29.1.07

O homem sem idioma


Consta nos anais que milhares de portugueses deixaram, em torno dos anos 1970, seu país, às voltas com guerras coloniais na África e uma ditadura agonizante em casa. Deslocados de suas casas, os briosos lusos tomaram o rumo da França, como em outros tempos voltavam-se para o Brasil. Esse período talvez coincida com o momento em que ficou definitivamente claro para nossos patrícios que sua ex-colônia americana há muito deixara de ser o tal país do futuro, conforme a lenda, para tornar-se o desperdício cultural e econômico de proporções épicas que tão bem conhecemos. Mas não é o caso aqui de fazer críticas ao nosso Brasil, de auto-estima já tão baqueada.

Fato é que os emigrados portugueses fizeram da capital da França a segunda cidade de maior população lusa, atrás apenas da velha Lisboa das sete colinas. Como sói acontecer em toda saga de migrações, alguns desses bravos que foram buscar uma nova vida conseguiram enriquecer, outros não. E como em toda história desse gênero, o segundo grupo é muito maior que o primeiro. Dentre os que enriqueceram, há donos de transportadoras, redes de supermercado, pedreiras. Cá ao lado de minha casa há um restaurante muito simpático de propriedade de um alfacinha (que é o apelido dos lisboetas, fui descobrir) chamado José Luiz - ou Zé, como prefere. Não é rico como alguns de seus patrícios, mas é um empresário muito orgulhoso que se apraz em receber conterrâneos e demais lusófonos em seu estabelecimento.

Fazem parte do segundo grupo todos, ou praticamente todos, os zeladores dos edifícios da cidade, aqui chamados de gardiens. Não conheço associação mais perfeita entre uma nacionalidade e uma profissão; nem os padeiros do Brasil, nem os coreanos que vendem material eletrônico, nada. Não será verdade que todos os portugueses de Paris são zeladores - como prova o parágrafo anterior -, mas o inverso, se não for verdadeiro, é quase.

O prédio em que moro não foge à regra. Cuida de manter a ordem no edifício um casal já de certa idade: um senhor sorridente e sua esposa devota. Senhor e senhora M., chamam-se, segundo o costume francês, pois aqui jamais se usa o primeiro nome, a não ser entre amigos. Seu M. fez uma festa ao ser informado de que chegara um brasileiro à vizinhança. Veio ter comigo e deu-me os parabéns. Retruquei-lhe que não fiz grande esforço para obter essa nacionalidade, apenas aconteceu, foi um acaso geográfico. É claro que me orgulho do meu país, ou ao menos da sua parte boa, que de sublime compensa nossa tragédia quotidiana. A simpatia que nossa pátria suscita nos estrangeiros (não apenas nos portugueses; todo mundo gosta de nós, menos os argentinos) é tanta que a nacionalidade virou motivo de congratulações. Que bom, pior seria o inverso.

Mais que sorridente, seu M. é um espécime fabuloso. É ele o homem que dá o título a este texto. Seu francês é sofrível. Expressa-se com dificuldade, pois transferiu-se para a França numa idade em que o aprendizado de línguas já não é tão automático como na juventude, e transferido jamais teve tempo de estudar o idioma. Mais precisava dedicar-se ao trabalho. Porém, as três décadas em que está fora de seu país natal foram suficientes para lhe tornar penoso o emprego do português de seus pais. Contra tudo que jamais me explicaram sobre neurolingüística, M. tem dificuldade em formular frases no idioma que aprendeu na infância, perdeu grande parte de seu vocabulário básico e fala com um carregado sotaque francês - mesmo que essa língua tampouco esteja inteiramente em seu poder.

M. tem conhecimentos de dois idiomas, mas não é natural em nenhum dos dois. M. é um homem sem idioma. Eu creria isso impossível: não é. M. vive perfeitamente, tem sua casa, sua esposa, filhos que já foram constituir suas próprias famílias em outros apartamentos, talvez na França, talvez em Portugal, talvez alhures. No entanto, como se comunica com a família o homem sem idioma? Como explicou ele aos filhos as noções fundamentais da vida, a ética, a higiene, a educação, a ambição? Que palavras usa o homem sem idioma para conversar com a esposa após o jantar? Como se desenvolve seu pensamento quando, nas tardes de domingo, passeia pelas calçadas a fumar seu cachimbo?

