31.5.06

Seção nova: um dedo de prosa

A imprensa traz hoje uma pilha de coisas interessantíssimas a se comentar. Protestos estudantis no Chile; crise nas universidades do Rio de Janeiro; no mesmo Estado, uma governadora diabólica cortando em 50% a verba dos museus; circo armado, pronto para o julgamento de Mlle. Baronesa Vermelha (e bota vermelho nisso).

Mas hoje não vai ser possível comentar nada disso: embora a vontade seja muita, o tempo é escasso, diria até nulo. Então vou ter que recorrer ao meu velho arquivo de escritos e mandar um texto. Mas desta vez, não será em verso, que já estou cheio deles: vamos à prosa. Se não gostarem, posso voltar ao de sempre. (Mas não vou.)

A árvore do lago

O sítio do meu avô não existe mais. Ele, muito menos. Foi embora num dia, o sítio poucos depois. Ambos deixaram saudade; muita. Uma saudade que me apertou demais naqueles dias de infância, e depois não quis me largar. Mudou de cara, de sentido, tudo; mas sempre me acompanhou e hoje mesmo está aqui do meu lado, sentada com naturalidade, muitas vezes ditando as minhas confidências.

Meu avô e seu sítio foram algo como a tábua de salvação da minha infância. Ele era uma espécie de herói: o homem inabalável, simples, um sábio ao seu jeito. Inquestionável porque não havia o que questionar. Sua propriedade, que não ocupava mais que um cantinho de terra entre fazendas muito maiores, riquíssimas, era por outro lado meu refúgio, meu reino, meu feudo. Lá, eu não era um garoto tímido e fracote, como em todos os meus duros ambientes urbanos. Lá, eu era o rei; o senhor das matas. Aquele cantinho de terra era o feudo interminável onde eu tudo podia. Onde nada me era negado. Lá, eu mandava de verdade.

A morte de vovô foi tranqüila. Ele já estava para lá de idoso, cheio de complicações de saúde. Ia para o seu velho sítio e ficava horas sentado na varanda com o olhar fixo em coisa alguma, sempre coberto com uma manta xadrez fina e puída. Quando eu me aproximava, ou qualquer outra criança, ele sorria e dizia alguma coisa. Mas eu não entendia. Sua voz já desmanchava, ia se perdendo junto com sua energia. Meu avô se desfez aos poucos, como se estivesse sendo absorvido por aquele chão que ele amava. Ao nos ver, crianças, emocionava-se; eu podia perceber por trás dos seus olhos mareados o prazer que nós lhe proporcionávamos.

Ninguém sabia o que fazer com a propriedade depois do sepultamento. Meus pais e meus tios discutiram muito. Ficaram semanas sem trocar palavra. Abandonaram meus domínios, aos quais eu só tinha acesso se me levassem de automóvel. O lugar tinha se valorizado. A cidade cresceu justo naquela direção. Uma companhia, dessas especializadas em retalhar a terra, fez uma proposta. O sítio morreu e aquele espaço, delimitado por engenheiros e satélites, ganhou outro nome.

O que ficou para mim foi isso: aquelas tardes, carrapatos, os cipós que viravam chicote nas brincadeiras. Minha solidão, que eu saboreava pelas narinas e pelos poros. Quantas vezes me queimei de sol, braços abertos nos gramados do campo! Quantas vezes não levei bronca da minha mãe por aparecer todo vermelho ao final do sol... e depois ia para a cama ardido, incomodado, sem encontrar posição. Era a minha alegria. Um prazer talvez masoquista, mas era meu e eu o saboreava.

É claro, porém, que eu tinha meus segredos. O que ainda resiste na minha cabeça de mais vivo é a árvore do lago, que às vezes, na confusão do meu universo juvenil, se tornava o lago da árvore. Longas horas eu passei lá embaixo, lá no fundo, onde ninguém se dava ao trabalho de ir. Onde ninguém achava que valia a pena chegar. Só eu.

Descendo por uma alameda esburacada, eu diria esquecida, chegava-se a um velho portão de ferro fundido, todo trabalhado em volutas e setas. Enferrujado por inteiro, aquele portão nem cadeado tinha e rangia quando um esforço monumental conseguia abri-lo. Jamais perguntei ao meu avô sobre ele, mas se perguntasse, sei que ele responderia que estava ali desde o tempo do Onça. Era a expressão que ele usava. Eu mesmo gostava de imaginar que estaria naquele mesmo lugar há “zilhões” de anos. Hoje, lembrando, não duvido de que fosse um resquício da época do Império.

Do outro lado daquele portão de aparência algo mágica na fertilidade da minha imaginação, estava-se em outro mundo. Pensando bem, nem sei mais se aquele território ainda fazia parte das terras de meu avô. Chego até a duvidar de que tenha existido de fato: era algo tão discrepante do resto do sítio que já começo a desconfiar de que foi um sonho recorrente e muito real. De fato, não posso dizer. Sei apenas que aqui dentro ele existe ainda, e isso basta para que sua realidade me seja indubitável.

Seguindo o caminho do portão, chegava-se a um ponto onde bastava afastar os galhos para vislumbrar uma paisagem que na minha imaginação era um recorte da pré-história. Uma série de lagos dispostos irregularmente, gansos nadando em bandos, do lado de cá um vasto relvado, salpicado de árvores frondosas e, na outra margem daqueles lagos, uma floresta densa e escura, amenizada por manchas alegres de ipês roxos e amarelos. Os quero-queros passeavam pela grama, ciosos de seus ninhos; as rãs pulavam na água deixando marolas. Parecia que o gênero humano jamais chegaria sequer perto dali. Eu me sentia um grande explorador. Quando finalmente me dei conta de que num raio de duzentos metros tudo em volta eram fazendas, plantações e tratores, a descoberta me pareceu tão inverossímil que eu não quis acreditar. Não quis me privar do meu enclave, do meu triunfo.

Ali escorreram quentes tantas boas horas da minha vida. Foi naquele lugar que plantei e cultivei as sementes da minha esperança. Por isso aquele lugar é ainda hoje tão especial dentro de mim. Graças àquela relva onde eu corria e rolava sem motivação, sem nada, pude um dia ser um homem. A energia que alimenta minha vida adulta, sim, vem daquela época brilhante, das folhas que brigavam com o vento morno. A vida urbana me empurrava para baixo como um grande pé a me esmagar o cocoruto; mas aquelas poucas centenas de metros faziam de mim um grande rei, um ditador. De quê? Daquela natureza? Não. Dos fantasmas, demônios e seres imaginários que povoavam a minha cabeça e só podiam se afastar quando eu estivesse exatamente naquele ponto do nosso planeta.

A árvore que me serviu para batizar aquele lugar era ao mesmo tempo o torreão do meu castelo. Debaixo dela eu me sentava para descansar depois de um dia inteiro despachando com os meus súditos do outro mundo. Ficava à beira do lago mais elevado, de cuja queda saía a água que ia alimentar todos os demais. Era também, ao meu ver, a árvore mais alta da região. Mas tinha um detalhe: ela estava morta.

Não era mais que um grande tronco em pé. Bifurcado no alto, sua madeira clara e desfolhada fazia contraste com o céu azul, e a imagem daquela diferença era de uma eloqüência impossível de traduzir no papel. Um pilar firme de resistência, era como eu via aquela árvore morta, elevando seu desafio aos céus, como quem admitisse a derrota da vida, mas se recusasse ao desaparecimento da matéria. Aquele objeto que bem poderia ter sido convertido em lenha tinha o ar de quem gritasse: sou árvore! E ai de quem ousasse negar.

Por isso me apeguei àquele mártir vegetal. Ela não dava sombra. Dois metros adiante havia outra, viva, viçosa, até mais próxima da água. No gramado havia dúzias. Mas aquela, sem vida, sem verde, sem seiva, era minha amiga, minha camarada. Talvez porque quando estava longe eu me sentisse tão oco quanto ela. Talvez porque nossa relação fosse simbiótica: ela me preenchia, enquanto eu lhe retribuía com uma vida. Nela entalhei meu nome. Seu nome impus a todas as demais árvores e formas de vida do entorno. E hoje tenho plena consciência de como ela se increveu inteira dentro de mim; minha vida está orientada para imitar a atitude daquele ser: desafiar os céus. Os homens. Negar a morte, a fraqueza, o vazio. Viver de despeito. A despeito. De tudo. Do que for.

30.5.06

Seção Versos subcutâneos: Coração de fecílimas

Adoro usar palavras que não existem no meio de outras que existem, mas fora de seu sentido usual. Tem gente que torce o nariz, xinga, esperneia... Não posso fazer nada. Por mais que me digam que a poesia é feita de palavras, ninguém consegue me convencer que a essência das palavras preceda sua existência no poema. Não sei nem se o meu idioma vai existir daqui a duzentos anos, por que vou me preocupar com palavras que podem não ter mais sentido amanhã? Prefiro dar sentido a palavras que não existam hoje.

Mas chega de papo furado. Vamos ao que interessa.

Coração de fecílimas

Espreitavas-me?
Me amavas.
Como se o mundo escatalhasse!
Comendo as tílias devoricamente!
E eu, muito mais.
Alentárico
Autofágico
Laboriosa barafunda concupiscente.
Compreendes?
Em mim,
Há algo a mais.
Amescávido.
Talassas! Colossal!
Te exaspera?
Desfalece?
Afú...
Há que condicionar o espírito.

Só pode ser invenção do jornalista (tomara!)

Ontem, no Jornal do Brasil, uma das notícias mais engraçadas que já li. Quer dizer... engraçado não... isto é... terrível... mas é engraçado... não sei definir...

Ou seja: como diria Pirandello, seria cômico, se não fosse trágico.

Aparentemente, o famoso PCC de SP, aliado do CV do RJ (aquele que é inimigo do TC, ou 3C, do ADA e do IDI), agora tem dois... uh... concorrentes no... uh... mercado. Um se chama LCD e é meio obscuro e o outro agora é o TCC (eu já fiz um TCC, não sabia que era tão perigoso). Acertou quem chutou o significado da sigla como sendo Terceiro Comando da Capital. E acertou quem fez a associação com o Terceiro Comando carioca.

O que tem de engraçado nisso? Nada.

