado da orquestração.

Em resumo, é difícil. É muito difícil. Muito difícil mesmo. Mesmo! E a tal da cantora arriscou. O resultado foi uma gritaria sem sentido, um desrespeito ao trabalho de todas as atrizes, e mais uma prova de que ser Milton Nascimento não é fácil. Em trinta segundos de audição, quase atirei a caixa de som para longe. E a menina adorando. Claro, ela nunca tinha ouvido o Milton cantar, mas depois que eu corrigi essa falha, ela entendeu a diferença. Precisamos de mais Milton Nascimento neste país.

À cantora, uma dica: estude mais antes de querer arriscar uma música como Beatriz. O tempo, por exemplo, gasto com autopromoção por motivos completamente alheios ao seu trabalho musical, poderia ser melhor empregado em aprofundar-se no que a música brasileira tem de melhor. O país agradece, e meus ouvidos também.

13.8.06

Seção dedo de prosa: Seis dias

* * * Mais uma vez, não consegui colocar imagem! Ô programinha de quinta! * * *

Seis dias

Era quarta-feira e uma dúzia de mãos suadas vinha em fila dar apertos flácidos. Era quarta-feira. Rosto afogueado, tentativa de não dar mostras exteriores de nervosismo. Quarta-feira, antes do almoço, dia dezenove, marcado há meses. Mais do que decorada, aquela data. Aquela quarta-feira de tudo ou nada, aquele momento decisivo para uma vida, aquela mesa de mogno antiqüíssima, linda, pontilhada de garrafas e copos de água mineral sem gás. Quarta-feira dos sonhos, da gravata estampada, do absoluto autocontrole e primor no vestir-se, no pentear-se, no postar-se. Um bom café da manhã e um trocado para o engraxate da estação. Ah, quarta-feira!

Foi uma quinta-feira de telefonemas, torcicolo, entusiasmo juvenil, secura na garganta. Vozes jovens, idosas, femininas, viris, um jogral de parabéns que variavam entre a inveja mal disfarçada e a empatia autêntica. Você lutou tanto! Você sonhou anos com isso! Você conseguiu, finalmente! Foi uma quinta-feira triunfal em que as calçadas da hora do almoço eram nuvens e os transeuntes um cortejo, em que nenhum olhar vinha do alto e os relógios não obedeciam senão ao tempo da glória. Foi uma quinta-feira saborosa, para nunca ser esquecida, uma quinta-feira regada a vinho francês e ervas finas, uma quinta-feira que os vates narrariam e atribuiriam a heróis quase divinos. Ah, quinta-feira!

Veio a sexta-feira trazendo o peso dos armários, pastas, papéis. Trabalho duro para a sexta-feira, mas sem reclamações, ao contrário: cada relatório transferido era uma lembrança, um eco da quarta-feira maravilhosa, a quarta-feira cor-de-rosa que deu lugar à sexta-feira de trabalho pesado, mas sobretudo delicioso. Ei-la, brindando a sexta-feira, a sala nova, com o nome antigo já sendo raspado da porta para dar lugar ao novo, resplandecente, que constaria naquela entrada queira Deus por muitos anos. O suor da sexta-feira não era como aquele da quarta. Mas o esforço era filho da apreensão, e nada poderia ser mais agradável. A sexta-feira legou câimbras, fadiga e calos, aquela que foi a melhor sexta-feira de todos os tempos. Ah, que sexta-feira!

Sábado e folga. Tempo para descansar. Sábado da pelada tradicional, chope, piscina com as crianças e jantar a dois com a namorada. Sábado de abraços fraternos, belas jogadas, risadinhas e o sexo como recompensa, ao final. Sábado de contar à ex-mulher sobre o triunfo profissional, contra todas as expectativas. Sábado, cinema, praia, o que mais? Sábado de indecisão e indolência. Sábado de digerir com um gole de cerveja a nova situação. Sábado de entender como a vida passava a ser outra, e o orçamento mais folgado. Sábado de planos, sonhos, desejo de compras. Ambições que afloram. Novos tempos, nova vida, nova pessoa. Todo o passado se apaga de uma hora para outra. Sem deixar saudades. Sem remorsos. Sem elegia fúnebre. O desaparecimento de um é o nascimento de outro. Ah, que sábado!

No domingo, dia claro, uma ligeira ressaca. O time joga hoje? Domingo é dia de jornal mais grosso. Domingo na televisão: a programação é outra. Antigamente, domingo era dia de missa. As lojas não abrem. As famílias saem de casa. Ruas são interditadas para o lazer. A cidade se dedica a ser domingo antes que a segunda-feira torne tudo nebuloso. Domingo não é quarta, não é quinta, não é sexta nem sábado. Tudo toma ares diferentes no domingo. Um único domingo de perturbação e pensamento. Domingo concentrado numa angústia impossível de explicar. Uma angústia que bloqueia o pensamento e não se vence com distrações, nem álcool, nem nada. Angústia que se torna física e se espalha qual seiva pelos membros e o tronco. Angústia sediada na garganta, capaz de trincar os ossos e dissolver os músculos. Capaz de expulsar o oxigênio, parar o coração, escurecer o mundo. Angústia de domingo, capaz de parar tudo, qualquer coisa que entre em seu caminho. Que domingo.

