30.8.07

O cachimbo do professor


Como em todo final de tarde, a chave não girava e a porta não abria. Somavam-se, há meses, o defeito na fechadura e a preguiça de tomar uma atitude. Tinha medo de quebrar a chave lá dentro, o que seria o único jeito de fazê-lo telefonar para o chaveiro. Empurrou, forçou, deu murros na madeira. Tudo à toa.

Parou para recuperar o fôlego. À sua respiração barulhenta, juntou-se o som perturbador de uma outra, mais grave e acintosa. Alguém subia as escadas, ofegando através de brônquios tomados pelo catarro.

Como já imaginava, era o professor que vinha, em seu paletó violeta de todos os dias, apoiando-se no corrimão e suando por debaixo da cabeleira. Viram-se e caíram numa rápida risada. O professor ergueu a mão em que segurava seu cachimbo aceso.

- Professor! Bom dia!

Como resposta, apenas um acesso de tosse.

- E esse tumor, vem ou não vem?

Chegado ao andar, o professor fez uma pausa. Não agüentava subir de uma só vez.

- Está difícil. Até agora, nada. Segundo as radiografias, tudo funcionando.

Recomeçou a dança de acasalamento entre a chave e a fechadura; mas o espírito da primavera parecia não ter baixado no metal.

- Fico feliz em saber, professor.

- Acho que o cachimbo não está adiantando. Eu deveria tentar cigarros. Mas, o que é uma pena, eu simplesmente não consigo tragar.

E voltou a subir as escadas, na mesma marcha difícil. Cada vez que expirava, de seus pulmões vinha um assovio de chaleira.

A porta levou quase quinze minutos para querer abrir.

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27.8.07

Considerações sobre o amor à vida


Quando olho pela janela, não ando pela calçada. Caminhando pela cidade, não leio um bom livro. Lendo, não conheço novos países e, viajando, não bato papo com amigos interessantes, à mesa de metal daquele velho pé-sujo. A vida é assim: muito ampla, muito curta. Para nossa desgraça e maravilha, houve um dia em que deixamos de ser bichos, agindo por mero impulso e instinto, máquinas programadas para procriar e comer até sumir. De repente, por um capricho da evolução e dos deuses, fomos condenados a reconhecer a vida, encará-la de frente, amá-la feito loucos e praguejar contra ela.

Eis o nosso destino; fantástico, ainda que temeroso. Se a vida pudesse ser apenas um fato, um detalhe, não valeria a pena. Pois bem. Nossa vida, queiramos ou não, é muito mais do que isso. É uma obrigação que algo dentro de nós nos impõe. Ou seja, para o mal e para o bem, é um fardo: uma pena, e é essa a pena que vale. Somos carregados a ter desejos, pulsões vulcânicas. Não podemos nos furtar a escolher rotas, abrir mão de alegrias e mergulhar de bom grado em tragédias. E por quê? Apenas porque somos gente.

Pensei nisso quando me lembrei de uma certa noite, anos atrás, em que eu bebericava alguma coisa e pensava na morte da bezerra. Um desses amigos metidos a perspicazes ocupou o espaço livre à minha frente. Sem cerimônias e à revelia, declarou que eu tinha o ar triste. E arrematou, como em confidência: "o que não é raro".

Eu não sabia que meu semblante se mostrava entristecido com tanta facilidade. Ao mesmo tempo, a informação disparada pelo meu amigo não chegou a surpreender. Pode passar por tolice, mas me causa uma certa frustração que só seja possível fazer uma coisa de cada vez, estar em um único lugar, limitado ao mesmo corpo, com os mesmos olhos e ouvidos, as mesmas histórias, idéias e experiências, enquanto, ao redor, uma miríade de vidas e universos batem cabeça, fundem-se, dão à luz infinitas novas realidades, todas elas merecedoras de algum grau de interesse e fascínio. Quando penso em tudo que estou perdendo, dou lá uns suspiros sem conseqüência; mas que permitem ao amigo sagaz concluir que sou um triste.

Amar a vida, às vezes, produz sensações dessa ordem: melancolias sem rótulo, desejos irrealizáveis, vontades sufocantes, toda sorte de sofrimentos desnecessários. Dirão os sensatos, essa gente frígida e enrugada, que o amor à vida deve se dar segundo uma tal "justa medida". Que idéia! Que coisa pode haver de mais estagnado do que a justa medida? De mais anódino e conformista? A justa medida é o refúgio dos medrosos, aqueles que, da vida, só esperam que não seja dolorosa demais, e dariam tudo para descobrir a trilha da existência fácil, tranqüila, garantida, sem sobressaltos; mas, como isso não existe, erguem os braços para o céu, implorando por proteção e conforto.

Ora, para amar a vida, é necessário devorá-la com todas as suas páginas; as de euforia, medo, ódio, prazer. Nossa carne parece feita para receber as chagas da dor e da derrota, mas que pele lisa e imaculada poderia sorver devidamente o alívio e suas delícias? De ambos os lados de nossos caminhos, o que há são precipícios, verdadeiros abismos que nos convidam a escorregar. Daí o fascínio da corda-bamba. Daí a necessidade da arte. Para além, o que há é pura contingência. No limite, uma passagem meramente biológica pela Terra.

Nada de tristeza, amigo perspicaz. O ar distante é apenas um momento de descanso. Uma retomada de fôlego, antes de pular mais uma vez na maravilha de caminhar sobre a Terra. Há muito o que fazer. Que fazer? Continuo sendo um só.

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23.8.07

Reprovado em bom humor


Perdi a conta de quantas vezes já me repetiram que, na vida, nada é mais importante do que o senso de humor. É necessário mantê-lo, sentenciam, mesmo nos momentos mais adversos. Sucumbir à irritação, jamais! Essa gente positiva quer me convencer de que é preciso encarar todas as faces da vida, mesmo as mais sombrias, sempre com o mesmo sorriso. Pode ser, pode ser. Falar é fácil.

Tendo a crer que tudo isso é bobagem, coisa de quem tem espírito de Poliana; mas se me disserem que é uma boa maneira de encarar a vida, anuirei. No meu entender, todo indivíduo tem direito a seu momento de nuvens negras. Agora, não posso negar que, quanto mais rapidamente ele conseguir contra-atacar as verdades da existência com uma bela tirada sarcástica, tanto melhor.