Minha pátria, disse Fernando Pessoa, é minha língua. Caetano Veloso adora citar essa máxima. Qual é, pois, a pátria do homem sem idioma? M. é português, vive na França, possui a cidadania e talvez um passaporte europeu. Mas será ele um apátrida? Senão do ponto de vista jurídico, ao menos do lingüístico? Mais importante: M. sente falta de uma pátria?

Os assuntos do idioma não interessam apenas a lingüistas, jornalistas, poetas e críticos. É uma questão filosófica fundamental, sobretudo a partir das últimas décadas do século retrasado. A língua, dirá um Wittgenstein, é o cerne da nossa compreensão do mundo. Como toda percepção, é um código; mas é o código dos códigos, aquele que permite ao sujeito transformar o turbilhão de sensações recebidas do entorno em um sistema coerente e compreensível que lhe permita tomar decisões racionais e se relacionar com seus semelhantes. A frase é confusa, mas significa basicamente que, sem um idioma bem dominado, é difícil dar sentido à realidade.

Como fica M. nessa história? Se por um lado é verdade que ele nunca mais dominará uma língua ao ponto de passar ao grupo dos imigrantes enriquecidos, por outro não é menos certo que ele consegue realizar suas tarefas sem grandes dificuldades. Criou os filhos, administra um prédio, toca sua vida. Passa avisos aos moradores e instruções aos prestadores de serviços. Religioso, M. ora regularmente. Mas em qual língua?

Que falta lhe faz a fluência das palavras? O homem sem idioma é um personagem fascinante. Para mim, pelo menos. Às vezes acompanho pela janela enquanto ele rega as plantas ou mantém suas conversas algo confusas com pessoas que passam pela rua. É um bom homem, todos simpatizam com ele na vizinhança. Não sei se alguém mais se preocupa com o fato de que esse bom homem não tem idioma. Duvido. Sei que ele não dá importância: normalmente, está longe de ser um empecilho para qualquer coisa em sua vida. A não ser quando vem falar comigo ou minha mulher: não entendemos seu francês, nem ele nosso português. Fora isso, parece-me que eu estou mais preocupado com sua capacidade lingüística do que ele próprio.

27.1.07

"Tá legal, eu aceito o argumento."

Não paguei royalties ao Paulinho da Viola pela frase do título, mas acho que ele não vai querer me processar porque, afinal de contas, não tem muito o que tirar da minha conta bancária. De qualquer maneira, ela cabe como uma luva. Há meses venho ouvido de um velho blogueiro, desses que já blogavam antes dos blogs (porque blogavam em espírito, qual trovadores e saltimbancos) uma sugestão que, a bem dizer, soava como ordem. Dizia ele, em sua voz grave e pausada: "Paulo, meu menino(e soltava anéis de fumaça com seu cachimbo de barro), está na hora de você criar uma lista com os e-mails das pessoas que já visitaram seu blog, para que você possa avisá-las de cada novo post! Ouça o que digo - e vá em paz!"

Bem que eu seguia seus conselhos, mas apenas em parte: ia em paz, sempre em paz e sempre seguindo algo, fosse um instinto, um faro, um desejo, uma mudança na direção do vento. Mas tomei recentemente a decisão de obedecer o homem; não foi difícil tomar essa decisão: bastou que um dia ele se cansasse de dar conselhos e se resolvesse a me persuadir com um bom safanão na orelha. Safanão tomado, atitude a tomar: estou desenvolvendo a tal da lista.

E cá vai este post, anunciando a criação da suma de e-mails e convidando a todos que por acaso caírem aqui a me mandarem seus respectivos endereços para o osrevni@gmail.com, se tiverem, naturalmente, vontade de receber meus eventuais avisos (não serão muito freqüentes, prometo). Depois, se quiser sair, é só avisar. Prometo riscar o nome do compêndio sem precisar de safanão, porque um só já basta.

Saravá!

21.1.07

O que falta à França é um rei!


(Alguém sabe como colocar itálicos nesse programa???)

Nada é mais esperado que o domingo para quem vive em Paris. Ficar em casa com a cara enfiada nos livros durante a semana é proveitoso mas, em bom português, é chato. O fim de semana, quando não chove, é tempo de sair e passear pelos boulevards, pelos quais, pelos museus, parques e cemitérios. Para alguém que veio de São Paulo, como eu, isso é fabuloso, realmente uma dádiva dos céus.