Segunda-feira. Ninguém encontra explicação.

11.8.06

Ai, mas que preguiça!

Começo a achar que uma das melhores coisas do Brasil é o fato de que todo mundo é consciente de tudo. Bom, tudo talvez não, mas tem uma área em que não só cada indivíduo tem consciência plena como faz de tudo para que os incautos do entorno se conscientizem também. Obviamente, essa área é a política. E, como em todas as outras áreas da vida nacional, o debate gira em torno de “canetadas”: qual canetada é menos trabalhosa e poderia dar resultados melhores?

Pois agora que se descobriu que há corrupção no país, a imensa população consciente está também irritada. Como parou de brilhar a estrela que aparecia no horizonte, a saída fácil e bela pela esquerda (é o que se dizia, não sou eu que estou afirmando!) se estreitou consideravelmente. Resultado: o grande projeto de hoje, a descoberta fabulosa dos nossos analistas cotidianos, é a campanha do voto nulo.

Um exército de formidáveis militantes políticos calcula que se metade da população anular o voto, “vão ter que” (adoro esses sujeitos ocultos!) fazer outra eleição (e aí? Anula-se de novo?). Mas a idéia principal é outra: deixar claro o fim da paciência, a raiva, a ebulição do sangue ao pensar nos desmandos “dos políticos” (e viva os apolíticos?).

Certa rede de TV metida a moderninha, que jamais pode perder a onda (e a chance de faturar uns trocados a mais com as manias da galerinha) iniciou uma campanha publicitária incitando sentimentos de revolta silenciosa, isto é, revolta preguiçosa, de sofá (quem sai na rua não assiste aos comerciais). Em outras palavras, propondo ao povo que demonstra sua revolta contra o sistema político nacional da mesma maneira como vem demonstrando esse sentimento há tempos: sem fazer nada a não ser sair para votar e não votar em ninguém específico (porque é tudo igual).

Então vêm os militantes do lado oposto: isto é um absurdo, uma irresponsabilidade, que horror! O brasileiro deve votar com consciência! O voto é o exercício da cidadania! Da democracia! “Não reclame, vote!”, dizem. E completam: seu voto é sua arma. E já se fala, claro, como sempre, em processar a tal rede de televisão. Muito bem.

Mas o voto é realmente uma coisa fabulosa! Mobiliza um país inteiro que poderia estar pensando em coisas banais, como orçamentos públicos, bancadas de lobby, negociatas, mentiras descaradas de candidatos e por aí vai. Nada disso. Importante é saber se a pessoa deve votar ou não (cabe lembrar que o voto, neste país democrático pra chuchu, é obrigatório).

Pregar o voto nulo e criticar quem o prega são as faces de uma mesma moeda: a idéia preguiçosa, genuinamente brasileira, de que democracia e ação política são algo que se faz uma vez a cada dois anos (às vezes em dois turnos) e que consiste basicamente em sair de casa de manhã, pegar uma filinha, assinar um papel entregue por um sujeito que só está ali para não ser preso (o mesário) e digitar alguns números para ouvir o ti-lili-lili da maquininha.

“E vamos acabar com essa corja!“

Assim, da próxima vez que alguém perguntar “em quem você votou na última eleição para deputado estadual?” você poderá responder “Votei nulo contra essa corja!” em vez de dizer “Não sei”. E saia de peito estufado e queixo apontando para as torres da Paulista. Não é uma maravilha?

É claro que o ideal seria que as pessoas paradas na rua dêem respostas assim: “Votei em fulano, de partido tal, que fez tais e tais coisas na gestão. Nós, seus eleitores, enviamos uma carta exigindo tais e tais atitudes, e ele lutou pela implementação de nossas reivindicações. Votarei nele de novo.” Ou: “Votei em fulano de tal, de partido tal. Não nos atendeu, faltou na maioria das sessões, só propôs emendas idiotas. Nunca mais terá meu voto.” Ou, o que seria a coisa mais maravilhosa: “Votei em fulano, mas ele não foi eleito. No seu lugar, elegeram Beltrano, que fez tal e tal...” e por aí vai.