Donde posso concluir que, mesmo se meu humor não anda lá nos seus píncaros (T.M. Vicente Celestino), este texto deve ter um tom que puxe para a alegria. Vá lá, a faceirice. Falando assim, não soa difícil; saiba, então, que todos os meus instintos querem me coagir aos impropérios. Digitar amenidades é um desafio, pura e simplesmente.

Por outro lado, é um exercício de estilo como nenhum outro. Imagine-se tendo que escrever algo feliz enquanto, para lá de sua janela, cai a mesma chuva fina que já vinha caindo há três dias, e que continuará a cair pelo próximo tríduo, quase com certeza? Está bem, continua não soando difícil. Vou ter de aumentar a carga dramática.

Continue imaginando: é verão. Um verão com que você sonhava desde o ano anterior, que seria o tempo em que os casacos grossos seriam relegados ao armário, os cachecóis ficariam apenas pendurados, e você se esticaria nos gramados e jardins para tomar um sol que, diziam, poderia chegar aos quarenta graus. Imagine que esse sonho se revelou um atestado berrante de otário. A temperatura que se prometia na casa dos quarenta, com velhinhos morrendo de sede por todo o continente, raramente atinge os vinte graus. O sol que você sonhava em tomar resolveu não cruzar o Trópico de Câncer. Os tais jardins e parques, em que você ousou pensar que repousaria, estão cobertos por uma camada de orvalho.

Enquanto isso, os dias vão passando, o bom tempo não vem, o outono se aproxima. Algumas árvores, apressadinhas, tomaram a dianteira do calendário e já começam a tingir suas folhas. Não adianta lhes dizer que ainda temos um mês de verão (opa, esqueci as aspas: de "verão"). Assim como as rosas, as árvores não falam. Nem escutam. Prossegue a marcha das folhas, amarelando, enrubescendo, esticando os músculos para o dia em que se precipitarão sobre o infinito das calçadas.

Mais um inverno virá, e mal pudemos provar a doçura do verão. Os sol, que há pouco mais de um mês não se punha antes das dez e meia, daqui a pouco já nos deixará no escuro antes das cinco. Luvas, gorros e botas voltarão a compor o figurino. O governo francês, sempre com seu olho enorme, já espera recordes de depressão para o inverno; é da memória do calor de julho e agosto que vive a população quando as temperaturas são negativas. Em 2007, porém, que raio de memória teremos do verão?

Respondo eu mesmo: guarda-chuvas dobrados pelas ventanias. Resfriados e dores de garganta. Jogos de gamão, quando o plano era um passeio pelo campo.

Ah, sim, já ia me esquecendo! Eu tinha prometido um texto bem-humorado. Vê como não é fácil? Fazer rir à beira de uma piscina, com caipirinha e churrasco? Ora, isso, todo mundo consegue. Debaixo de nuvens lúgubres, pesadas e próximas, só riem os loucos e os bêbados. Aliás, isso é o que não falta por aqui.

19.8.07

Quando fui pelos ares


Logo na primeira noite em que precisei trabalhar além do horário do metrô, sofri um acidente de bicicleta. Resulta que, quando tiver setenta anos, se contar aos meus netinhos que me machuquei de tão cansado que o trabalho me deixava, será uma mentira. Bastaram duas míseras noites entre garrafas e talheres para que eu me tornasse incapaz de conduzir um guidão.

Mentira. Eu não estava incapaz de nada. Estava era pedalando rápido demais, desesperado para chegar em casa e encontrar a mulher, o uísque e um banho quente - não necessariamente nessa ordem; melhor é os três ao mesmo tempo. Será isso, então, a imprudência no trânsito? Sou culpado. Uma culpa mitigada, por favor; mas condenável, ainda assim.

Foi diante da porta de uma boate. Os seguranças me contaram que, na noite anterior, uma moça se acidentou no mesmo ponto. Culpa da rua, então. Muito gentis, os seguranças. Impediram-me de subir novamente na bicicleta, trêmulo, diria até desvairado. Ordenaram-me que respirasse; eu já ia mesmo esquecendo desse detalhe. Ignoraram minhas assertivas repetidas de que estava bem, não havia me machucado, e assim por diante. Deixaram de lado a bicicleta e me trouxeram água mineral. Só mesmo acidentado, eu tomo água mineral! Acho que devo aos dois armários, se não me meti em outro sinistro logo na seqüência.

Culpa da rua, eles garantiram. Pode ser. Em um dado momento, quando eu seguia em linha rigidamente reta, a roda apontou para outra direção. Asfalto irregular, a julgar pelo depoimento dos seguranças. Ou terá sido meu braço que fraquejou? Não duvido. O que quer que seja, a ciclovia era estreita. Senti logo o perigo. Não conseguiria recuperar a direção do guidão, nem apoiar o pé na calçada. Os freios, como sempre, estavam bem aquém dos cem por cento. Restava apenas esperar o choque. Dito e feito.

Não quis nem olhar se causei algum dano ao Peugeot velho em que bati, até então estacionado na santa paz de Deus. Se fosse obrigado a pagar pelo mínimo arranhão, minha permanência em território gaulês estaria comprometida em definitivo. O pessoal da boate (e lhes devo mais uma) fingiu que não viu. Quanto à bicicleta, o cesto sofreu uma cicatriz; vergou-se o metal. Fora isso, nada. Talvez as marchas tenham se tornado um pouco mais difíceis de trocar, mas pode ser coisa da minha cabeça.

Foi sorte. De verdade. São bicicletas públicas, que fazem parte de um novo programa da prefeitura para diminuir a circulação de carros em Paris. Uma assinatura anual, bicicletas à vontade. Ou quase. Estão em metade das esquinas da cidade. Por outro lado, estragar uma das benditas custa a bagatela de cento e cinqüenta euros. Quase nada para um Bill Gates, eu sei. Mas não é o meu caso.