Durante meu passeio de hoje, pensei que fosse escrever sobre os passarinhos que comeram migalhas da minha mão no Parc Monceau, sobre os livros antigos nas tradicionais banquinhas da beira do Sena, sobre os brasileiros que conheci num pequeno café ao lado da Notre Dame, um café de cinco mesas das quais três eram ocupadas por paulistas, cariocas, niteroienses e mineiros. Como não podia deixar de ser, os três grupos de pessoas até então desconhecidas saíram do local como velhos amigos, trocando telefones e abraços. (Eu disse que era um café para dar um certo charme, mas na verdade era uma lanchonete, americana ainda por cima, mas era o lugar mais barato para comer...)

Depois, achei que escreveria sobre os gigantescos nenúfares de Monet, que desejava há tempos ver e finalmente vi, exibidos na antiga estufa que virou museu, a Orangerie, na entrada do jardim das Tulherias. Ou sobre os vários quadros fabulosos expostos no mesmo museu: Picasso, Matisse, Renoir... Ou ainda sobre a vista da praça da Concórdia, com vários dos pontos turísticos mais famosos de Paris bem distribuídos diante do olhar. Por fim, achei que escreveria sobre a monumental igreja da Madeleine, em que não havia ainda entrado, embora numa noite de frio, em busca de uma determinada rua, já a tenha circulado em silenciosa admiração.

Mas não vou escrever sobre nada disso, porque o interesse de todas essas coisas deliciosas acabou ofuscado por uma dessas coisas que só acontecem em cidades como Paris (uma cidade "outdoors", diriam os brasileiros anglófilos). Diante das escadarias da Madeleine, dei com uma boa dezena de bandeiras de fundo azul, portando a flor-de-lis que durante cerca de um milênio simbolizou a monarquia francesa.

Pouco mais de duzentas pessoas estavam reunidas, preparando-se para uma procissão acompanhada por fotógrafos e policias. Dois rapazes distribuíam panfletos. Um continha letras de canções, o outro explicações sobre o evento. Para meu grande espanto, era uma manifestação de monarquistas, celebrando os 214 anos da execução (ou cruel assassinato, como eles preferem) de Luís XVI, na praça da Concórdia (a praça que eles ousam chamar "da concórdia", segundo as palavras de um dos porta-vozes).

O evento é anual. A cada 21 de janeiro (a execução foi nesse dia, em 1793), o cortejo parte da entrada da igreja da Madeleine, onde o rei foi enterrado, e segue para uma praça batizada em sua homenagem, nos fundos de um templo de nome pouco dúbio: "Capela expiatória". Durante todo o percurso, munidos das bandeiras e de tochas que remetem um pouco à Ku Klux Klan, os restauradores cantam hinos de levada marcial e temas sangrentos: "Nós abateremos Robespierre, o odioso tirano, rolando esse lobo sanguinário em seu próprio sangue!" (Robespierre, por sinal, foi abatido pelos próprios revolucionários, isso há mais de 200 anos).

No meio do caminho, um músico que sobe as escadas do metrô segurando seu trompete dá com o orgulhoso grupo que segue a avenida cercado de curiosos (a maioria sorrindo um pouco, é verdade). Gaiato, decide levar o instrumento à boca e tocar a melodia da Marselhesa, canção revolucionária igualmente sangrenta ("Às armas, cidadãos! Formai vossos batalhões! Marchemos, marchemos! Que um sangue impuro abasteça nossos armazéns!") que, no final das contas, virou hino da França republicana. Para quê? O rapaz de barba que encabeça a procissão enche os pulmões e berra mais alto ainda os versos monarquistas ao megafone, tornando a melodia incompreensível. O policial que organiza o cordão vai até o músico e lhe pede gentilmente que não cause problemas. Talvez a situação já seja suficientemente insólita por si só. O músico assente, não quer confusão com a polícia e já deu seu recado. Sob olhares agressivos, parte com um ar zombeteiro.