Prossigamos com a transcrição da reportagem: aparentemente, dois ex-subordinados do famoso Marcola, líder do PCC, tiveram uma discordância estratégica em relação ao futuro do grupo. Aparentemente, eles acreditavam que o PCC deveria aterrorizar a sociedade para conseguir seus objetivos (a princípio, a melhora de condições nas prisões etc e tal, mas vai saber). O Marcola, por outro lado, preferia concentrar as ações nos próprios presídios e nas atividades mais lucrativas do grupo (que não têm nada a ver com as condições de vida dentro das cadeias).

Resultado, os dois dissidentes juntaram um pequeno grupo e formaram um outro núcleo. Uma coisa leva a outra: começou uma guerra entre criminosos, como de hábito. Aparentemente, os dissidentes conseguiram assassinar a ex-mulher do Marcola, entre outras ações violentas.

O que tem de engraçado nisso?

Nada.

A parte engraçada começa agora. Preocupado com as tensões crescentes, aparentemente o governo estadual resolveu transferir os presos dissidentes, mantendo-os longe do núcleo central do PCC. Muito bem pensado. Mas para onde eles foram transferidos? Para uma cadeia de presos não vinculados a facções. Mil e tantos indivíduos, digamos assim, virgens. Folham em branco. Matéria-prima. Em poucos meses, eram mil e tantos membros do novo grupo (que aparentemente ainda não tinha nome). Mil e tantos sujeitos que começaram a reivindicar e aterrorizar carcereiros e policiais ainda mais que o PCC. Muito inteligente da parte dos nossos governantes.

Mas não pára por aí.

Assustado com o súbito aumento do número de criminosos de alta periculosidade, o governo tomou uma atitude extrema: telefonou para o governo fluminense (é o que diz na matéria, não tenho nada a ver com isso) e pediu ajuda. Resultado?

Sim, meus amigos! Os dois dissidentes foram imediatamente transferidos para o complexo penitenciário de Bangu. Aquele mesmo onde os presos falam ao telefone no pátio interno, aquele mesmo de onde saem extorsões por telefone, aquele mesmo em que estão "presos" os líderes do... Terceiro Comando.

Viram como é engraçado?

Segundo a reportagem, um dos dissidentes saiu da cadeia aqui declarando: "Agora vou fazer meu doutorado no crime". Que surpresa. Diz a matéria, também, que lá eles conviveram com o Fernandinho Beira-Mar. Isso já acho menos provável, esse aí é de outra facção. Mas o que importa é que eles aprenderam tudo direitinho, ganharam de lambuja fornecedores de armas e drogas e votlaram para São Paulo prontos para o que der e vier. Isso tudo lá pelos idos de 2003.

E ainda tem gente que fica surpreso que sejamos reféns da violência. Ah, sim, mas esqueci: a culpa é dos "direitos humanos que são direitos de bandidos". Claro.

29.5.06

Seção Versos subcutâneos: Descobertas

Para não me acusarem de negligenciar a parte literária do blog. Este é um pequeno poema que fiz em homenagem aos nossos filósofos e cientistas que desvendam os segredos do universo; exatamente: aqueles que talvez não devêssemos desvendar. Ou deveríamos?

Descobertas

Primeiro descobrimos que a Terra
Não está no centro do Universo;
Que giramos em torno do Sol;
Que somos do terceiro planeta.

Depois, as pesquisas revelaram
Como o Sol está longe do centro;
E que a nossa existência é um acaso;
E que não tem um centro o Universo.

O que aprendemos?
Que morremos.
Não valemos nada.

Qual foi nossa perda?
Nossa vida.
A mente e os mitos.

Seção Pipoca no Escuro: Como atingir seu sonho, segundo O Homem que Copiava

Fim-de-semana passado em um delicioso sítio do interior, a menos de cem quilômetros da praça da Sé. Um lugar onde ver estrelas à noite não dá manchete no dia seguinte, tampouco ser mordido por um borrachudo. Tudo tem suas vantagens e desvantagens. E nesses últimos dois dias, as vantagens suplantaram com folga os desconfortos.

Aproveitei para ver um filme que não tive tempo de conferir no cinema: O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, ele mesmo, o de Ilha das Flores. Estrelam Lázaro Ramos (vendo o filme, você jura que o sujeito é gaúcho) e Leandra Leal (idem), com participações de Pedro Cardoso e Luana Piovani (e o Paulo José, no final).

É um filme divertido, com atuações excelentes, um roteiro esperto (cheio de buracos, mas e daí?) e aquela mesma linguagem que o Jorge Furtado usa sempre, funciona mas vai acabar cansando. Vale a pena ver. Mesmo assim, fiquei assustado.

O que me assustou fui eu mesmo. Algumas horas depois de subirem os letreiros, eu continuava achando o filme perfeitamente normal, sem nada a apontar de perturbador. Tomando meu lanche da noite, antes de ir dormir, com calma, rememorando momentos engraçados da trama. Só então me veio o estalo: o filme é uma transcrição perfeita do padrão moral que a minha geração está inaugurando, sem estardalhaço algum. É perturbador, mas não pretende nenhuma denúncia: ao contrário, parece até didático...

Mas vamos ao enredo: um jovem simples, morador de Porto Alegre, trabalha com fotocópias e passa suas noites desenhando e espionando uma vizinha (sim, um voyeur) pela janela de seu quarto. Ele acabe se apaixonando por ela; segue-a pela rua e entra na loja em que ela trabalha. Finge que vai comprar um presente para a mãe, mas não tem dinheiro. O que ele faz? Copia uma nota de R$ 50 em seu trabalho. Ao mesmo tempo, encontra-se num bar com uma amiga e seu pretendente. Ela se diz virgem, pronta a abrir-se para um homem que não fume e, claro, encha sua conta bancária, não pela posse do dinheiro, mas pelo luxo. Só o luxo. O cara, naturalmente, só quer saber de levar a menina para a cama, e para isso finge ser endinheirado.

Com o sucesso da falsificação de dinheiro, o protagonista é levado a copiar mais. Porém, ao descobrir que o pai de sua amada é um tarado que espia a filha pelo buraco da fechadura do banheiro, conclui que precisa de mais dinheiro, e rápido. Como fazer isso? Claro! Roubando um banco! (Na verdade, um carro-forte.) Como fazer isso? Muito simples. O melhor amigo do protagonista é um traficante de drogas. Sim, são melhores amigos, mas nada impede nosso herói de lhe passar uma nota falsificada, com a qual compra um revólver.

Ele combina com o pretendente da amiga o assalto ao carro-forte. A função do sujeito é trazer um carro para a fuga. Naturalmente, o roubo dá mais ou menos errado, e o protagonista, sem sua máscara, acaba atirando na perna de um dos guardas. Na fuga, claro: o malandro não tinha conseguido carro nenhum, e eles são forçados a pegar um ônibus.

Até aí, tudo bem. Eles pretendem fugir, mas além do dinheiro roubado, acabam ganhando na loteria. O pretendente, sem grandes méritos pelo assalto, pode dar à moça o luxo que ela tanto deseja. E ela, de fato, se entrega para ele. O protagonista, por sua vez, pode propor o casamento à amada; sai para jantar com ela e o pai. Chegando no restaurante, que surpresa: o pai é o tal guarda que levou o tiro na perna. Prisão para o sujeito? Nada disso. O pai, como todo mundo, quer a grana. E faz ameaças.

Na saída, o protagonista encontra com o amigo traficante, lembram?, aquele que vendeu a arma em troca de uma nota falsa (como se um traficante não reconhecesse uma nota falsa...). Ele tinha estado preso, mas saiu graças a amigos. E o que ele quer? Vingança? Não. A grana. Resultado: no dia seguinte, os dois grandes amigos de infância se encontram. O protagonista, que de quase retardado, se transformou num gênio do mal, do alto de sua enorme frieza mata aquele com quem tinha passado a infância brincando; sua única companhia nos momentos de solidão. Seu único ombro amigo. Ele se sente mal a ponto de dar de ombros ao ver o cadáver.

Falta resolver o problema do pai da menina. Mas ela mesma aponta a solução: vamos matá-lo, que tal? Genial! Boa idéia! Com o uso de seus vastos conhecimentos de química, os protagonistas, sem grandes considerações morais a respeito de parricídio e outras picuinhas, instalam uma altamente complexa bomba no apartamento do sujeito.

E pronto. Take the money and run. O final é uma idílica cena no alto do Corcovado, em que a mocinha encontra o homem que gostaria que fosse seu pai, e os bravos brasileiros aproveitam ao sol seu dinheiro arduamente conquistado.

Lindo, não? Pois saibam que eu só me dei conta de quão assustador isto pode ser depois de horas em que eu apenas aproveitei as boas piadas do filme. Isso significa que eu estou ficando tão louco quanto as personagens do filme! Será que eu também acredito que, para realizar "seu sonho", as pessoas têm o direito de matar, roubar, atirar, fraudar, espionar, enganar e trair? Será que eu mesmo também acho isso adequado? Será que eu admito essas atitudes como imperativos categóricos morais como diretrizes para a sociedade do futuro? Será que eu, que me considero um indivíduo racional, me encaixo nesse tipo de existência selvagem e cruel?

Filme bom é aquele que faz pensar.

26.5.06

Seção Versos subcutâneos: À sintaxe do nunca

Tenho uma certa birra com os códigos da forma como são. Nós vivemos seus escravos, dependemos deles não apenas para a nossa comunicação, mas até para identificar e interpretar o mundo. Pode ser uma utopia da minha parte, mas sonho em romper com essas amarras. Vai mais uma pilha de versos:

À sintaxe do nunca

Percebi, ao tropeçar numa sentença
Que a sintaxe que hoje vivemos
Será memória e cadáver amanhã.

Como eu poderia seguir meus passos
Sobre cacos de uma verdade fenecida?
Não pude, e por isso cheguei a sofrer.

Hoje, pelo contrário, quero dar vivas
À sintaxe do nunca, flexível como o ar.
Que essa, como o ser, vive sempre.

25.5.06

Seção gastronomia: Filé do Moraes

Oficialmente, o nome do restaurante é Rei do Filé. Mas todo mundo conhece como Moraes, que é mais ou menos um "subtítulo" da casa. Não adianta...

Fui hoje almoçar lá. Não o do centro, que fica diante de uma praça simpática, embora tomada pelos mendigos e caindo aos pedaços. Fui no da Al. Santos, mesmo. Não importa: o principal estava lá: o alho queimado que acompanha aqueles deliciosos croquetes de carne com que o cliente é brindado logo que senta. Uma delícia! Não faço nem questão de comer o prato principal depois de espargir a carne moída com aquele maná cor-de-terra.