Finalmente, o alívio maior. A despeito do espetáculo que ofereci a quem estava por perto, não sofri nada grave. "Escoriações leves", não é esse o termo? Em suma, foram cortes na mão e dedos roxos. Tive a boa fortuna de aprender, na adolescência, a arte de cair com violência sem me machucar demais. Graças a esse aprendizado, que deveria fazer parte dos currículos escolares, consigo discernir bem o momento em que o acidente se torna inevitável. Até lá, luto para evitá-lo. A partir de então, abro mão da peleja. O esforço passa a ser para quebrar o mínimo possível de ossos.

A dor e o susto estragaram minha noite. Não conseguia dormir, com o polegar que latejava. Inchado, tinha a cor e o tamanho de uma ameixa pequena. Por outro lado, quanto mais o tempo passa, menor é o peso desse lado desagradável, e maior é o peso da lembrança histórica. Sim, sei que ainda chegará o dia em que, visitando Paris com meus filhos ou netos, hei de levá-los à Rue de Rivoli, no ponto em que o Louvre termina e começam as Tulherias. Então, cheio de saudade, uma nostalgia que enterrará no esquecimento o cansaço destas madrugadas, apontarei o lugar exato em que fui pelos ares a bordo de uma bicicleta Vélib, voltando de uma noite de trabalho pesado. E meus olhos se encherão de lágrimas. Não porque se repetirá, nas entranhas do inconsciente, a dor da queda. Mas porque, pela minha cabeça já esbranquecida, passará um pensamento idiota como este: "Eu era feliz e não sabia"!

Tolice.

15.8.07

A Furreca ainda me fará rico!

Dá um certo remorso, o apelido maldoso com que me refiro à máquina fotográfica que ganhei de brinde do banco quando, implorando de joelhos, consegui convencê-los a abrir uma conta para mim e outra para minha namorada. Não fosse por esse pequeno aparelho digital, de resolução ínfima e uma enorme dificuldade para reconhecer a presença de luz no ambiente, certamente meus registros da vida na França e das viagens por aí estariam reduzidos a poucas dúzias de imagens. De qualidade muito superior, tudo bem. Mas poucas, e nada espontâneas.

A câmera boa, do tempo em que a fotografia envolvia um objeto estranho chamado "filme", está relegada ao armário desde então. Às vezes, quando percebo que ela se sente desvalorizada, perco horas em consolações, garantindo que, mesmo se só uso a outra, é dela que gosto mais. E que, se ela está no armário e a Furreca no bolso, é uma pura questão de dinheiro. Nada mais.

Está cada vez mais difícil convencê-la. Mas a verdade é que, hoje, dou-lhe mais valor do que quando era a única. Que poder nos dá o simples fato de fotometrar! A escolha da distância focal, o tempo de exposição, os objetos que estourarão na claridade ou desaparecerão nas trevas... Um dia, isso foi corriqueiro. Hoje, dá saudade. Eu, que tanto reclamava de não ter um ou outro filtro para manipular as imagens! Se soubesse...

Quase esqueci que não estou escrevendo por nostalgia, mas para fazer um desagravo à minha querida Furreca, companheira de tantas horas. Uma de suas características mais marcantes é a formação que teve antes de parar em minhas mãos. Não li seu currículo, mas sei que andou estudando em alguma escola de arte moderna. É voluntariosa como o diabo. Não se conforma, por nada neste mundo, a ser um apêndice de meu desejo de fotografar. Ao contrário da velha Canon, que cumpre com perfeição burocrática seu dever mecânico, a Furreca é, ela mesma, a artista. E não tem conversa. Eu que me contente com minha função de apertador de botão e trocador de pilhas.

Assim sendo, essa pequena seguidora de Picasso e Kandinski, admiradora de El Greco e Delacroix, não tem vergonha alguma de copiar, nas imagens que produz, o estilo dos grandes mestres da história, com acentuada preferência pelo Expressionismo e o Surrealismo. Poucas são as fotos em que, contente com o que está vendo, ela não se resolve a dar um toque pessoal, distorcer o mundo, meter curvas onde curvas não há, borrar cores, esticar figuras, inventar fundos dourados como os de Klimt. Já eu, por falta de opção, apenas aceito. E espero que, pelo menos, saia bonitinho. Eventualmente, pelo menos, minha submissão é recompensada. A investigação estética da Furreca às vezes resulta em descobertas fantásticas, já que ela é capaz de perceber coisas que escapam à percepção comum. Isso ainda vai me deixar rico. Um exemplo? Dou logo um bombástico.
Recentemente, estive em várias cidades da Itália, como você saberia se fosse um leitor assíduo deste blog. Uma das obviedades a que me permiti foi uma visita a Pisa, debaixo de um calor digno do Crato. Apenas a título de registro, enquadrei a famosa torre inclinada e tirei a foto. Mas a Furreca, ora, até parece que se contenta com um mero registro de viagem. Ela precisa entender a fundo o que vai registrar em sua memória digital. Resultado? Uma descoberta histórica, capaz de revolucionar a arquitetura universal, a compreensão da arte e o turismo na Itália. Atenção: a Torre de Pisa não é apenas inclinada. Não. Também é torta. Está aí a imagem, que não me deixa mentir.
Obrigado, Furreca. Vou vender para o mundo inteiro o segredo desvendado de uma das construções mais fotografadas que há. Darei palestras, entrevistas, escreverei um livro, farei um filme. Ficarei rico! Só eu sei! Só eu, eu!, consegui fotografar a verdade sobre Pisa! É quase como tirar um instantâneo de discos voadores invadindo o planeta. Furreca, minha querida: se algum dia eu ficar rico, será graças a você.

13.8.07

Extra, extra! Layout novo!

Este post, pra ser honesto, não tem a mínima importância. Escrevi-o só pra comemorar uma vitória bastante medíocre; mas vitória, ainda assim. Talvez ninguém tenha reparado nisso, mas andei mudando as coisas por aqui. Já vejo as gentes dando de ombros. Mudanças no blog, ora, todo mundo faz o tempo inteiro. Não vale a atenção de ninguém. Mas insisto em comemorar como se fosse um Prêmio Nobel (é verdade que o Nobel dá mais dinheiro). Pra mim, é um triunfo.