Debelado o incidente e chegados à praça, os admiradores dos Bourbon ouvem alguns discursos (muito divertidos, por sinal), e reivindicam a instalação de uma placa que lamente a instauração da República. É um objetivo difícil, tratando-se de uma república particularmente orgulhosa de sua própria instauração. Mas eles rejeitam essa nefasta instituição e repetem a frase de Charles Maurras, antigo jornalista monarquista: "Não se trata de restaurar a monarquia na França, mas de restaurar a França pela monarquia".

Sim, a procissão não é apenas uma homenagem a um personagem histórico. É uma luta política. A França, para eles, precisa voltar às suas tradições e derrubar a república que, a propósito, é responsável por todos os males dos tempos contemporâneos: "o perigo de desaparição da França no turbilhão euro-mundialista, a ameaça dos impérios anglo-americano (?!) e turco-islâmico (?!), a sedição comunitarista (!), a desindustrialização...", diz o panfleto.

Tudo bem, eu sei que é necessário ter respeito por todas as correntes e opiniões, e tal. Mas tem coisas que são engraçadas demais para serem levadas a sério. A grande vantagem da liberdade de opinião sobre a censura é que todo tipo de disparate pode ser levado a público e expor-se ao ridículo. Idéias como essa, se ficassem escondidas, poderiam crescer até se tornarem ameaçadoras. Mas com liberdade de expressão, elas se expõem ao riso.

Quer dizer então que a República é responsável pela desindustrialização da França? Muito interessante, mas como a industrialização da França começou justamente em seguida à derrubada da monarquia Bourbon, o saldo ainda é positivo. Mas de uma certa forma eles têm razão. A economia francesa ia muito bem sob Luís XVI; a fome era um detalhe, a inflação, quase insignificante, e os Estados Gerais que precipitaram a revolução foram convocados não porque o país estivesse caindo aos pedaços, mas porque o rei teve uma súbita vontade de rever alguns velhos inimigos. Além disso, Espanha, Suécia e Reino Unido, que mantiveram suas orgulhosas monarquias, não correm riscos como esses: não têm imigração, desemprego ou campanhas eleitorais ridículas, não estão ameaçadas pelo tal império turco (talvez seja aquele que ruiu depois da Primeira Guerra Mundial, sei lá), seguem de vento em popa, com Deus e o Rei.

Eu gostaria agora de salientar algumas passagens engraçadas do discurso que ouvi, ao lado de uma moça francesa que a muito custo tentava segurar o riso (deveria ser republicana, tataraneta de Danton, vai saber). O senhor que falava, num francês impecável, talvez seja o "príncipe herdeiro" Jean, duque de Vendôme e maior interessado numa eventual restauração. Não tive coragem de perguntar. Dizia ele que o rei, coitado, era um homem "bom, honesto, magnânimo, amado por seu povo, consciente em detalhes dos sofrimentos dos franceses mais humildes. Era um homem ligado pelo sangue a cada ínfimo elemento de sua pátria". Fiquei com a pulga atrás da orelha. Se o povo o amava tanto, por que se rebelou a ponto de decapitar seu amado monarca? Por que os soldados que deveriam defendê-lo se juntaram aos revoltosos? Freud explica. Talvez seja a maldita propaganda iluminista (sim, o Iluminismo e a razão humana foram alvos de inúmeros ataques durante o discurso). E se o rei conhecia tão bem seu querido povo, por que não evitou a revolução? Aliás, por que, ao ser informado da queda da Bastilha durante uma de suas intermináveis caçadas em Versalhes, reagiu ele dando de ombros, dizendo: "Ora, mais uma revolta"? Vai ver não era um bom dia. Os faisões deviam estar difíceis de acertar.

Mais para frente, criticando o circo em que as eleições se transformaram na França, aliás em todo o mundo, disse o bom velhinho que discursava: "a diferença entre os reis e os políticos é que os reis estão com o país e o povo em todos os momentos, nos bons como nos ruins, sob céu claro ou tempestade. Luís XVI foi um rei que jamais virou as costas para a França ou os franceses". Para deixar bem claro: ele se referia ao mesmo Luís XVI decapitado como traidor após ser preso tentando fugir da França disfarçado de mendigo (reconheceram-no pelas suas meias, bordadas com aquela flor-de-lis de que já falei). Ao fugir, ou tentar, não apenas ele traía a França e os franceses: traía também os demais nobres que passavam mais bocados sob as baionetas do terror. Ademais, várias vezes foi feita referência a Luís XVI como "nosso último rei"... mas houve outros depois dele: por sinal, ele não foi nem o último rei Bourbon...