Mas é igualmente claro que isso seria exigir demais. Mesmo assim, do ponto de vista do voto, isso é participação política. Não tem nada ver com voto nulo, contra ou a favor. Aliás, até apóio que pessoas desinteressadas do processo político votem nulo, por sinal nem deveriam precisar votar (voto obrigatório é dose pra mamute...). Mas é necessário entender que política não se limita ao voto, muito pelo contrário. O voto é a ponta de um processo que envolve os cidadãos do começo ao fim de suas vidas, da hora em que acordam até se deitarem novamente, e em muitos sentidos até mesmo enquanto dormem.

Quando a sua rua é esburacada, não é “a bagunça desse governo”, é política. E política te inclui profundamente. Política é buscar conhecer os meandros, posicionar-se em relação a eles e opinar. Política é gestão de vida pública, ou melhor, política é aquilo que é público em sua gestão. A esta hora eu poderia lembrar da origem grega da palavra, mas isso é bobagem. O fato é que discutir a mágica do voto, nulo ou não, é perda de tempo e uma maneira de continuar no mundo das canetadas. É se abster de encarar a questão política de frente. É uma tentativa de acalmar a própria consciência ao mesmo tempo em que se entrega a gestão da nossa vida à mesma “corja” do mundo político, que só existe porque ocupa o gigantesco vácuo deixado pela nossa sociedade preguiçosa.

9.8.06

Seção versos subcutâneos: Nós.






Nós.

Nós, claro. Como sempre,
buscando o infinito recôndito.
A fissão nuclear.
O silêncio que reverbera nas paredes.

Nós, sempre buscando
na penumbra
a liquefação dos corpos,
a extensão dos membros, rumo
aos domínios sagrados do prazer.

Nós e nossa busca desordenada.
Perdidos da realidade sem jamais deixá-la.
Dois corpos imiscuídos,
a torção dos torsos.
Nós, fincados à terra
para ressoar nos céus.

Não é que sejamos deuses.
Podemos, mas não precisamos
passar por bichos
ou forças da natureza.

Talvez estejamos loucos,
talvez incorporemos vulcões.
É impossível dizer. Mas
em nossa busca, sabemos
que somos um recorte do Todo.
Deuses, bichos, vulcões
estão em nós e
correm por nossas veias,
de um
a outro.

Às vezes,
por um nosso capricho,
o tempo pára.
Logo, porém, volta a correr
com ímpeto dobrado.
Nossos espíritos, então, retornam.
E voltamos, claro,
a ser nós.

8.8.06

Seção Versos Subcutâneos: Nos Dias

Nada está funcionando neste blogger. Tentei colocar uma imagem, não consegui. Tento colocar recuos nos poemas, não consigo. Acho que o endereço deste blog não vai demorar a mudar...

Mesmo assim, posto o poema da maneira como consigo que ele saia, ou seja, chapado, todo para a esquerda, sem os esquemas visuais que costumo usar. Tanto pior. Quando eu encontrar um servidor que de vez em quando funcione, prometo que posto de novo todos os poemas que usavam recursos de espaço.

PS: Inventei um método "sisífico" de dar os recuos. Preenchi os espaços vazios com pontos e os pintei de branco. É ridículo, mas é o que me permite este maldito servidor. Lastimável...

Nos dias

Eu sinto me esmaga
............o peso
............o peso
............os pés os vates os grandes
............os nomes
Eu sinto.

Eu sigo louco mim
............fervendo
............fazendo
............falando sem nome sem nada
............sem Deus
Eu sigo.

Eu sou tantamente
............existo
............existo
............existo um exemplo um elemento
............explícito
Eu sou.

Eu sei quem sabe
............convir
............criar
............criar por criar por cavar
............minha terra
Eu sei.

Eu sofro as injúrias
............amargas
............arraigadas
............amarelas crispadas queimadas
............despeito
Eu sofro.

3.8.06

El comandante ya se murió

O assunto da moda é o Fidel Castro, mais uma vez. Morreu, está morrendo ou não vai morrer nunca? Jamais uma figura foi tão capaz de tornar verdadeira a distinção entre esquerda e direita, que, como todo mundo insiste em lembrar, é ficcional. Muitas pessoas que nunca tiveram nada a ver com Cuba, e que por sinal talvez não saibam apontar no mapa onde essa tal ilha fica (se é que sabem que é uma ilha) se referem a ele como “aquele ditador maldito”. São de direita. Outros, com mais ou menos o mesmo nível de referência sobre o país do homem, se referem a ele como “o grande revolucionário”. São de esquerda.

Raros são aqueles que têm uma opinião intermediária, ou se abstêm de dar opinião sobre el viejo comandante. A isso se dá o nome de “carisma”. Ninguém sobre esta terra tem tanto carisma quanto ele, e isso é inegável. Nem artistas, nem estrelas, nem políticos, nem tampouco qualquer herói com alguma doença incurável. Nem o Pelé, que talvez seja mais famoso e mais admirado. Todo mundo tem alguma opinião sobre o Fidel, mesmo os personagens do Guimarães Rosa, se bobear.