Quando montei este blog, apliquei-lhe um dos inúmeros layouts do Blogger. No meio de todos os quadrados coloridos, com headers, footers, sidebars e outras stuff, encontrei um desenho que me agradou. O exterior lembrava uma lombada de livro antigo; o interior, páginas amareladas de um pergaminho. Não precisei procurar mais. Eis a aparência que, na minha ignorância de iniciante, queria dar ao Para ler sem olhar.

De lá pra cá, não deixei de ser iniciante, é claro. Mas aprendi muita coisa. Uma delas diz respeito ao desconforto de ler uma página com aquele fundo cor-de-barro, que não faz contraste suficiente. Outra é que o cabeçalho deste blog é feio, muito feio, feio de morrer. E tanto mais! Ainda assim, não aprendi o principal, ou seja, como mudar todas essas coisas. O tal código-fonte, pra mim, continua sendo o maior mistério da Terra. O que fazer para alterá-lo?

Como minha preguiça só não é maior do que minha curiosidade, enveredei por algumas leituras que transmitem ensinamentos sobre páginas de internet e blogs. Pois os tais gurus falam todo tipo de coisa. Recomendam trackbacks, keywords e loads of crap. Mas, como não entendo nada disso, aprendi apenas que é muito importante ter uma página razoavelmente bonita e de fácil leitura. E eu, lá, com uma página feia e ilegível, incapaz de manipulá-la.

Foi assim que, certo dia, fui apresentado à única coisa que conheço em código-fonte: as cores. E nem são todas, só duas. O preto é uma série de seis zeros, e o branco, de seis ff. Ou seria o contrário? Pouco importa. Invadi o modelo do blog e troquei todas as cores por ff e zeros. O resultado é isto que se pode ver.

Eu mesmo... Acho estranho. Abro a página e perco horas a esquadrinhá-la. Gosto? Não gosto? Gosto? Não gosto? Continuo sem chegar a uma conclusão. Ficou estranha, penso. Mas posso, quem sabe, alegar que é uma espécie de minimalismo. Vai que alguém cai?

Está longe de ser o ideal. É quase a confissão da minha ignorância. Mas o primeiro passo foi dado e, daqui por diante, este será um blog em branco e preto. O cabeçalho continua quase igual, é verdade. Nisso, ainda não aprendi a mudar. Ainda assim, mal consigo conter o orgulho de ter feito uma mudança tão drástica por conta própria. Já domino os ff e os zeros. Amanhã, posso dominar o mundo.

9.8.07

Ele, um homem sem nome


Pelas cócegas leves que lhe causava o roçar dos pêlos, sentiu a mão que abandonava sua nuca para envolver a curvatura de um seio. Ao contato tão delicado dos dedos, a pele macia cedeu, afundou-se, e o calafrio que disparou por sua espinha a fez apertar os olhos e morder o lábio. Deixou escapar um som abafado. Passou os braços por trás da nuca dele. Pelos cabelos anelados, puxou sua cabeça para trás e assaltou com os seus aqueles lábios escancarados.

O movimento dos dois corpos engatava-se pela harmonia do ritmo. Ele aninhou a cabeça em seu colo, ela apertava com as panturrilhas os rins ligeiramente salientes por baixo das costas encurvadas em sua direção. Sentia como se seu corpo cozinhasse, dois suores se misturando pela fricção, membros que dançavam feito cobras enfeitiçadas. A cada vez que ela expirava, soltava todo o ar de seu interior, e era como se escapasse uma parte de sua alma, vaporosa, à temperatura de ebulição. Passou as unhas, com violência quase descontrolada, pelas costas do homem. Debaixo da pele úmida, a musculatura era tensa, entregue ao esforço de dar prazer. Ele tinha o rosto crispado, rilhava os dentes, grunhia como um urso. Ela teve um acesso de riso, espasmos graves, livres, sem pretensões. Sentia puxões involuntários nos músculos internos das coxas, e seus pés estavam esquecidos, frios, os dedos virados para dentro.

O prazer tomava corpo no passo lento em que os corpos balançavam. Ambos queriam prolongar ao máximo aqueles minutos de simbiose das carnes, sentados sobre um colchão desconhecido, ela por cima, a abraçá-lo com os quatro membros, um limitando o fôlego do outro. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, escaparia de seu bojo um facho elétrico, que apagaria de seu cérebro, por um momento, todo traço de consciência.

Porém, antes que pudesse ser arrebatada pelo orgasmo inevitável, ela percebeu que ele balançava a cabeça com violência, chocando-a contra seus ombros. Seu corpo todo se agitava, tremia, enquanto sua vontade frágil combatia o fluxo que ascendia, de prazer e vida. Foi em vão. Ela sentiu quando, de uma só vez, todo aquele corpo grande, coberto de uma penugem dourada, se deixou relaxar com uma sucessão de espasmos e mais grunhidos nervosos.

Foi impossível evitar o assédio da decepção. Não que o acusasse pela incontinência, mas já antevia a perda da excitação, o amolecimento do parceiro, o final abrupto da relação. Para não terminar o encontro sem o êxtase que merecia, e que chegou a parecer tão próximo, ela seria obrigada a continuar sozinha dali por diante, estimulando o próprio sexo e os sentidos, agarrada à fantasia do que quase havia sido. Não seria uma satisfação tão grande quanto o prazer de ser levada ao gozo pela agressividade habilidosa do parceiro. Porém, se ele não conseguisse evitar de recolher seu estandarte, seria a única alternativa à frustração de não gozar.

Surpreendentemente, ele ainda conseguia. Envolveu sua cintura entre os braços, deitou-a de costas sobre os lençóis e, numa respiração penosa, acelerada, continuou a se movimentar por dentro dela, com afinco redobrado. Não era um atitude natural. Era evidente que, ao contrário, ele obrigava seu corpo a um quase sacrifício, combatendo a tendência fisiológica, que ela bem conhecia, de largar-se e dormir profundamente. Mas ela também sabia que o esforço não daria resultado por muito mais tempo. Se ela não atingisse logo seu próprio ponto de sublimação, ele perderia seu tônus, os órgãos não responderiam e a virilidade de seu membro desmancharia em flacidez. Ela teria de se unir ao esforço do homem para que ele obtivesse algum êxito.