Brincadeiras à parte: não é incrível como se pode dizer qualquer coisa, que se os ouvintes estiverem inclinados a acreditar aquilo soará como a mais evidente verdade? Eu diria que não existe liberdade de opinião: ou melhor, ela sempre existe de um jeito ou de outro. Opinião, todo mundo tem e cada um tem a sua. O que existe é liberdade de debate. Quando cada um tem o direito de expressar suas idéias e a obrigação de ouvir com atenção as idéias dos demais, sem tapar os ouvidos.

Também é interessante notar as fisionomias dos participantes. Há os idosos, provavelmente todos moradores do mesmo bairro da passeata: o 8ème, um dos arrondissements mais caros de Paris. Mas há também os jovens, que usam jaquetas de couro, calças jeans apertadas, lenços ao pescoço e cabelo raspado (ou quase). A descrição é clara. Muitos ali são skinheads, uma figura não tão rara quanto pode parecer na França. São garotos que não conseguem encontrar emprego mas, sem conseguir nem tentar entender os motivos para isso, saem culpando a tudo e a todos, desde os imigrantes (que podem limpar latrinas, mas dificilmente comandam empresas) até a República. Jamais culpam a burocracia, as instituições ultrapassadas ou o apoio a agricultores ineficientes, claro. Porque esses são franceses tão puros quanto eles mesmos.

Por fim, para quem quiser se divertir um pouco, há um vídeo na internet feito especialmente para a ocasião: http://www.dailymotion.com/video/xx38c_21-janvier-cortege-ba/

Divirtam-se.

19.1.07

Seção versos subcutâneos

....................................................imagem: Victoria Burge

... que andava meio abandonada ...


.............................Aprumado

Há dias não desenho um poema, assim como
há dias não erro o caminho que me
..................................leva
...............................e leva
...............................e traz
.......................da realidade todo dia.

Há dias não escuto dançarem os faunos que se
..................................escondem atrás de
cada fonema, assim como há dias que
tenho os ouvidos atentos apenas para
............................um telefonema com
algum negócio que possa explorar.

Não tenho mais apanhado
o ônibus errado, nem
confundido os botões da
........................camisa ou
Estragado o nó da
........................gravata.

Despi-me de minhas distrações tanto
quanto das minhas metáforas.
Aprumei-me. Corrigi-me. Posso
emular-me uma vida normal.

9.1.07

País de loucos e de livros



Além de apertados, os apartamentos de Paris são, em geral, cobertos de livros. Principalmente, claro, os das pessoas de mais idade. Paredes e paredes de prateleiras apinhadas, nos quartos, na sala, nos corredores. Toda essa literatura, para ser sincero, deixa nos ares um ar de sujeira, um clima impregnado, claro, de cultura, mas também de pó e mofo. O cheiro de papel velho é inconfundível e o tom amarelado das páginas entortadas causa um desconforto mesmo no maior dos amantes da palavra impressa. Mas é um charme.

Cultura muita, sim. Por outro lado, também se exala um certo automatismo de leitura, uma riqueza intelectual que parece não servir para outra coisa senão debates aporísticos e enfadonhos no metrô e nos cafés. Mentira... não são sempre enfadonhos, muitas vezes são adoráveis e podem terminar com todos os envolvidos perdendo seus compromissos, como nos botecos da zona sul carioca. De qualquer forma, são sempre sem resolução.

Não me entendam mal: eu gosto. Acharia maravilhoso viver numa casa com livros aos milhares, do chão até o teto, de ficção e teoria, de religião e iconoclastia, do Ocidente e do Oriente, em línguas de todos os troncos e nações. Logo que cheguei em território francês, fiquei hospedado na casa de uma senhora muito simpática e cuja biblioteca corresponde à minha descrição. Era muito agradável, a não ser pelo fato de que atacava minha rinite velha de guerra. Como valia a pena!

Só com o tempo fui perceber que essa era a regra na cidade. Às vezes é difícil se esgueirar pelos corredores, ocupados de ambos os lados por livros e livros, intocados quem sabe desde os movimentos estudantis de 68. Fascinante. Os franceses realmente são os pais da conversa fiada, mas o interessante é que eles são capazes de fazê-la girar em torno de temas profundos, como a imortalidade da alma ou a democracia representativa.