Então resta a pergunta: quem tem razão? Os “de direita” ou os “de esquerda”, que em relação a qualquer outro assunto jamais teriam essa classificação? Os que odeiam a figura do barbudo ou os que adoram ouvir seus discursos de sete horas? Difícil dizer. É certo que nos últimos anos ele pendeu mais para “ditador maldito” que para “grande revolucionário”.

O regime cubano prende, mata, censura, tudo isso. Mas, cá entre nós, não é nada que se compare a um Stalin, um Mao Tsé Tung, um Pol Pot, grandes ditadores da esquerda. Falta aquele caráter de banalidade aos excessos cubanos; seus crimes são de fato políticos, são parte do sistema, o que é obviamente condenável. Mas quem já estudou um pouco de história política sabe que são intrínsecos à maior parte dos processos políticos e não se pode dizer que esteja excluído de qualquer democracia contemporânea, veja-se o exemplo dos Estados Unidos, suas estripulias na ONU e o sufocamento da oposição interna (mas os EUA são assunto para outro dia).

Por outro lado, a Revolução Cubana levada a cabo por Fidel, Cienfuegos e Guevara, entre tantos outros, é, sim, algo a ser profundamente louvado e jamais esquecido. A derrubada de Fulgencio Batista, com todo o apoio do governo americano (e da máfia), é um ato heróico incomparável na história mais ou menos recente, assim como o episódio da Baía dos Porcos (qualquer dessas referências pode ser facilmente encontrada na internet, sobretudo na Wikipédia). Uma revolução que só se tornou comunista após a recusa norte-americana em reconhecê-la. Os EUA, ao priorizar os interesses da máfia, jogaram seu vizinho do sul nos braços da União Soviética e criaram para si mesmos um enorme problema que persiste até hoje.

Então ambos os lados têm razão? Como em quase todos os debates intermináveis, sim e não. O “ditador terrível” nunca foi tão terrível. Sua ilha, outrora uma colônia de exploração dos EUA, se tornou um apêndice da URSS, mas um apêndice sem analfabetismo, com os melhores médicos do mundo e também uma das melhores escolas de cinema. Após a queda do Muro de Berlim, Cuba ficou em maus lençóis, tombou novamente na miséria (em grande parte graças ao bloqueio comercial americano) e teve que abrir as portas para o turismo, os dólares e a prostituição. Mas ainda com os melhores médicos do mundo e analfabetismo nulo.

Cuba, hoje, é um país de repressão, balseros, carros dos anos 50, culto à personalidade. É um caso sui generis. Mas a ilha pode ser tudo, qualquer coisa, menos uma república socialista. É por isso que o ditador não tão terrível é um revolucionário não tão grande. Fidel Castro, ao fazer de Cuba o seu enorme Simcity (ou seria Civilization? Um daqueles joguinhos...), eliminou o mínimo gérmen de comunismo que a revolução tivera.

O socialismo, no cerne, é em teoria um regime político em que não há alienação, isto é, em que quem produz não está alijado de seus meios de produção. Isso significa que o processo econômico e o político são conduzidos pelas mesmas pessoas, quais sejam: os trabalhadores, por extensão a população. Cuba não é socialista. Cuba é o quintal em que Fidel Castro faz suas experiências e, principalmente, seus discursos.

Há décadas Fidel Castro deixou de ser um revolucionário. O Fidel Castro que durante todo esse tempo ocupou o “trono” cubano é um grande funcionário público que não quer largar o osso, como tantos que temos cá no Brasil. A revolução acabou, morreu, pouco depois da Baía dos Porcos. Cuba é um país interessantíssimo, mas como experiência política é só mais um exemplo do fracasso das utopias. El comandante ya se murió. E morreu faz tempo. O que restou foi uma carcaça verborrágica e algo ridícula, mas muito carismática.

2.8.06

Seção versos subcutâneos: O dia me diz

Era pra ter recuos neste poema... perde um pouco de sentido desse jeito, maaas...


O dia me diz

Em volta um dia bonito
E o dia me diz:
Vive!

Tudo no dia
Circula dentro em meus olhos
e diz:
Vive, salafrário!

Vive, diz o sangue pulsante
Nos corpos suados
e
Os corpos sentados
Nos motores a
combustão.
Vive!

Os impulsos, nos sistemas
nervosos
centrais
Dizem: vive!

Como os impulsos
nos cabos
nos fios de telefone - alô!
na fibra (a ótica)
nos modems, iPods e seus concorrentes
nas antenas de celular
daqui mesmo ou em roam.

VIVE!
E os sinais ficam verdes.
Até o campo
e o mar,
Tão distantes,
Vivem dizendo.

E o meu corpo diz não.

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