Ela se sentia confusa, mas emocionada. Tocava-a o fato de que ele ainda se preocupasse com a satisfação da parceira, mesmo já tendo obtido a própria. Não é a regra entre os homens, dizia-lhe sua experiência amorosa de quase das décadas. Tratando-se de um namorado, um marido, um amante, o caso seria outro, mas não muito. O homem verdadeiramente amoroso cuidará que seu júbilo não seja solitário. Se também for consciente das volições do amor, tratará de levar a mulher ao zênite do arrebatamento, nem que seja por temor de que ela encontre um outro que o faça.

Mas não era esse, ela pensou, o caso do homem que resfolegava por cima de seu corpo. Seu altruísmo era, sem sombra de dúvida, desvinculado de emoções estáveis. A relação dois dois estava submetida a um contrato rigoroso, em que ficava acordado que não seria mais do que um encontro fugaz, uma noite de prazer sem conseqüências que só teria lugar porque uma atração irresistível os colocara um diante do outro. Um acaso, pois. Que tenham se encontrado, e iniciado uma conversa, durante um vernissage a que nenhum dos dois planejara comparecer. Mas compareceram ambos e, simples assim, travaram conhecimento. Enfeitiçaram-se um pelo outro, e não era efeito do álcool oferecido com fausto, nem de suscetibilidade emocional.

Ele, suprema desgraça, era casado. Eis ali seu anel, que não permitiria uma mentira ou disfarce. Ela, recém-separada, acreditava estar livre do desejo, pelo menos por mais alguns meses. Tomara asco do gênero masculino e vangloriava-se das portas abertas que tinha para cuidar da própria vida. Talvez tenham sido justamente essas barreiras a empurrá-los um para o outro. Como saber? Não seria o matrimônio forte o suficiente para apagar o verdadeiro vulcão de testosterona que corroía as estruturas morais do homem, nem as convicções velariam à percepção da mulher a força telúrica dos olhares penetrantes que ele lhe lançava.

Por longas horas, ainda tentaram conter nas raias da civilização presumida o desejo mútuo que praticava seus caprichos sobre os dois espíritos. Mas não demorou até que algo acontecesse, um resvalar involuntário dos dedos, um ato falho da linguagem, qualquer coisa, e o instinto acabasse assomando à superfície. Ele se apressou em deixar claro que não tinha intenção nenhuma de abandonar sua família, nem ao menos de colocá-la em risco. Ela respondeu que jamais esperaria ou exigiria dele nada parecido. Explicou sua situação, sua misandria recentemente desenvolvida, a repulsa a qualquer forma de vínculo estável com um homem naquele instante. Desse ponto, chegaram a um acordo sobre suas intenções, que lhes permitiria partir para a relação livre sem a perspectiva da culpa ou do remorso.

Não perguntariam um ao outro nem mesmo como se chamavam. Sairiam dali diretamente para um motel, em carros separados, com um intervalo de tempo, após despedidas de naturalidade inquestionável aos demais presentes. Fariam amor, diriam adeus, e nunca mais. O acordo contava com a concordância irrestrita das partes envolvidas. Portanto, ela estava certa de que não seria por efeito de algum sentimento de estima que ele prosseguia em sua insistência de fazê-la gozar.

Seria, pois, uma manifestação de altruísmo, de consideração e respeito. Mas não era o momento de se perder em conjecturas. O fôlego do homem se esgotava. Se ela não conseguisse atingir o orgasmo nos instantes seguintes, todo o esforço seria perdido. Concentrou-se. Reforçou os movimentos, contraiu seus músculos para tornar a fricção mais intensa. Dali a pouco, pôde perceber um latejamento leve, e uma sensação que parecia uma longa nota de clarinete que vibrasse em seu corpo de baixo para cima, da vulva à nuca. Seus músculos contraíam-se e distendiam-se sem um comando seu. Ela conseguira. Queria demonstrá-lo ao parceiro, revelar que seu esforço tivera uma recompensa digna, que ele poderia baixar a guarda. Gemeu, gritou, enfiou os dentes no pescoço salgado e vermelho do homem, com suas veias e tendões saltados.

Não seria o mais intenso de seus orgasmos, mas o que experimentava era, ainda assim, muito agradável. Foi tomada por uma calma que lhe parecia da amplidão do universo. Suspirou. Sentiu que o corpo do homem abandonava sua posição sobre ela para largar-se, exausto, a seu lado, mas ainda com o braço passando por cima de seu ventre. Abriu os olhos porque sentiu o desconforto do vento frio que ocupava o espaço deixado pelo corpo grande e pesado sobre o dela. Num movimento lento, voltou o rosto para o lado e encarou seu parceiro, que ainda tinha as faces ruborizadas pela força que fizera. Mas já estava adormecido.

Ela continuou observando seu rosto. Prestava atenção na respiração forte do adormecido ainda ofegante, no tronco que subia a cada inspiração e descia gentilmente para expulsar de volta o ar, na expressão de tranqüilidade imaculada. Um novo pensamento a assaltou. Todo aquele sacrifício seria mesmo apenas uma demonstração de consideração? Não teria acontecido algo a mais naquele intervalo de tempo em que estiveram juntos? A atração, ora, não pode ser apenas química. E mesmo que seja, é inconcebível que as ligações químicas de um momento não se reproduzam através do tempo. Os corpos, afinal, são os mesmos.

Presa pelo braço do parceiro, atravessado por cima de seu umbigo, ela não podia se levantar para ir ao banheiro, como desejava, para limpar-se e tomar uma ducha gelada. Pensou em empurrá-lo, afastar o braço, forçar a saída, mas decidiu deixar os movimentos drásticos para mais tarde. O homem dormia profundamente, ressonava, e o som de seu quase ronco transmitia uma vontade curiosa de também adormecer. Ela acompanhou com o olhar os traços do rosto, as rugas, as pequenas pontas de barba que ameaçavam nascer, os cabelos que já sofriam a invasão de alguns fios brancos e grossos.