Qual é a diferença, portanto, da conversa fiada no Quartier Latin ou num boteco do Flamengo? A rigor, nenhuma. Mas não deixa de ser impactante que, ao invés de reclamar que "esse Lula é um baita dum mentiroso", o francês da rive gauche diga que Nicolas Sarkozy "pretende submeter o trabalhador francês ao estigma da precariedade burguesa em nome da oligarquia financeira global". Não vai impedir que o primeiro-ministro faça o que quiser, mas é bonito. E eventualmente, apenas eventualmente, dá algum resultado prático, como na quebradeira comandada pelos estudantes em 2005.

Um exemplo anedótico: os mendigos que mais recebem esmola na França são aqueles capazes de fazer o discurso mais estruturado a respeito da própria miséria. Um sujeito mal-ajambrado com uma placa que diz "tenho fome" ganhará um euro aqui, outro ali. Já o pedinte apresentável, alinhado, que invade um vagão do metrô declamando uma dissertação formalmente impecável sobre as dificuldades por que sua família passa, esse periga enriquecer. Na lógica francesa, ele merece!

Sim, Paris é cheia de mendigos. Aparentemente, toda essa cultura não foi capaz de enriquecer o país. A principal diferença para os mendigos do Brasil é que aqui são todos adultos, mas isso é tema para outro dia. Os mendigos parisienses são sujos, incômodos e mal-cheirosos como em qualquer outro lugar. Mas nesta cinzenta Cidade-luz, eles são cultos. Pedem cigarros, e se você não fuma, cuidado, pode ser submetido nos minutos seguintes a uma argumentação profunda sobre os benefícios do tabagismo. Não estou brincando, estou relatando. Aconteceu comigo.

Mais que mendigos, a capital deste hexágono gaulês é cheia de loucos. Esses doidos de rua, que cantam, dizem coisas sem nexo, tiram a roupa, dançam para músicas imaginárias. Eles estão por toda parte, mas gostam mesmo é do metrô (como os mendigos e, ora, como todo mundo). Interessantes, esses loucos da França: eles têm o hábito de se aproximar das pessoas e, com suas vozes embargadas, comentar a decadência do espírito libertário no país. Tem coisa mais civilizada do que discutir o ethos nacional com um mendigo europeu? Não, não tem.

Com o quê, os loucos também são cultos. Ou será essa cultura toda que os deixa loucos? Pouco a pouco, começo a me convencer disso. Aqui, mesmo os sãos parecem um pouco loucos. Sem dúvida, os livros é que os enlouquecem. Céus! A leitura enlouquece. A França é a maior prova. País de loucos e de livros. Isso me preocupa. Eu que leio muito, e com prazer. Desde que cheguei, tenho lido até mais do que antes. Estarei ficando louco? Não duvido. Até agora, a única loucura comprovada que cometi foi começar a escrever um blog com um pseudônimo por sobrenome. Mas isso foi ainda em São Paulo. O pior ainda está por vir.

PS: Gostaria de terminar com um pouco de propaganda, que na verdade será uma piada sem graça, com sua licença. Se é verdade que ler enlouquece, há apenas um antídoto: não olhar para o que se está lendo. Portanto, é necessário, é imperativo, é imprescindível, ler sem olhar.

4.1.07

Se é tempo de resoluções...



Muito bem, as festas passaram e levaram embora 2006 e parte do meu fígado. Hora de recomeçar a vida depois da esbórnia e do dinheiro esbanjado. Dizem que no Brasil o recomeço só vem depois do carnaval. Quanta maldade... Pena que não seja só mais uma intriga da oposição.

Como aqui tudo é ao contrário, as festas de fim de ano caem bem no meio do semestre. Em tese é bom, porque (ainda em tese) os universitários têm tempo de estudar para as provas com que Janeiro nos brinda logo de cara. Qual! Os franceses não são esses Caxias todos que gostamos de pintar quando pensamos nas laudas e laudas que eles perdem em discussões estéreis sobre assuntos desinteressantes. O resultado é o mesmo que seria no Brasil: nos últimos dias antes das provas, gente ensandecida correndo atrás do tempo perdido nas férias.