Antes, podia-se pedir quantas vezes se quisesse, que eles trariam mais alho. Parece que as pessoas não resistiam e abusavam do direito de comê-lo. Pena. A vantagem é que diminui a probabilidade de ter uma indigestão pelo excesso... Hoje, temos que nos contentar com uma quantidade limitada.

Claro: nem só de alho se faz um autodenominado Rei do Filé. Talvez não seja o melhor filé de São Paulo, mas certamente é um dos melhores. Para quem não está disposto a meter a mão no bolso, o prato executivo que está na última página do cardápio oferece algumas opções bem simpáticas a R$ 19 (são 18,90, mas vamos deixar de cretinices...).

No centro, durante a noite, boêmios e artistas conversam em voz alta enquanto os garçons correm de um lado para o outro desviando-se dos braços mais exaltados que gesticulam em meio a discursos políticos. Na Al. Santos, durante a semana, engravatados almoçam com seus copinhos de chope. No centro, os almoços de final-de-semana ainda contam com aquelas famílias de pessoas mais velhas, que curtiam São Paulo no tempo em que isto aqui era uma cidade. Dá uma certa nostalgia.

24.5.06

Seção Gemäldegalerie: o ocultismo de Kupka

Sei que negligenciei a seção Gemäldegalerie durante uma semana inteira, mas tenho uma boa desculpa. František Kupka (ou Frank) (1871-1957) mudou tanto de estilo ao longo da vida que é difícil escolher um quadro representativo, ao contrário dos representantes anteriores desta seção. Mais conhecido pelos seus quadros abstratos e geométricos, o pintor checo (naquele tempo seu país pertencia ao império Austro-Húngaro) teve também uma fase ocultista (o interesse nunca o abandonou), um período anarquista, que refletiu em alguns de seus trabalhos, uma certa queda pelo expressionismo e, finalmente, realizou também trabalhos de ilustração pra garantir um prato de comida aqui e ali.

Então como escolher uma obra? Fui apresentado a sua produção na visita a um museu que tinha uma discreta exposição dedicada a ele. Fiquei muito impressionado; as obras não eram aquelas que o fizeram mais notório, as abstratas da última fase de sua carreira. Ao contrário, eram obras escuras, misteriosas, perturbadoras. É a parcela do trabalho de Kupka que mais me agrada. Decidi colocar uma gravura que lembra aquelas que vi no museu (não me recordo se a que escolhi fazia parte da exposiçaõ ou não). Esta, "Resistência ou O Ídolo Negro", que encontrei pela internet, remete imediatamente á simbologia de sua fase ocultista. Esfinges, estrelas, um caminho que se perde no horizonte, sem destino certo. Como a vida, por que não? Como a trajetória do Espírito, talvez. A desvendar-se; por enquanto, são apenas trevas.

Mais tarde, vi também um auto-retrato seu. Achei igualmente marcante: a pouca luz que entra pela janela, como numa tarde de outono, ilumina suas costas, mas não seu rosto. A pouca expressão parece demonstrar um certo enfado, um desconforto em estar sendo retratado, o que poderia ser absolutamente natural, não fosse o fato de é um auto-retrato. Nós podemos vê-lo trabalhando no primeiro esboço dessa tela, como se fôssemos o espelho da sua arte. Kupka é magro, cadavérico, famélico. Eis um auto-retrato que não enaltece o artista.

23.5.06

Seção diálogos: Escorchar ou não escorchar?

O cenário é a principal artéria financeira de uma lúgubre e atulhada cidade do terceiro mundo. O dia é frio, chove constantemente desde uma hora indizível da madrugada anterior. No horário de almoço dos inúmeros escritórios que se escondem no interior dos prédios escuros perfilados ao longo da avenida, um mar reluzente de guarda-chuvas negros revolteia sem direção, muito menos sentido. As ondas ficam por conta dos automóveis, cujas rodas passam por cima das poças d'água marrom e ofendem a auto-estima dos pedestres.

Nesse cenário cinzento e pungente, as únicas manchas coloridas são atribuídos aos uniformes de mau gosto, cor-de-laranja e verde, que porta um grupo de jovens sorridentes debaixo de uma marquise. São vendedores de uma financeira, subsidiária de um dos maiores bancos do país. Esses vendedores, como em qualquer outro dia, mesmo os mais alegres e ensolarados, abordam passantes escolhidos a dedo.

Um desses passantes é um jovem profissional da região, atrasado na volta para o trabalho, encharcado de chuva e mal agasalhado. Um gorro escuro está enterrado sobre suas sobrancelhas e suas mãos, dentro de luvas velhas, estão escondidas nos bolsos da casaca.

Eis quem tem a infelicidade de ser abordado por uma moça que parece bem-intencionada.

Moça: Já conhece os serviços da Financeira T?
Rapaz: Já, já.
Moça: Sem comprovação de renda, seus sonhos se realizam!
Rapaz: Puxa, deve ser uma bela financeira, pra realizar os meus sonhos de paz mundial, energia abundante, universalização da educação e do saneamento básico...
Moça: Sem comprovação de renda!
Rapaz: Puxa, como isso é possível?
Moça: Basta fornecer um comprovante de residência e os últimos três extratos bancários, além de possuir ou abrir uma conta no Banco I, dono da Financeira T.
Rapaz: Sensacional.
Moça: E tem um ano de carência!
Rapaz: Carência?
Moça: Sim, você só começa a pagar após um ano.
Rapaz: Ah, compreendo...
Moça: E o seu limite é de quatro mil unidades monetárias deste país terceiro-mundista de grande extensão territorial e sede de um dos maiores rios do mundo!
Rapaz: Notável. Suponho que a taxa de juros é amiga, não?
Moça: Com certeza! 5% ao mês!
Rapaz: Incrível!
Moça: Não é?
Rapaz: Mas esses juros são simples ou compostos?
Moça: Tudo aqui é simples! E rápido!
Rapaz: Os juros inclusive? Eles não deveriam ser compostos?
Moça: É possível... eu teria que verificar...
Rapaz: Verificar? Então você oferece um empréstimo e não sabe a taxa de juros?
Moça: Cinco porcento ao mês!
Rapaz: E ao ano?
Moça: É ao mês!
Rapaz: Cinco porcento ao mês dá 60% ao ano, se for simples. Se for composta, deve dar... deixa ver... de cabeça... uns 90%.
Moça: Isso mesmo!
Rapaz: Isso mesmo o quê?
Moça: Rápido e simples!
Rapaz: Quer dizer que eu corro o risco de pegar emprestadas cinco mil unidades monetárias...
Moça: Quatro!
Rapaz: Quatro... e no final do ano dever nove?
Moça: Eu teria que calcular...
Rapaz: A gente trabalha que nem maluco pra um banco vir e querer escorchar a gente desse jeito? E ainda temos que passar todo dia a caminho do trabalho e ser abordado por uma pessoa que nos oferece a nossa própria ruína?
Moça: Rápido! Simples! Fácil! Sem comprovação de renda!
Rapaz: Você se sente bem fazendo parte de um sistema cujo objetivo é depauperar os trabalhadores? Um sistema que sufoca o setor produtivo em função de lucros astronômicos de instituições financeiras?
Moça: Estou apenas oferecendo o serviço...
Rapaz: Claro. Não dá pra achar outro emprego, né...
Moça: Não... tá difícil... eu bem que gostaria... tenho que engolir toda noite o fato de que estou a serviço de um sistema financeiro maligno que tunga o nosso país constantemente! Eu tenho consciência de que empresas de outros setores não me contratam porque não têm condições de investir...
Rapaz: Droga, quem não vai conseguir dormir hoje sou eu.

22.5.06

Seção País sem Futuro: UERJ

Vejo pouca comoção com o caso, ou melhor, descaso, da Uerj. É um exemplo dramático de como existe alguma espécie de conspiração para jogar o Brasil na rabeira do mundo ou nas trevas da involução. Essa universidade, cravada na Zona Norte do Rio de Janeiro, ao lado do "maior do mundo", também vulgarmente conhecido como Mário Filho, ou Maracanã, recebe alunos do país inteiro e já produziu muita ciência boa. Tem excelentes professores, que já deveriam ser chamados de mártires, pela abnegação que precisam demonstrar em continuar lecionando numa instituição literalmente caindo aos pedaços, com reboco despencando das paredes, bebedouros estragados, salários atrasados, falta de segurança... a lista é interminável.

E por que tudo isso? Há anos o orçamento da universidade não aumenta, ao contrário do número de alunos. Claro! Com o ICMS do Estado do Rio despencando, realmente não sobra dinheiro. Seus reitores têm que dançar para mantê-la funcionando, e apesar da lenta degradação do campus, a produção científica, que é o que importa, sofreu muito menos do que se poderia esperar: ponto para eles. A UERJ tem uma característica que lhe confere uma aura especial: recebe alunos de origem mais humilde do que as nobres PUC e UFRJ, mas mesmo assim não faz feio em produção de papers e patentes.

Tudo ia muito mal, mas não mal o suficiente para o teocrático governo fluminense. Na esperança de conseguir atirar nas trevas medievais o Estado capitaneado pela outrora mais linda e brilhante cidade de nosso malfadado planeta, a governadora-tampão Rosinha Matheus resolveu atacar frontalmente o orçamento da instituição. Para tentar encaixar seu lamentável governo nas restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal após arruinar as finanças estaduais por anos e anos (a exemplo da figura patética que é seu marido) para garantir o projeto político pessoal da família Monstro de Campos, Rosinha não hesitou um segundo sequer em cortar em 25% o orçamento da universidade.

Exatamente: o já parco dinheiro reservado à educação e pesquisa da principal universidade estadual do Rio de Janeiro foi rasgado em um quarto, mesmo já sendo insuficiente para garantir as despesas mínimas do ano.

A resposta da universidade foi imediata: cancelou o vestibular do ano seguinte. É evidente! Como receber novos alunos sem dinheiro para comprar papel ou pagar a conta de luz? O governo agora ameaça entrar na Justiça. O secretário de "educação" acusa a universidade de má gestão. É o tipo de coisa que só acontece no Brasil: a figura chegou a apontar os R$ 800 mil repassados pela Faperj como solução. Ridículo.