Assaltou-lhe uma curiosidade terrível de saber quem era aquele homem, como se chamava, o que se passava em sua cabeça. Para todos os efeitos, era um adúltero. Levou para a cama uma mulher que não é a sua. Mas não parou nisso. Foi até as últimas conseqüências, no esforço de proporcionar-lhe um orgasmo, ainda que tardio. Como seria seu casamento? Terrível? Talvez a mulher não lhe despertasse mais desejo algum, talvez ele não sentisse por ela mais do que uma estima carinhosa e fria. Ou talvez ainda a desejasse como sempre a desejara, mas fosse incapaz de afastar do pensamento as fantasias com outras mulheres. Era um homem, não? E os homens querem todos, por natureza, ser polígamos, não? Eis aí um, deitado ao seu lado, que conseguiu sua pequena migalha de poligamia, sua escapadela travessa e segura, livre de culpa ou medo de revelação, graças a um contrato verbal de cláusulas claras e invioláveis.

Uma escapadela, mas onde o prazer da fêmea não foi negligenciado, nem mesmo pela crueldade que muitos homens manifestam de ignorar as necessidades da parceira apenas para exercer uma forma distorcida de superioridade. Para ela, que tantas memórias ruins carregava dos homens que a haviam amado de maneira insatisfatória, até desrespeitosa, aquele sujeito anônimo era quase um herói. Atravessou sua mente, como um pássaro que ela se apressou em expulsar, a idéia de que era injusto, muito injusto, que ela o tivesse encontrado naquelas condições, e não antes do outro, de todos aqueles outros, e também não antes que ele encontrasse alguma mulher para se casar. Talvez sua vida amorosa tivesse sido mais alegre, quem sabe?

Talvez ele tivesse sido o homem certo. Mas agora já estava perdido. Ela não estava disposta a romper o pacto, correr atrás dele, vasculhar seus bolsos para descobrir seu nome e endereço. Agir assim seria, na sua maneira de ver as coisas, bancar a louca. Isso, jamais. O mero pensamento a perturbava de tal maneira que ela precisou sair dali, afastar aquelas bobagens da cabeça, fugir das idéias que formulava contra a própria vontade. Juntou as forças, empurrou o braço do homem e se levantou da cama, nua, ainda sentindo a umidade do suor, do sêmen e de seus próprios fluidos. Ele, porém, nada mais fez do que se ajeitar de outra maneira, numa posição mais confortável para dormir. Antes de se afastar, ela ainda lhe lançou mais um olhar, num gesto que logo considerou um erro. Ele parecia uma criança, agarrando com ambos os braços o travesseiro, as pernas dobradas, o rosto escondido.

Queria, embora não admitisse, saber tudo sobre ele. Teria filhos? Se tivesse, como seria seu relacionamento com eles? Ela leva as mãos ao rosto, meneia a cabeça, repete para si mesma que não, não, não. Caminha até o banheiro. Qual seria a coisa certa a fazer? Tentar algum movimento, para conduzir a situação ao rompimento do acordo? E se ele não quisesse? Não seria ainda mais doloroso? De repente, ela descobriu que não sabia em que termos ele pensaria nela quando acordasse. Talvez não pensasse em termo algum, desse apenas um tchau cordial, dissesse que gostara muito de conhecê-la, e esperasse dela a mesma postura em relação a ele. Mas poderia, também, acordar arrependido, sentindo-se sujo, um adúltero miserável nas mãos de uma mulher manipuladora. Talvez a tratasse como uma prostituta, ou uma conquista, uma mulher fácil. E essa última hipótese era a menos desconfortável, porque derrubaria no mesmo segundo toda a fantasia que ela construíra em torno dele.

Deu-se conta, então, de que a situação já estava ainda mais longe do que esperava, se estava preocupada com a opinião que ele pudesse ter. Jamais dera importância à opinião dos homens sobre ela. Era uma mulher livre e independente. Quem não gostasse dela, tanto pior. De súbito, havia um homem, um homem sem nome, cuja opinião contava. Era demais para sua suscetibilidade. Sem mais um pensamento, ela correu até o banheiro, fechou a porta e se deixou ficar parada diante do espelho, a cabeça baixa e as mãos agarradas à pia.

Quando reergueu os olhos, não reconheceu imediatamente o próprio rosto. Estranhou os olhos entristecidos, a boca, as faces. Encontrou uma marca de expressão em que jamais reparara, e que concluiu ter surgido poucas horas antes. O tempo não perdoa. Ela estava ficando mais velha, sentia-se assim e sua imagem reproduzia o que sua imaginação formulava.

Perfilou-se diante do espelho. Seu corpo ainda era atraente? Talvez jamais o tivesse sido, e os homens que se aproximavam dela o fizessem por compaixão ou, pior, porque não eram capazes de conquistar mulheres mais belas, perfeitas, com curvas traçadas a compasso e sem os pequenos defeitos que lhe saltavam aos olhos. Seus seios lhe pareceram desalinhados e acanhados. Havia uma acumulação de gordura logo abaixo do umbigo, que a fazia sentir-se barriguda, e que não ia embora por nada neste mundo. As nádegas não eram mais tão redondas quanto um dia chegaram a ser. Era impossível disfarçar as concavidades de celulite e os pontos vermelhos de irritação da pele. Que espécie de homem largaria a esposa por uma mulher assim?

Uma certeza se formou em sua mente. "Não sou sedutora, não sou sedutora", pensou em voz alta, sussurrando no tom de uma sentença de morte. Escapou-lhe o fato de que, poucas horas antes, seduzira aquele mesmo homem que dormia na cama do quarto. Mas sentia-se tão feia e desprovida de encantos que a memória quase se apagara de sua mente. Ele estava ali por alguma espécie de acaso. As ondas de seus cabelos castanhos, que costumava cultivar como uma arma de feminilidade agressiva, traduziam para ela, naquele momento, apenas falta de escova. Passou a mão pelo rosto, e ele lhe pareceu menos liso do que se lembrava.