Meu caso não será muito diferente: aproveitei esse tempinho livre para viajar um pouco, afinal de contas estou na Europa e não quero mofar em Paris, embora ainda falte uma infinidade de coisas para descobrir por aqui mesmo. Assim, pegamos o trem, a patroa e eu, rumo à Alemanha (se ela descobrir que a chamei de patroa, vou dormir no sofá). Só agora estamos de volta, no limiar das provas finais, sobre as quais tanto terrorismo se ouve (assunto para outro post).

Volto dessa viagem cheio de resoluções. Não sei se são resoluções de viagem ou de ano novo, sei apenas que dificilmente seguirei todas; mas se pelo menos der alguma sobrevida a metade, ou uma parte considerável dentre elas, ou, admito, uma ou duas, está bom demais. Já é uma certa evolução.

Com relação à vida como um todo, bom, tenho várias intenções: arrumar um trabalho que me pague regularmente e em euro, ou seja, algo que me permita comprar no supermercado mais do que aquela carne moída congelada de sempre. É evidente que não se pode querer encontrar em Paris um salário capaz de cobrir o aluguel (talvez seja por isso que o Estado paga parte do aluguel de quase todo mundo...). Mas se der para aliviar, já fico contente.

Também quero visitar todos os pontos turísticos/culturais de Paris que deixei de lado por medo do inverno ou da faculdade. O frio, que sempre detestei, agora tiro de letra: já sou capaz de comemorar (onde já se viu) o fato de os termômetros marcarem temperaturas positivas; eu!, que no Brasil lançava imprecações aos céus quando fazia menos de 15oC. Chega de contar os centavos na hora de entrar no museu d'Orsay. Matisse, Cézanne e Picasso valem o preço, principalmente pelo fato de que pelos próximos poucos meses ainda pago um pouco mais barato no ingresso.

Depois, quero evoluir um pouco na carreira acadêmica, que está um pouco aquém do que poderia, como recentemente descobri. Mas isso, além de ser assunto para outro post, não interessa muito a ninguém além de mim mesmo (se é que alguma das outras coisas que escrevo interessam a alguém).

Por fim, quero reatar algumas amizades que acabei perdendo por causa da distância. Hoje, com o Skype e outras fabulosas invenções cibernéticas, não há desculpa.

Mas o ponto em que eu queria chegar são as resoluções "bloguísticas", afinal de contas é esse o universo que me une a quem quer que tenha acidentalmente vindo me ler. Vamos a ela:

1) Voltar a escrever com regularidade. Não precisa ser todo dia, mas pelo menos umas três vezes por semana. Um pouco de disciplina não faz mal a ninguém, embora um excesso seja insuportável.

2) Recuperar o leque de assuntos. Por exemplo, a seção Gemäldegalerie, que não recebe atenção há tempos, mas tem material acumulado. Visitei não poucos museus nesse meio-tempo, anotei nomes de certos pintores que desconhecia mas adorei, e outros de cuja existência tinha esquecido. Gostaria de comentar alguns, pelo prazer de compartilhar meus pontos de vista, como fazia nos tempos áureos deste blog. Tem também a seção diálogos, a seção "leia, não veja", a seção "pipoca no escuro" e tantas outras, abandonadas ao ponto de se apagarem da minha memória.

3) Dedicar-me a um certo anedotário sobre os franceses. Tenho observado várias pequenas coisas divertidas, que merecem menção. Nada de muito opiniativo: nem só de pão vive o homem, mas tampouco só de consciência crítica. Se eu me esquecer disso, por favor alguém me cobre.

4) Essa é a mais importante: quero escrever uma série de posts sobre este minha última viagem. Não um único texto com todo o percurso, mas um para cada. Com um curto histórico das regiões, dicas de coisas para fazer, opiniões sobre as cidades e assim por diante. Tirei algumas fotos, nada de muito maravilhoso, mas elas existem e podem ser úteis, por que não? Só não me cobrem, façam o favor, um grande domínio dessa arte: não sou fotógrafo, só diletante (como em quase todas as outras áreas).

Eis aí um resumo das minhas resoluções para 2007. Ou para o pós-viagem. Mas agora tenho que limpar toda a casa, que deixei vergonhosa antes de viajar (foi corrido, mereço um desconto) e enfiar a cara nos livros para lembrar tudo que tinha aprendido no semestre mas, cáspite, esqueci durante as curtas férias. Desejem-me boa sorte.

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