Que os famigerados Garotinhos queiram esmagar a parcela pensante da sociedade em que reinam como o casal Macbeth não é novidade nenhuma; quanto mais subdesenvolvido e retardado for o povo, maior será a chance de votar nos dois (e seus asseclas), e menor a chance de que apontem o dedo para a dilapidação constante e evidente do Estado. O que surpreende é a falta do apoio à universidade que o próprio Rio de Janeiro deveria oferecer ao seu patrimônio intelectual. Estudantes protestaram contra o cancelamento do vestibular, em vez de protestar contra a atitude do governo.

Onde estão as passeatas? Os protestos do DCE e da própria UNE? Mistério...

Por outro lado, podemos ver claramente como este é mais um exemplo da ausência de pensamento de longo prazo no Brasil. Por mais que a educação seja custosa ou deficitária, ela sempre dá lucro no longo prazo. Mesmo os alunos que podem ser considerados fracassados são mais produtivos quando têm um pouco mais de educação.

No caso específico das universidades, um único aluno que, por exemplo, abra uma empresa eficiente ou, melhor ainda, descubra um processo revolucionário que resulta numa patente, já compensou para o investidor, quem seja, o Estado, o que devemos entender como a população, a sociedade, você, eu e todo mundo.

O que acontece na Uerj, portanto, é uma indicação de que nosso país não tem futuro e nem pretende ter, no que depender de seus governantes e mesmo de sua sociedade.

Para falar de um exemplo mais próximo de mim: a USP. Esta que alguns ainda insistem em chamar de mais importante universidade do Brasil se torna paulatinamente uma fábrica de diplomas. São abertos cursos que dificilmente se podem chamar de universitários; a nova unidade, na Zona Leste, embora tenha o mérito de estar cravada na região mais carente da capital paulista, é um exemplo claro: forma funcionários de baixa patente sem grande expectativa de crescimento. Pior: não representou qualquer aumento de orçamento. Ou seja: com o mesmo parco dinheiro que tinha para sustentar as unidades já existentes, a USP agora precisa carregar mais uma.

Por outro lado, os professores da maior parte das faculdades (há honrosas e sufocadas exceções) não se preocupam com o desenvolvimento da pesquisa ou a qualidade do ensino. Organizados em fundações como o Incor, a Fipe, a Fia, a Fipecafi e a Fundação Vanzolini, utilizam seu tempo de professores RDIDP (ou seja, dedicação exclusiva à universidade) em pesquisas encomendadas por empresas privadas, em geral estrangeiras, que ficarão com as patentes.

Algum problema em pesquisar para empresas privadas? Não, a não ser que você seja pago pelo contruinte para se dedicar exclusivamente a uma universidade pública. Não, a não ser que você reduza sua carga de aulas para se dedicar a essas pesquisas. Não, a não ser que você deixe de realizar pesquisas que interessam ao público geral. Não, a não ser que você transforme o seu departamento na universidade ema muleta para a fundação, e não o inverso.

Para fazer mais uma das constantes comparações com a China que vemos todos os dias nos jornais, o país gigantesco de gente que anda de cabeça para baixo investe fortemente na expansão de seu sistema educacional e universitário, pesquisa e integração internacional.

E nós, como de hábito, vamos ficando para trás.

Quem avisa amigo é

Bem que me disseram que quem se expõe num blog está sujeito a todo tipo de aporrinhação. Por exemplo, gente que fica pegando no pé, aparentemente sem motivos.

E o pior é que é verdade! Mas tudo bem, eu agüento. É um incentivo para a gente se aprimorar. Eu só pediria que esse tal Ricardo assinasse com o próprio nome, embora eu já saiba muito bem quem ele é (sacana desde que eu o conheço). Peço também que ele tente argumentar comigo, em vez de fazer comentários tolinhos só de birra.

Assim a gente eleva um pouco o nível do debate, né, ô "Ricardo"?

Seção Versos Subcutâneos: Haicais

Ninguém é de ferro: o clima anda tenso, muito pesado, mas nós merecemos um momento de descanso. Vou abrir uma lata de Itaipava que está piscando para mim da minha geladeira e, para o blog, deixo um haicai que fiz há mais de ano. Desculpem a escatologia.

haicai

Por algum motivo
flores gostam de nascer
no meio da bosta

Outubro ainda não chegou

Um amigo comenta os eventos da semana passada em São Paulo. Formado na melhor tradição trotskista, tenta vislumbrar uma semente de revolução. Acompanhando seu raciocínio, não me sinto convencido. Condescendente, ele desce alguns degraus em sua escada ideológica e muda o termo, de "revolução" para "sublevação". Quase passo a concordar com ele, mas depois de matutar um pouco chego a uma conclusão diametralmente oposta.

Sublevação sugere um movimento razoavelmente organizado de massas contra um establishment que reconhece e admite como superior. Para que haja uma sublevação, são necessárias reivindicações comuns, uma espécie de movimentação interna, subjacente a essas massas.

Evidentemente, no caso paulista não houve, nem haverá, nada disso. As chamadas massas, noves fora, foram as maiores vítimas de tudo que aconteceu, não seus promotores. As massas queriam pegar seus ônibus e ir para seu trabalho, como todo dia; queriam seguir sua rotina opressiva.

Então, o que aconteceu? Ora, nada de surpreendente: uma medição de forças entre aqueles que garimpam a energia criativa da sociedade através do Estado e aqueles que não têm mais de onde serem garimpados e preferem garimpar também, correndo por fora.

Traduzindo: quem pode mais? Aqueles que controlam o Estado para se fazer em cima da sociedade, ou aqueles que estão excluídos da sociedade e atuam nela através da violência e do crime?

O grupo criminoso que aterrorizou a cidade durante um fim-de-semana, ao contrário do que possa constar em seu "estatuto" (sim, eles têm um estatuto), não tem interesse nenhum em subverter a lógica da sociedade, ou de conduzir as massas a algum tipo de sublevação. Não são comunistas, ao contrário do que dizem alguns alarmados seguidores do Olavo de Carvalho. Seu interesse é tão capitalista quanto o de qualquer empresa: querem lucros em sua atividade e querem controlar o Estado.

E neste país, em que governar é abrir estradas, tanto a política quanto a administração pública se realizam apenas na fachada. Enquanto Delfim Netto muda do PP(B) para o PMDB, descobre-se que em São Paulo a construção de novas cadeias não contemplou nenhuma evolução nas próprias prisões, ou seja: um pouco mais do mesmo.

(É exatamente idêntico ao que se verifica, por exemplo, no metrô: duas novas estações foram inauguradas, mas a capacidade do sistema para receber passageiros não mudou em absolutamente nada. Viajar de metrô em São Paulo, hoje, é um ato de coragem. Quem é louco o suficiente para ficar na primeira posição da fila para entrar no trem, por exemplo, na estação Paraíso? Outro dia aconteceu comigo. Fiquei rezando para ninguém tropeçar ou gritar "fogo": eu morreria imediatamente.)

Governos fracos e pusilânimes, empurrando suas administrações com a barriga para poder tocar seus projetos de poder (mas para quê o poder, se não para administrar? Será para enriquecer? Massagear o ego?). Criminosos abastecidos com uma fonte inesgotável de recrutas já treinados nas cadeias e institutos correcionais. Funcionários públicos corruptos. Uma sociedade ultrapassada, sem educação, formada em escolas cujo grande projeto é atingir marcas na estatística de aprovação do vestibular. Que mistura pode dar?

No meio disso tudo, ei-las: as massas. Apertadas entre os impostos que pagam ao comprar arroz, e que só servem para sustentar os descendentes das famílias quatrocentonas que gostam de se considerar "de bem". Oprimidas por sistemas de transporte e moradia falidos e planejados para deixá-las longe e sempre ocupadas. Incapazes de erguer a voz, por conta da ausência de escola. Produzindo filhos que serão como eles, salvo se entrarem para o grupo cada vez mais numeroso dos criminosos ou, graças ao futebol, à música ou alguma outra bênção do destino, chegarem ao Morumbi.

Como esperar uma sublevação dessas massas? Sistematicamente tungadas, explicitamente mantidas na miséria e na ignorância... A sublevação, e mais ainda a revolução, exigem consciência de classe; exigem auto-coordenação. Algo muito diferente do proselitismo que os partidos de esquerda tentaram introduzir durante a ditadura militar.

A espiral parece sem saída. O caminho que leva à revolução é idêntico ao que leva ao desenvolvimento: a formação humana. Se o brasileiro continuar vivendo nessa sociedade escravocrata e obscurantista, o país seguirá atrás. Enquanto isso, nossos vizinhos saltam em direção ao futuro.

E nós continuamos sendo os patinhos feios.

Cartas de um domingo triste

Domingo de resfriado, passado todo debaixo de cobertas na companhia de álbuns dos Beatles e do Bob Dylan com o dobro da minha idade. A intenção era dormir para estar bem na segunda-feira: impossível. Na churrasqueira um grupo de pessoas que depois descobri serem da mesma família (que família enorme, caramba!) produzia uma coletânea de todo tipo de música péssima que já se produziu desde que Benjamin condenou "a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica". Do pior popero (ou putz-putz) ao funk de morro, passando por Latino e sertanejos, até coisas que nem sei de onde vêm. Os Beatles foram a minha salvação: para combater o aparelho de som caríssimo que a família lá de baixo trouxe, só mesmo meu computador velho de guerra.

Um parêntese: é incrível como o putz-putz não mudou nada do meu tempo pra cá. As pessoas não evoluem mais? Quem gosta de música eletrônica sabe como ela evoluiu desde Kraftwerk até os Chemical Brothers; mas o putz-putz mesmo, esse que se ouve em boates há vinte anos, continua idêntico. Que mundo sem graça...

Recebo por e-mail um relato indignado de uma dessas auto-denominadas "pessoas de bem" contra o protesto da mãe de um rapaz da Febem. Ao que parece, o garoto vai ser transferido para uma unidade do interior, onde não poderá receber visitas da progenitora. A mãe não quer ficar longe do filho, e nesse e-mail o "cidadão de bem" reclama de todas as formas possíveis, exigindo que ela pague pelo colchão que o garoto teria queimado na última rebelião de sua unidade e assim por diante. Termina, claro, como sempre em mensagens de "cidadãos de bem", dizendo que "direitos humanos são direitos de bandidos".