Percebeu que seus pensamentos a traíam, influenciados por uma perturbação que a ocupara sem motivo, que ela não merecia, mas de que tinha consciência. Revoltou-se. Aquilo não poderia continuar assim. Abriu a torneira, molhou as mãos, mergulhou o rosto bruscamente na água fria. O corpo inteiro estremeceu. Tomou ar, estufou o peito. A verdade, disso não tinha nenhuma dúvida, era que não queria alterar o curso de sua vida. Tinha a obrigação de impedir qualquer movimento que a conduzisse nessa direção. Estava decidida: não permitiria que um homem desconhecido lhe negasse o direito de conduzir sua própria vida da maneira como tinha planejado.

Abriu novamente a porta, com o máximo possível de cuidado para não fazer barulho. O homem ainda dormia, e não precisava se preocupar com que ele acordasse: seus roncos cresciam em intensidade, o que era mesmo um bom sinal, uma vez que ela tinha horror a homens que roncam. Pé ante pé, ela buscou suas roupas, espalhadas pelo chão e por cima da cama. Por sorte, nenhuma debaixo do corpo adormecido. Vestiu-se sem olhar para a pele fresca do homem estirado tão perto. Retornou ao espelho, ajeitou-se inteira, os cabelos, o vestido, a maquiagem. A beleza era um componente inseparável de seu amor-próprio.

Ainda sentia no corpo os resquícios do prazer do homem, que a obrigaram a estancar o dilúvio com um papel dobrado. Aquele elemento viscoso de memória quase a abalou, mas sua força de vontade era maior. Tomou sua bolsa, verificou por alto que não deixava nada para trás, atravessou a porta e foi até o carro. Desceu as escadas sentindo o incômodo do sêmen rebelde, mas ignorou-o com galhardia. Deu a partida com um suspiro de alívio e, na saída do motel, fez questão de pagar a conta inteira, como uma última forma de afirmar seu poder individual.

Tomou a avenida no rumo de sua casa. Precisava dormir, não sem antes tomar um último drinque. Mas a determinação que a conduzira para fora do quarto se esvaecia paulatinamente, à medida em que os quilômetros avançavam e a história ia ficando para trás. Não conseguia mais escapar ao ponto mais profundo de sua veleidade: precisava telefonar para a melhor amiga, contar-lhe do ocorrido, de tudo que pensara, do que se passara em seu interior. Sem tirar a mão esquerda do volante, esticou a direita para o banco dos passageiros, abriu a bolsa e a vasculhou em busca do telefone celular. Era uma bolsa pequena, mas seus dedos não topavam com o aparelho. Irritada, ela esvaziou o conteúdo da bolsa sobre o banco. Ele não estava lá.

Percebeu a ironia do fato. Riu, depois sentiu o sangue subir à cabeça. Quase causou um acidente quando golpeou o painel do automóvel. Depois, acalmou-se e riu novamente. Disparou um ligeiro palavrão, suspirou e mordeu o lábio. A vida, pensou, é isso aí. E prosseguiu no caminho para sua própria casa e sua própria cama.

6.8.07

Saciedade, aleluia!

A alegria à mesa já foi tema deste blog, eu sei, e faz pouco tempo. Parece que estou um pouco suscetível ao assunto. Será que tenho comido tão mal, a ponto de ser tirado de órbita por qualquer refeição mais refinada? Não é impossível. Sei que estou cercado pelos ares de uma das mais célebres artes culinárias do planeta. Mas só tenho acesso a ela por cardápios de restaurantes em que não ouso entrar, a não ser para anotar pedidos. Sobre a alimentação realmente existente, só sei do famigerado kebab, uma espécie de churrasquinho grego que não causa convulsões imediatas, e os crepes, doces e salgados, que se fazem acompanhar por cidra, queira o cliente ou não.

Não é que eu jamais tenha sido convidado para jantares em casas francesas. Fui, sim. E não poucas vezes. Mas, segredo: apesar de todo o refinamento dos pratos, sempre muito cuidadosos, dos sabores desenvolvidos no laboratório dos séculos e palácios, do acompanhamento de vinhos com gosto de frutas e camélias, é desanimador. Verdade seja dita, o francês come feito um passarinho. O preço da carne deixaria poucas dúvidas quanto ao motivo, não fosse o fato de que o miserê à mesa é social e economicamente generalizado.

Um amigo ficou hospedado com um sujeito que não pode reclamar da vida. Mora no Marais, bairro para quem não pode reclamar da vida, e é sócio de uma empresa cujo faturamento tem vários zeros. Outro atributo seu é o domínio de todas as receitas do país (admito o exagero, isso é impossível). De partida, meu amigo estava encantado. Queria fazer inveja em todos nós, dizendo que comeria como um local. Não demorou para o coitado perceber que isso não se parece em nada com o que nos servem nos restaurantes franceses do Brasil. Após algumas semanas, contou que, depois do jantar, o anfitrião adormecido, ele atacava a geladeira em desespero.

Mas, como se sabe, toda regra tem exceções. Fomos convidados para visitar o apartamento novo de um casal amigo, no subúrbio. Comprada na planta, a nova moradia vinha sendo esperada há três anos e finalmente ficou pronta. Eles estavam eufóricos, repetindo a propaganda da cidade, eleita recentemente uma das mais floridas da Europa. Chamaram-nos para o almoço, buscariam-nos na estação de trem, tudo para nos agradar e compartilhar de sua alegria.

Forçamo-nos a acordar a um horário aceitável. Colocamos em uma sacola o vinho de Montepulciano que vínhamos guardando para uma ocasião especial. Passamos na floricultura e compramos rosas cor-de-laranja. Tomamos o trem.

Já ia me esquecendo de um detalhe importantíssimo, então abro um parêntese. O verão, esperado desde finais de junho, finalmente resolveu dar o ar da graça. Não faz nem uma semana. As temperaturas que, durante quase todo o mês de julho, mantinham-se estáveis em nível de cachecol, finalmente romperam a barreira dos trinta graus. Risco para os idosos, claro. Mas benção para o casal tropical que pôde, finalmente, relembrar a sensação deliciosa de usar camisetas.

Fecho o parêntese. O apartamento de nossos amigos não se parece em nada com o que conhecemos de Paris. Não foi construído no século XIX, não tem madeira grossa no chão, nem cadeira de quadro do Van Gogh. Poderia ser um apartamento brasileiro, não fosse a tranqüilidade do entorno, área pública belíssima. E os novos proprietários estavam exultantes. Só falavam em mostrar os parques, os bosques, a floresta em que colhem morangos silvestres.

Tão exultantes estavam que, no almoço, entupiram nossos organismos, tão sofridos, de comida. E da melhor qualidade, talvez melhor do que a dos cardápios que me causam suspiros. Gaspaccio, carne de caça cozinhada lentamente no vinho tinto, uma salada com vegetais que eu nem conhecia. Já estava a ponto de concluir que a única saída seria uma sesta, quando me exortaram a acompanhá-los em um passeio pelos parques da cidade. Pois vamos, como não?

Debaixo dos carvalhos e cerejeiras, novo convite: por que não ficar para o jantar? "Que pensam de passar uma soirée em nossa companhia?" (A fala afetada é de praxe.) Qualquer recusa seria uma ofensa. E quem recusaria? Tome queijos, tabule, molho chien, pão nan, espetos de peixes e frutos do mar, mais salada de vegetais desconhecidos, agora com ovas de salmão. Tudo degustado em algum lugar entre a varanda florida e as nuvens que, a rigor, não havia.

O resultado disso é que, na volta, deitei-me e não conseguia mais levantar. Qualquer movimento do abdome justificava uivos meus que deixariam com pena os vizinhos, se, a esta altura, não estivessem todos na praia. Meu estômago planando em céu de brigadeiro, e meu fígado na estiva, quase convocando uma greve contra o súbito afluxo de nutrientes. Eu suava. Talvez tenha delirado. Mas também acho que dizer isso seria exagerar minha condição. Se delirei, não foi pela digestão difícil. Mais provavelmente, foi a compreensão de que já obtive minha boa refeição da estação, e a próxima só virá, se vier, no outono.

2.8.07

Silêncio e silêncio

Não lembro mais quem disse que desejava morrer no mesmo dia de alguém mais famoso, para que a mídia não desse atenção. Mas compreendo. Deve ser terrível não ter paz nem na hora de expirar. Seja quem for que o disse, não foi Antonioni. Mas, se ele concordava com a fórmula, não poderia ter escolhido momento melhor para morrer do que logo após a partida de Bergman.

Deixei-me torturar nesses dias com o dilema: escrever ou não sobre Michelangelo Antonioni? Dois obituários em seqüência? Dois cineastas? Elogios ad nauseam? Haverão de pensar que este blog tem uma fixação fúnebre. Além disso, por mais amor que eu tenha à obra do mestre italiano, foi para o sueco que ergui altares. Já estava quase decidido a voltar a meus relatos de viagem, mas não conseguia ignorar a injustiça com o autor de um dos mais fantásticos planos-seqüência da história.

Salvou-me uma lembrança: Ingmar e Michelangelo tinham um ponto em comum. Nada melhor para justificar um texto do que o ponto em comum. Parece soar como uma influência mística, um toque de coincidência divina, todas essas bobagens. E sempre funciona. Basta encontrar algo, forçado que seja, de comum a duas pessoas distantes, e o texto se escreve quase sozinho.

O que une os dois cineastas, pelo menos por ora, é o fato de terem escrito e dirigido, cada um, a sua "trilogia do silêncio". Foram quase simultâneas e, para piorar, nenhuma das duas é, de fato, uma trilogia. Mas é assim como ficaram conhecidas as seqüências de três filmes de Bergman: "Através do espelho", "Luz de Inverno" e "O Silêncio" (1961-1963), e três de Antonioni: "A aventura", "A Noite" e "O Eclipse" (1960-1962). Admito que, normalmente, não se usa "do silêncio" para a trilogia de Antonioni, mas basta passar os olhos sobre os últimos minutos de "O Eclipse" (Alain Delon e Monica Vitti) para sobrepor a alcunha aos filmes.

Ingrid Thulin, deitada em sua cama de hotel na cidade desconhecida de "O Silêncio", sacode-se em tosse, manchando de vermelho seu lenço. À cabeceira, a bela Gunnar Lindblom enfeita-se diante do espelho e encara o reflexo da irmã mais velha com olhar pastoso e indiferente. Elas não trocam palavra. Só o que se ouve é a agonia da moribunda. Enquanto o filho de Lindblom passeia pelo hotel vazio, pesa sobre a Terra o silêncio dos céus. Mas o inferno, vê Bergman, não se cala jamais.

Uma banda toca animadamente durante a festa na casa de um italiano rico e modernoso em "A Noite". Marcello Mastroianni se deixou fascinar pelo mistério de Monica Vitti, atriz preferida de Antonioni. Sua esposa, interpretada por Jeanne Moreau, percebe, ofende-se com razão, foge. Mastroianni, sempre seguido pela câmera paciente de Antonioni, a perseguirá através da casa pelos próximos muitos minutos, atormentado pela lembrança da tentação e pela música alegre. Não consegue lhe dizer o que sente, porque não compreende o que sente. Ela, tampouco. Quando se reconciliam, fazem-no em silêncio. Suas emoções não lhes dizem nada.

Esses seis filmes pesam em nosso peito. Também nós sofremos a negligência do transcendente e a crueldade do imanente. Não são feitos para que saiamos aliviados da sessão. Talvez menos isolados. No silêncio dos demais espectadores, podemos reconhecer, se quisermos, a mesma tragédia humana em que tentamos construir nossas vidas. Essa é uma das magias da câmera: ela é capaz de nos coagir a olhar em torno, seguir seu exemplo, estabelecer contatos ao menos visuais com nossos pares, já que as palavras, tão mais claras, não somos capazes de emitir.

Por que não se continuam fazendo filmes assim? Não há interesse do público? Por que haveria menos, agora, do que há quarenta anos? Por acaso Deus rompeu seu silêncio ou somos perfeitamente capazes de dialogar com nosso inconsciente? Não e não. O homem contemporâneo é tão atormentado quanto os personagens de Bergman e Antonioni. A Roma esvaziada com que o italiano exclama o amor que não teve coragem de se concretizar, em "O Eclipse", poderia ser traduzida para qualquer cidade de hoje. Talvez com a diferença de que perdemos até mesmo a ousadia de chorar nossos fracassos.

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