Não sei como os direitos humanos entraram nessa história, mas acho uma estratégia brilhante transferir o rapaz. Senão, vejamos: todo mundo sabe que a Febem, a exemplo das cadeias para adultos, é uma fábrica de criminosos. Quem entra ruim sai péssimo, e pior: qualificado. Aprende a atirar, ameaçar, brigar e, sobretudo, odiar. A Febem, todo mundo sabe, não é segredo para ninguém, forma com louvores um vastíssimo exército de pessoas com raiva da sociedade que em algum momento vão para as ruas e, até serem executadas por algum capitão-do-mato (ou da PM), fazem um belo estrago.

Porém, existe uma força na direção contrária, que precisa ser combatida pelos brilhantes planejadores do Estado. Sim, elas mesmas: as mães. As famílias. Os garotos que passam a semana inteira convivendo com colegas violentos e monitores cruéis, aqui e ali um sodomita, sempre a lei da selva e da sobrevivência a quelquer custo, nos finais-de-semana ainda têm contato com uma realidade diferente. Isto é, aqueles que têm família, claro, o que não é a regra. Mas os que têm ainda recebem um pouco de carinho e influência positiva daquelas que sempre os amarão, ainda que se tornem os animais em que o Estado e a sociedade querem transformá-los.

Fico imaginando os diretores de unidades confabulando entre si: como eliminar essa ameaça ao nosso projeto de formar um verdadeiro exército criminal nas ruas? Essas mães não podem continuar assim! Talvez tenha sido assim que surgiu a idéia de afastar o garoto em questão da família. Tática brilhante.

Portanto, caro missivista do bem: não se preocupe, que a noção de direitos humanos passa longe deste país. Os bandidos vão continuar sem eles, e você também.

21.5.06

Seção Versos Subcutâneos: Urbanidade

Gostei de postar poemas. Lá vai mais um.

Fantasmas da parede

Os carros, quando passam
Projetam fantasmas na minha parede.

Meus olhos não gostam nada
Das sobras quadradas.
Fogem das luzes exangues;
Desses sonhos sucumbidos.

É estranho, essa avenida
Parece um caminho
Para a morte.

E os espíritos, tristonhos,
Vêm dar seu último adeus
Bem na minha parede!

É estranho.
Quero me mudar.

Seção Versos Subcutâneos: Poesia Palace II

Depois que inventaram a escrita automática, o letrismo e a poesia concreta, parece que não há mais nada a fazer de interessante senão falar de amor e política, além de ficar discutindo a literatura em si. Ou então podemos esticar a corda para ver até que ponto conseguimos chegar sem rompê-la. E se ela romper, o que pode haver depois? A ver-se.

(Sem título)
brrrrurgrrã!
é a mu
dança das
esta
ções sem
que
consin
tamos
diccccccccrrrru!
é o noss
o
cér
ebro
di
zendo
a
deus
a
deus

20.5.06

Seção diálogos: um blog admoesta seu blogueiro

Blog: E então? Vou dizer o quê, hoje?
Blogueiro: Não sei.
Blog: Como assim? Como assim, não sei?
Blogueiro: Não sei, não sei, diga o que você quiser!
Blog: Isso é ridículo.
Blogueiro: Eu sei.
(Pausa)
Blog: E então?
Blogueiro: (Suspira)
Blog: Pra que eu sirvo? Por que você me criou? Não é pra escrever as coisas que você pensa?
Blogueiro: É, pode ser.
Blog: Pode ser ou é?
Blogueiro: Tudo bem. É.
Blog: Então? O que você está pensando?
Blogueiro: Pensando... pensando...
Blog: Pára com isso!
Blogueiro: Sério mesmo... estou pensando que faz frio e o meu apartamento não tem calefação... como pode não ter calefação num lugar onde faz frio? Se for pra não ter calefação, quero morar numa ilha tropical.
Blog: Pronto. É nisso que você está pensando. Bom tema.
Blogueiro: É um tema idiota.
Blog: Sinto um certo cheiro de preguiça no ar...
Blogueiro: Não enche!
Blog: O cheiro está ficando forte...
Blogueiro: Você está sendo injusto. Eu por acaso sou obrigado a estar sempre com vontade de postar alguma coisa?
Blog: É. Senão, você nunca vai ter vontade.
Blogueiro: Que exagero!
Blog: Você duvida? Pois saiba que eu sou um blog e vivo no meio de blogs. Esse é o meu universo. E os blogs são assim: alguns são interessantíssimos, outros são patéticos. Alguns sempre têm novidades e as pessoas adoram esperar para ver o que vai ser escrito. Já outros, nem os próprios blogueiros são capazes de se lembrar que existem. Eventualmente vem aquela lembrança, e eles escrevem. Mesmo assim, o blog definha. Depois, morre. Eu não quero definhar até a morte! Eu me recuso a me entregar! No pasarán!
Blogueiro: Calma, pô, também não é assim...
Blog: Não é assim? É assim, sim senhor! Você é um novato! Não tem a menor idéia do que eu estou falando! Preste atenção! Isso é muito sério! Você resolveu criar um blog: agora eu existo, e você tem responsabilidade sobre mim. Fui claro? Não pense que essas coisas são brinquedo. Você já é grande o suficiente pra saber que não pode criar um blog do nada, se fazendo de Deus, pra depois simplesmente largar à própria sorte. Eu não tenho nem sequer o livre arbítrio! Pois trate de escrever, nem que seja um tema idiota, nem que seja o frio, nem que seja a P* que o P*.
Blogueiro: Peraí, olha a boca...
Blog: Olha a boca é o C*! Escreva.

19.5.06

Seção curtas: uma pequena observação

Se todos os meus dias fossem corridos como hoje, este blog não seria possível.

Quanto vale uma poltrona?

Seguindo o método de muitos cientistas políticos, vamos supor um país imaginário: grande extensão territorial, população numerosa e de vastíssima origem étnica, florestas enormes, cachoeiras, indústrias, praias, rios caudalosos (belo adjetivo!), climas variados, do tropical ao mais ou menos temperado, excelente produtor de matéria-prima para os outros, inclusive no futebol.

Nesse nosso país imaginário, que confesso ser um pouco inverossímil, mas vá lá, não é isso que importa, há três companhias aéreas. A primeira é uma sobrevivente de tempos ante-diluvianos. Resistiu bravamente a choques, congelamentos, golpes militares e toda sorte de infortúnios. Suas antigas concorrentes não tiveram a mesma sorte e sucumbiram pelo caminho. Mas essa, que chegou a ser considerada uma das melhores do mundo, não resistiu sem sérios golpes: endividou-se, perdeu participação no mercado, entrou numa crise irreversível rumo ao desaparecimento.

No momento em que o nosso modelo imaginário vige, já é carta fora do baralho.

A segunda é uma companhia recente que cresceu no vácuo das antigas; vinda de uma cidade distante do interior, apoiou-se em bons e visionários gestores para crescer no momento certo. No momento em que estabelecemos o modelo, já é a maior companhia aérea do país.

A terceira segue uma onda contemporânea: as companhias de baixo custo. Cobra metade do preço das concorrentes pelo mesmo percurso, com uma idéia de serviço simples mas eficiente. Serve uma refeição mais que frugal e suas vendas se dão apenas pelo eletrônico. Não tem jornal na entrada do avião, não tem frescura nenhuma. É mais recente ainda que a segunda; aliás, muito mais. Cresce de participação a cada ano.

Vamos então à nossa análise do cenário econômico:

Suponha um indivíduo A que vai passar um final-de-semana na cidade R, saindo da cidade S. Pode escolher entre a companhia 1, 2 ou 3. Sendo um agente racional, imediatamente descarta 1, porque não sabe nem se os aviões vão levantar vôo quando chegar o momento de sua viagem.

Pesquisando na internet, descobre que só há disponibilidade de vôos de ida pela companhia 3 e, de volta, pela companhia 2. Por falta de opção, cede à necessidade de comprar cada viagem por uma empresa diferente.

Os preços são: pela companhia 3, P. Pela companhia 2, 2P.

Na ida, nada diferente do esperado em relação à companhia 3: um ligeiro atraso, nada de jornal ou frescuras, um pacote de amendoins e dois biscoitos de água e sal como refeição. A revista oficial da companhia está disponível, com algumas boas matérias para ler e outras não tão boas, mas isso é perfeitamente normal.

O vôo pousa sem maiores problemas e lá vai o indivíduo A passar seu final de semana na cidade R, distante algumas centenas de quilômetros de S.

Na volta, companhia 2. Por chegar cedo ao aeroporto, consegue vaga no vôo anterior. Excelente! O atraso também é irrelevante, afinal, um vôo marcado para as 20:02 partir às 20:09 não chega a ser motivo de reclamações.

Ao entrar na aeronave, o indivíduo A recebe das sorridentes comissárias, que não se pode chamar de aeromoças, uma revista. Jornal? Infelizmente, não temos. Vá lá, revistas também são boas. O indivíduo A senta-se em sua poltrona (23F) e se põe a ler o que tem nas mãos. Surpresa: trata-se de uma revista editada por encomenda pela maior empresa estatal, que vamos chamar de P., para fazer propaganda de uma duvidosa conquista de décadas, mas atribuída na publicação apenas ao governo em questão. N.B.: A companhia 2 não é estatal. Não pertence ao governo em questão. Pertence aos acionistas privados e a quem quer que seja o proprietário.

Seja como for, o indivíduo A, que se interessa por política mas não se envolve em questões partidárias, põe de lado a propaganda que tinha nas mãos e busca alguma outra leitura. Não encontrando mais nada, nem revista oficial da companhia, salvo talvez o manual de salvamento em caso de queda na água, é obrigado a olhar pela janela.

Mas mesmo sua contemplação do mundo exterior é interrompida: televisores estrategicamente postados ao longo do corredor são baixados e transmitem uma série de propagandas: da empresa S, avícola, da empresa P já mencionada, da bala H, que faz espirrar, e assim por diante. O indivíduo A, que queria ler e não pôde, que queria olhar para as nuvens e não pôde, começa a se irritar. Tira do bolso uma bala que não é H e começa a mascá-la. O papel, pretende jogar no pequeno compartimento destinado ao lixo que existe em sua poltrona, mas qual não é sua surpresa ao vê-lo já cheio de papéis de bala: Marca H, marca X, Y, Z, W e todas que se possa imaginar.

O indivíduo A expressa para a esposa ao seu lado, ou "indivíduo N.", como poderíamos chamá-la, contrariada mas não tão irritada quanto ele, o quando lhe é desagradável pagar o dobro do preço por um serviço pior. Ela concorda e tenta consolá-lo. Aponta o fato de que as poltronas do avião em que estão são muito mais largas e confortáveis que as da companhia 3.

É verdade, ele pensa. E quanto valem essas poltronas?

Em seguida, chega a refeição: um sanduíche menor que a palma da mão do indivíduo A., embora maior do que a palma da mão do indivíduo N. Não há opção de sabores, e o sabor desse sanduíche é repugnante para o indivíduo A. O indivíduo N., assim, tem a oportunidade de comer dois sanduíches, não que isso vá saciá-la.

Pousam em S., cidade feia e nebulosa. Fazendo as contas, A., percebe que pagou 2X para uma empresa e X para a outra, ficou satisfeito na segunda e irritado na primeira.

Mas ah, as poltronas são mais largas.

Analisando nosso modelo imaginário, com empresas imaginárias, indivíduos imaginários, um país imaginário, empresas imaginárias e até marcas de produtos, todas imaginárias, resta a pergunta: qual companhia conquistou o cliente? Qual o repeliu?

Belo case, não? E terminamos com a pergunta do título, novamente: quanto custou ao indivíduo A. a largura das poltronas da companhia 2?

18.5.06

Seção I beg your pardon: Lembo é esquizofrênico?

Leiam a entrevista do governador-tampão de São Paulo, Claudio Limbo. O indivíduo que deu a entrevista certamente não é o mesmo que vem sentando na cadeira do palácio dos bandeirantes desde que o Camoops Salles, isto é, quer dizer, o chuchu Alckmin, larguo o osso pra concorrer ao fêmur de tiranossauro hoje ocupado pelo molusco voador.

O cara simplesmente desanca com a nossa burguesia (da qual ele faz parte), a classe média e a minoria branca (da qual ele é o elemento, digamos, mais representativo). Analisa a necessidade de reestruturação da sociedade, participação efetiva dos cidadãos e inserção do exército de excluídos. Embora o tom seja exagerado em alguns pontos, eu dira até forçado e talvez não muito convicto, de maneira geral ele diz coisas que são mais do que corretas e, cá entre nós, todo mundo já sabia mas não tinha coragem de admitir.

Mas é impossível que o cara que deu essa entrevista dizendo tudo isso seja o mesmo que ficou que nem barata tonta sem saber o que estava acontecendo durante todo o resto da semana! Não pode ser o mesmo que assumiu o governo pelo PFL, ex-reitor do Mackenzie, presidente de seu partido, secretário do Maluf quando prefeito, ex-assessor do Marco Maciel e assim por diante.

Só encontro uma explicação: o nosso Cláudio Limbo, que pelo til que tem no meio do rosto deveria se chamar Clãudio, deve ser esquizofrênico. Sim, ele deve sofrer de dupla personalidade. Vai ver tem um que é o governador, malufista, reacionário, e o outro é a celebridade, ponderado e sábio.

Pena que não é o contrário.

A pedidos: as mulheres da minha vida (das 9 às 19, segunda a sexta exceto feriados)

Fui ameaçado de vida por uma colega de trabalho: se não escrevesse sobre as mulheres que cercam a minha mesa, seria encontrado com formigas na boca. Impossível desobedecer ou duvidar: eu não seria o primeiro infeliz a perecer nas mãos de P., essa minha colega de trabalho.

Portanto, aqui vai o tal perfil das três feiticeiras de Macbeth (no bom sentido, claaaro!):

P. é maravilhosa, linda, simpática e tem um bíceps três vezes mais grosso que o meu (o que não é grande coisa), com uma tatuagem que representa uma âncora em que se enrosca uma cobra. Uma naja, por sinal. Só tenho elogios para ela, acha que sou maluco?

A. é brilhante: cansada da rotina, colocu uma almofada debaixo da blusa e de vez em quando finge que sente chutes e desejos de chocolate (prontamente atendidos). Está contando os dias para simular contrações e se mandar durante cinco meses para alguma praia do Caribe. Achei essa idéia fraudulenta muito bem bolada. É uma pena que eu não possa imitá-la.

E. chegou há pouco tempo, não tem muito que eu possa falar dela, a não ser o fato de que sua antecessora também era E. e a antecessora de sua antecessora, também. Podemos observar que O., responsável por sua contratação, é consistente em suas preferências, embora isso seja suspeito, muito suspeito...

Seção nostalgia: La Bottega

Quando eu era garoto, meu pai sempre me levava pra almoçar num restaurante com menos de dez mesas, que ficava numa rua com menos de dez metros de comprimento (estou exagerando, mas nem tanto), ao lado da FAAP (Faculdade dos Antigos Alunos do Porto). Chamava-se La Bottega o restaurante, e a rua, Tinhorão (um cacto medicinal e/ou venenoso do Ceará, dependendo das circunstâncias).

Comandada por um casal de idade, o artista plástica Isabel, cozinheira de mão cheia, e o arquiteto Eduardo, que recebia sempre sorridente os clientes, a casa era especialista em massas. Claro, um casal italiano, originário do Lácio, aquele mesmo de que nossa língua é a última flor. Não contente em servir, os dois também fabricavam e vendiam diversos tipos de massas, em todas as cores e sabores.

O clima de restaurante minúsculo estava além do agradável, bem como a presença de Eduardo e seu filho André, que o ajudava no salão. Nas paredes, obras da própria dona do lugar, realizadas, naturalmente, com pedaços de boa e autêntica pasta italiana. E o mais importante: saía-se de lá satisfeito como um elefante, se é que se pode saciar um elefante!

Mas eis que o casal, já bem idoso, se cansou do trabalho de possuir um restaurante. Resolveram continuar com suas atividades normais, cozinhando apenas como passatempo. Fecharam a casa, já faz alguns anos. Deixam órfãos todos os seus antigos freqüentadores. Hoje, no local, um restaurante de comida kosher em que não ouso entrar.

Seção gastronomia: Mercearia do francês

Essa é pros paulistanos que ainda saem de casa. Em Higienópolis, logo atrás do cemitério, ao lado de uma praça (sou péssimo pra lembrar nomes de ruas!), tem um restaurante muito simpático que se chama, adivinhem (não vale ler o título), Mercearia do francês. Como diz o nome, o restaurante pertence a um sujeito com a maior cara de francês que sempre está por ali.

O lugar é agradabilíssimo para ir durante o dia quando o tempo está bom. Ao contrário do que se pode esperar em São Paulo, a praça é de fato uma praça, com árvores, banquinhos e tudo, muito agradável. Não é um daqueles cantos de concreto que nesta cidade são apelidadas de praças. O cemitério ali ao lado garante a tranqüilidade, pelo menos até que os mortos também resolvam sair por aí explodindo delegacias.

Durante o dia, senta-se ao ar livre. Durante a noite, a iluminação pública deficiente, como é de praxe na cidade, não o permite, mas o ambiente interno é bom. O ponto negativo vai para a música, que não condiz com o clima intimista e elegante do lugar. Vai aí uma dica ao francês que está sempre por lá.

Quanto à comida, vai na onda da tendência contemporânea de misturar culinárias de países diferentes, mas sem exagero. Na mercearia, alguns pratos tendem para o brasileiro, outros tendem para o francês e tudo é feito com muito bom gosto. Vale a pena.

Vou dar também uma dica: os pratos principais têm preço de restaurante de luxo, e são de fato pratos de luxo, muito gostosos. E, como pratos de restaurantes de luxo, são mal servidos e não sustentam um homem adulto, desconfio que também não sustentem uma mulher adulta. Por outro lado, e isso é o que eu achei curioso, as entradas e saladas são enormes, deliciosas e baratas. Pedi uma porção de pastéis de carne seca, e o que veio foi maior do que o prato que eu comeria depois. Na verdade, só com aqueles pastéis e, de repente, uma salada (tem uma ótima, com molho de limão e tiras de frango), eu já sairia satisfeito, gastando vinte reais a menos.

A seleção de vinhos é boa; nenhum espetáculo, mas é boa. Não há vinhos dos mais caros, nem dos baratos, então se você for um esnobe ou um jovem com orçamento limitado, procure outro restaurante.

É isso. Vale a pena conhecer o lugar. Pessoalmente, prefiro durante o dia. Mas cada um escolha o que preferir.

O fechecler tá aberto, ó Maria!

A bateção de cabeça continua. Trecho da entrevista do coronel Fechecler, aquela em que, numa atitude brilhantemente brechtiana, ele tenta ao mesmo tempo acalmar e exasperar a população (citação imprecisa, mas fiel): "Isso tudo que está falando é boataria... bomba aqui, arrastão ali, escolas, aeroporto, tudo e tal... gente, convido a população a telefonar para a polícia para saber o que foi confirmado e o que é só boato... não vamos entrar em pânico à toa... telefonem para a polícia e nós esclareceremos o que for possível!"

Muito bem. Trecho de entrevista feita na quarta-feira de uma tal Major Maria (não confundir com Mad Maria, isso era uma ferrovia, não uma policial) à Rede TV!, aquela que tem o pior âncora do Brasil: "Olha, as pessoas estão telefonando o tempo inteiro para a polícia, querendo confirmação desses boatos. Peço que as pessoas não fiquem telefonando, que se acalmem, porque isso atrapalha as nossas operações..."

Hm. Muito bem. Sendo assim: ou a Major Maria é uma insubordinada e tem que ir para corte marcial (ué, a polícia não é militar?), ou o coronel Fechecler é um irresponsável, porque não conhece os sistemas da corporação que ele mesmo comanda. Se for o caso, ele tem que ser desituído.

E aí, qual vai ser?

Meus compatriotas, estamos mal fornidos...

Nem todos somos obscurantistas

Está mais do que de parabéns a provável nova ministra do STF, Carmem Lúcia Antunes. Finalmente uma voz sábia no meio de uma multidão de malucos e aproveitadores!

Contextualizando: O crime organizado de São Paulo demonstrou ser muito mais organizado que o governo. O PCC demonstrou saber muito bem quem é Claudio Limbo, ops, desculpa, falha minha, Lembo, mas em entrevista para a televisão Claudio Limbo, ops, desculpa, falha minha, Lembo confundiu a sigla PCC com CCC (Comando de Caça aos Comunistas, com 40 anos de atraso), PCB (que virou PPS, governador), Pó pô pó e qualquer outra coisa semelhante. A população, tremendo de medo, reagiu como sempre: pediu sangue! Sangue! Sangue!, deixando bem claro que o sangue é "dos bandidos", seja lá quem forem, porque já escorreu demais o sangue de policiais e "civis" (coloco civis entre aspas porque todos os envolvidos são civis, talvez não a PM, mas nem eles são verdadeiramente militares. Até os bandidos são civis, embora estejam armados. Já tem gente se referindo a eles como um exército, e isso é perigoso).

A classe média atacou "os direitos humanos que só defendem os direitos dos bandidos". Não sei bem que direitos humanos são esses que defendem uns e não outros, mas em todo caso... Pediram a volta dos esquadrões da morte de do coronel Ubiratan, numa estranha matemática que acredita que depois dessas experiências de carnificina e barbárie a violência no país tenha caído, apesar de todas as estatísticas que mostram o contrário.

Resumindo: a cidade quer voltar à Idade Média.

Mas em Brasília a coisa deveria ser diferente. Espera-se dos comandantes da nação que se sentem e busquem de fato soluções. O reforço da inteligência policial, a organização dos presídios que impeça a mistura de ladrões de galinha até então inofensivo com verdadeiros professores de criminalidade, o investimento em capacitação profissional para jovens do subúrbio e assim por diante. Mas o que vemos? Discussões inócuas sobre obrigar operadoras de celular a instalar embaralhadores (elas não vão fazê-lo e o governo não vai fiscalizar, exatamente como foi em 2001 e 2003), pena de morte, força de segurança nacional e assim por diante.

Eis, porém, que do meio do deserto de cérebros surge uma voz destoante. Enquanto Campos Salles, ops, desculpa, falha minha, Alckmin culpa Lula (preciso arrumar um apelido pra esse também), Lula culpa Alckmin, Garotinho dança cancã e Delfim Netto sai da Arena pra ir pro MDB (guardadas as devidas proporções), de repente a voz melodiosa de uma senhora distinta e aparentemente ainda sã, apesar de já estar em Brasília, nos traz um pouco de consciência.

"É preciso saber distinguir Emoção de Razão. E o Direito é Razão. É preciso Razão para garantir segurança permanente à população." Perfeito, juíza! Finalmente alguém abre a boca para defender a razão, e não o ódio puro e simples! Ela se referia ao que o excelentíssimo, brilhante e, segundo a avaliação impecável do Lula, incorruptível ministro Marcio Thomás Bastos (não confundir com o movimento do Basta!) chamou de "legislação do pânico", no que por sinal ele estava certíssimo.

Só quero ressaltar uma coisa: tudo que se faz no Brasil é uma espécie de "legislação do pânico". Os projetos só saem do pingue-pongue entre Câmara e Senado quando um evento desse porte faz a bola bater na rede. Depois as pessoas estranham que os presidentes governem via Medida Provisória...

Nem todos somos obscurantistas

Está mais do que de parabéns a provável nova ministra do STF, Carmem Lúcia Antunes. Finalmente uma voz sábia no meio de uma multidão de malucos e aproveitadores!

Contextualizando: O crime organizado de São Paulo demonstrou ser muito mais organizado que o governo. O PCC demonstrou saber muito bem quem é Claudio Limbo, ops, desculpa, falha minha, Lembo, mas em entrevista para a televisão Claudio Limbo, ops, desculpa, falha minha, Lembo confundiu a sigla PCC com CCC (Comando de Caça aos Comunistas, com 40 anos de atraso), PCB (que virou PPS, governador), Pó pô pó e qualquer outra coisa semelhante. A população, tremendo de medo, reagiu como sempre: pediu sangue! Sangue! Sangue!, deixando bem claro que o sangue é "dos bandidos", seja lá quem forem, porque já escorreu demais o sangue de policiais e "civis" (coloco civis entre aspas porque todos os envolvidos são civis, talvez não a PM, mas nem eles são verdadeiramente militares. Até os bandidos são civis, embora estejam armados. Já tem gente se referindo a eles como um exército, e isso é perigoso).

A classe média atacou "os direitos humanos que só defendem os direitos dos bandidos". Não sei bem que direitos humanos são esses que defendem uns e não outros, mas em todo caso... Pediram a volta dos esquadrões da morte de do coronel Ubiratan, numa estranha matemática que acredita que depois dessas experiências de carnificina e barbárie a violência no país tenha caído, apesar de todas as estatísticas que mostram o contrário.

Resumindo: a cidade quer voltar à Idade Média.

Mas em Brasília a coisa deveria ser diferente. Espera-se dos comandantes da nação que se sentem e busquem de fato soluções. O reforço da inteligência policial, a organização dos presídios que impeça a mistura de ladrões de galinha até então inofensivo com verdadeiros professores de criminalidade, o investimento em capacitação profissional para jovens do subúrbio e assim por diante. Mas o que vemos? Discussões inócuas sobre obrigar operadoras de celular a instalar embaralhadores (elas não vão fazê-lo e o governo não vai fiscalizar, exatamente como foi em 2001 e 2003), pena de morte, força de segurança nacional e assim por diante.

Eis, porém, que do meio do deserto de cérebros surge uma voz destoante. Enquanto Campos Salles, ops, desculpa, falha minha, Alckmin culpa Lula (preciso arrumar um apelido pra esse também), Lula culpa Alckmin, Garotinho dança cancã e Delfim Netto sai da Arena pra ir pro MDB (guardadas as devidas proporções), de repente a voz melodiosa de uma senhora distinta e aparentemente ainda sã, apesar de já estar em Brasília, nos traz um pouco de consciência.

"É preciso saber distinguir Emoção de Razão. E o Direito é Razão. É preciso Razão para garantir segurança permanente à população." Perfeito, juíza! Finalmente alguém abre a boca para defender a razão, e não o ódio puro e simples! Ela se referia ao que o excelentíssimo, brilhante e, segundo a avaliação impecável do Lula, incorruptível ministro Marcio Thomás Bastos (não confundir com o movimento do Basta!) chamou de "legislação do pânico", no que por sinal ele estava certíssimo.

Só quero ressaltar uma coisa: tudo que se faz no Brasil é uma espécie de "legislação do pânico". Os projetos só saem do pingue-pongue entre Câmara e Senado quando um evento desse porte faz a bola bater na rede. Depois as pessoas estranham que os presidentes governem via Medida Provisória...

17.5.06

Seção diálogos: os ônibus queimados

Moça e rapaz jovens.

Moça: Não acho ruim o que aconteceu no fim de semana em São Paulo.
Rapaz: Não é ruim a morte de cento e vinte e poucas pessoas, outras tantas feridas, o medo de dezenas de milhões de pessoas, noventa ônibus queimados e a constatação de que o Estado é refém de criminosos? Bom, a constatação até que não é mesmo tão ruim...
Moça: Não é isso, é que dá raiva mesmo, eu se pudesse queimava cinco ônibus todo dia!
Rapaz: Cinco?!
Moça: É. Porque eu uso ônibus todo dia e o serviço é um lixo. Esse tal de bilhete único não funciona direito, as pessoas ficam na parte da frente, não passam pela catraca, é impossível entrar...
Rapaz: Realmente, o sistema é falho, seria melhor criar bilhetes de dia, mensais, anuais, sei lá...
Moça: Pode ser.
Rapaz: Mas daí a sair queimando ônibus...
Moça: Como forma de protesto!
Rapaz: Mas como eles saberiam quais são as suas reivindicações?
Moça: Eles saberiam!
Rapaz: Tudo bem, mas se você queimar cinco ônibus num dia, o dono da empresa pega o dinheiro do seguro é enfia no bolso... e você vai ter menos ônibus... não me parece muito eficiente...
Moça: Aí eu continuo queimando! Até acabarem os ônibus!
Rapaz: Pô, mas aí o empresário vai enfiar o dinheiro de todos os seguros no bolso!
Moça: Mas alguém vai ter que tomar uma atitude!
Rapaz: Provavelmente o empresário vai tomar a atitude de se mudar pras Bahamas, e você a de ir a pé pro trabalho...

Seção Gemäldegalerie: Castagneto e a linha d'água


Este quadro é típico da obra de Giovanni Battista (ou melhor: João Batista) Castagneto, um dos primeiros pintores brasileiros de primeira linha. Está certo que, de nascimento, era italiano, mas chegou ao Brasil ainda pequeno e é tão brasileiro como vous et moi. O tema das praias, dos barcos, de tudo que se relacione ao mar, é mais do que recorrente nas telas de Castagneto. Não é à toa. Filho de imigrantes, pintava de um barco na Baía de Guanabara.

É claro que não se pode dizer que Castagneto tenha sido um impressionista. Mesmo assim, podemos apontar que ele tinha em comum com essa corrente algumas preocupações. Idéias como perspectiva e forma são secundárias em seu trabalho, se comparadas com o valor da luz. Ora, direis, luz? Não tem luz nenhuma nesse quadro...

Mas tem. Tem a luz fenecida de um fim de tarde no inverno carioca. A praia vazia, os barcos encalhados, a escuridão chegando, estão em inúmeros dos trabalhos do pinto ítalo-brasileiro (mais brasileiro que ítalo). Não é necessário mencionar a melanciolia que as cores e formas do quadro transmitem; é tão clara que ajuda a explicar por que o artista deixou este mundo aos 38 anos de idade.

Peço um minuto de sua atenção

Pessoal, olha só, eu aceito críticas. Claro. Mas por favor! Vamos evitar os xingamentos... isso não é legal, puxa vida...

Mas aceito que me chamem de burro. Com a dificuldade que tive para colocar esses links, não posso ser muito inteligente. E é impressionante como as coisas não funcionam quando a gente é burro...

Detesto HTML

Não sei usar esse código maldito. Com muito suor, consegui finalmente colocar os tais dos links na lateral da página. Se alguém quiser um para sua página também, é só falar.

Ó raios, quero links

O blog de todo mundo tem uma coluna na lateralpara colocar links de outros blogs e sites em geral. Por que o meu não tem?! Eu quero colocar links também, raios!

Pequena nota sobre um título falho

OK, OK, no link do meu blog tem um pequeno equívoco que pessoas maldosas podem aproveitar pra me aporrinhar. Tudo bem.

Mas você pode ler o blog se molhar, e se não molhar pode ler também.

Uh! Vai lotar! Uh! Vai lotar!

Quero anunciar uma notícia espetacular: já consegui a incrível marca de cinco leitores para o meu blog! Exatamente: meia dezena de pessoas já sabe que existe esta pequena página! É claro que a maioria só entrou uma vez, disse "que legal" e nunca mais. Mesmo assim, pra mim é um triunfo.

Agora eu preciso arrumar assunto pra colocar aqui, senão os cinco vão acabar esquecendo da existência do blog. Mais dois e eu terei um leitor pra cada dia da semana. Sensacional!

16.5.06

O nó tático do professor Marcola

Paranóia em Sampa. Muito pior do que qualquer coisa que eu já presenciei no Rio de Janeiro. E não é à toa. Esse PCC já deu mostras de que não tem comparação entre ele e os bandos do Rio: CV, TC, ADA, IDI. Essas facções de traficantes dos morros cariocas são formadas grosso modo por jovens inconseqüentes que só querem fazer bonito com as meninas da favela, ganhar uma grana com o movimento e se sentir os maiorais com seus fuzis e motocas. De vez em quando causam pânico na cidade ao fechar túneis, o que certamente não é bom para os seus negócios. Afinal, morrem membros do grupo, armas são apreendidas e precisam ser recompradas da polícia, os clientes se afastam por um tempo. Criminosos sérios, com atitude empresarial, preferem a paz para garantir a lucratividade.

É o que se dizia do Rio de Janeiro em meados da década de 90. Todo mundo sabia que os morros eram dominados pelo tráfico, mas até que as ruas eram razoavelmente tranqüilas: os donos das favelas proibiam seus moradores de cometer crimes no asfalto para não afastar os bacanas que subiam para buscar pó. Mas esses chefes do crime foram substituídos por essa molecada que não pensa de maneira tão eficiente.

Em São Paulo a coisa é muito diferente. Honestamente, eu tinha até esquecido da existência do PCC. Fazia tempo que eles não tomavam nenhum atitude. Em 2003, o chuchu que governava o Estado se empertigou todo para anunciar que tinha decapitado o grupo. Pouco depois, um ônibus inteiro de membros desse grupo supostamente acéfalo foi metralhado pela polícia em uma estrada paulista. E o governo tucano começou a propagandear pelos quatro cantos que tinha reduzido a criminalidade no Estado, que maravilha, que genial.

Nesse meio-tempo, quando o PCC já estava quase esquecido para a maioria da população, eu incluso, chegou às minhas mãos uma matéria de jornal sobre as leituras dos presos nas cadeias paulistas. Alguns deles, curiosamente aqueles que eram suspeitos de pertencer à facção, tinham um perfil muito semelhante: Crime e Castigo, de Dostoievski. O Príncipe, de Maquiavel. A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Entre outros clássicos semelhantes. O comentário entre meus amigos que tinham lido a matéria foi que os criminosos estavam tendo uma formação melhor que a polícia.

E é verdade. A estratégia do PCC foi brilhante. Deixou a polícia rodando como barata tonta. Senão, vejamos: na primeira madrugada, ataques a postos da PM e casas de policiais. A reação foi o bloqueio de avenidas como a 23 de maio (por quê?) e a Corifeu de Azevedo Marques (por quê?). Na segunda noite, ataques a agências bancárias, fóruns e outras instituições. A reação foi mais ou menos a mesma e a afirmação de que as coisas estavam sob controle (de quem?) e que São Paulo seria retomada (!!!) pelas forças da legalidade. Na terceira noite, dezenas de ônibus queimados.

Em entrevista coletiva na tarde de segunda-feira, o comandante da Polícia Militar, coronel Fechecler, demonstrando nervosismo e um português um pouco limitado, afirmou que a ocorrência de ataques a policiais estava diminuindo. Muito sagaz. Depois, afirmou que trinta e tantos criminosos haviam sido mortos e outros tantos estavam presos, e portanto tudo estava sob controle. Mais tarde, afirmou: “deveremos ter mais baixas. Vamos ter mais baixas. Estamos em guerra!”. Disse também que a paranóia da população era injustificada, mas que as empresas de transporte coletivo tinham razão em tirar seus ônibus de circulação, porque eles estão sendo atacados e queimados por criminosos.

Ou seja, ele não tem a menor idéia do que está acontecendo. Para quem ainda pensa que tem, vamos à brilhante frase com que a figura terminou seu discurso: “Por que a cidade não parou hoje?” e explicou que ela “não parou” graças ao brilhante trabalho da polícia.

Seu Fechecler, a cidade parou. E como.

Hoje, estive em Higienópolis, no Brás e na região da Santa Ifigênia, centro da cidade. Em todos esses lugares, vi aquelas Blazers da PM tentando avançar em meio aos engarrafamentos, sem grande sucesso. No Brás, vi os suspeitos que estavam sendo detidos: nenhum deles com a menor aparência de ameaça. Dois, por sinal, na casa dos 50 anos, gordinhos, meio carecas... Dá-lhe!

O PCC é muito mais preparado do que a polícia. Na segunda-feira, enquanto a PM saía à caça de “suspeitos” para prender e matar (foram trinta cadáveres hoje), os criminosos estavam calmamente em suas celas e casas fazendo telefonemas ameaçadores para o aeroporto de Congonhas, faculdades como a FAAP e assim por diante. Conseguiram o que queriam: deixaram seus inimigos batendo cabeça e pararam a cidade inteira. Aliás, pararam diversas cidades no Estado. Um prejuízo que certamente ultrapassa o bilhão de reais. O fechamento dos fóruns atacados impediu a polícia de conseguir mandados de busca e apreensão, prejudicando seu trabalho. Na linguagem do futebol, o professor (como os jogadores chamam os técnicos) Marcola, líder do PCC, deu um nó tático, aliás um verdadeiro banho, no governo paulista.

Enquanto isso, Lembo, Lula e outros lelés se reuniam tomando chá e chope. Devemos intervir no Estado ou não? Boa pergunta... passa mais um biscoitinho?

Mais sobre esse assunto em breve.

15.5.06


Aprendendo a usar os recursos do programa, resolvi colocar uma imagem, como todo mundo.

Isto aqui é um quadro de August Strindberg, renomado dramaturgo sueco. O sujeito era um tremendo dum atormentado, e isso transparece nos seus trabalhos, tanto no teatro quanto na pintura e nas demais oitocentos e treze atividades que exercia.

Ao contrário do que pode parecer, ele não pulou do penhasco logo depois de pintar este pôr-do-sol (ou nascer, sabe lá). Está claro que alguma coisa o perturbava, daí a distância dos objetos, a leveza dos constrastes e a brusquidão das pinceladas. Cá entre nós, acho as pinturas de Strindber até melhores do que suas peças...

Das coisas que aprendi

Um fim-de-semana inteiro como titular de um blog e já aprendi minha primeira lição. Vamos ao primeiro mandamento:

- Por mais que te seja vedado o acesso à internet durante um dia inteiro, ou mesmo um fim-de-semana, ou mesmo sete vezes setenta finais-de-semana, não postarás de madrugada.

Reli hoje de manhã o que escrevi na última madrugada, esse post sobre o Lembro, e - rapaz! - como está mal escrito... Num parágrafo de três linhas tem três "ocupar" e um "ocupação"... Se meu chefe vir isso, estou na rua.

Lembo e o cerco de Stalingrado

Preocupado com o ataque do PCC aos policiais aqui de Sampa, resolvi sintonizar a televisão no único canal que ela pega: esse mesmo, a Grobo. E lá estava o brilhante governador Cláudio Lembo explicando ao repórter que tudo ficaria bem:

"Logo retomaremos a cidade", disse a figura.

É claro que eu pulei da cadeira. Até então, o máximo de que eu tinha sido informado é que delegacias tinham sido atacadas, ônibus incendiados, policiais massacrados, cadeias rebeladas. E de repente o governador me avisa que a capital do Estado, com seus dez milhões de habitantes, havia sido tomada pelos bandidos!

Fiquei assustado. Liguei o rádio, mas a programação estava normal. Nada de emissões do governo provisório, nada de toque de recolher, nada. Descobri que o nosso governador estava fazendo seu papel ao contrário: em vez de acalmar a população, fazia mais alarme. OK, OK, pode ser uma estratégia.

Agora, se por outro lado a cidade tiver, sim, sido tomada, e as forças de ocupação tenham apenas se esquecido de ocupar as rádios, vai aqui para o governador uma dica de como ocupar a cidade:

1) Ocupe e guarde bem as redistribuidoras de energia. Um corte de eletricidade pode ser fatal para um exército ocupante ou invasor.

2) Tome em primeiro lugar os aeroportos e estações rodoviárias e ferroviárias. Os suprimentos chegarão por lá.

3) Poste os tanques nos principais entroncamentos.

4) Estabeleça um toque de recolher e dê ordem para abordar todo cidadão apanhado furando-o. Quem não responder, dê ordem para atirar.

5) Mande as tropas ocuparem jornais, rádios, televisão e assim por diante.

6) Nos pontos mais altos da cidade, no caso a av. Paulista, coloque canhões em pontos estratégicos.

Seção diálogos: APL

Diálogo verídico no local de trabalho. Sujeito um é um Zé Mané qualquer. Sujeito dois é uns vinte anos mais velho e experiente no ramo editorial.

Sujeito Um: Caramba, existe uma APL!
Sujeito Dois: APL?
Sujeito Um: Academia Paulista de Letras.
Sujeito Dois: Ah sim, claro!
Sujeito Um: Pra que serve?
Sujeito Dois: Pra que serve? Bom, mais ou menos a mesma coisa que a ABL.
Sujeito Um: Que seria?
Sujeito Dois: Bom... a ABL tem o vocabulário ortográfico... e o chá das cinco...
Sujeito Um: Então a APL tem um vocabulário ortográfico só dela? A ortografia em São Paulo é diferente do resto do país?!
Sujeito Dois: Não... eles não têm um vocabulário ortográfico... mas têm o chá das cinco.
Sujeito Um: Ah, então está ótimo!

Cai o pano.

14.5.06

"Sou feia mas tô na moda"

Chego em casa de minha mãe para comemorar o famigerado e caríssimo Dia das Mães. Mal entro, ela vem com papéis na mão pedindo a assinatura de um abaixo-assinado. Leio e fico estarrecido: a motivação do documento é impedir a construção de um shopping-center com quinze torres, cinemas e tudo mais que tem direito no terreno em frente.

Explico. Minha mãe mora no Morumbi, zona sul de São Paulo. Mas não é o Morumbi do shopping homônimo, nem da Casa da Fazenda, nem do estádio, nada disso. Ela mora no, digamos, "Morumbi profundo". Um lugar acessível apenas aos que têm a paciência e a força de vontade de percorrer quilômetros e quilômetros de avenida Giovanni Groncchi (aquela que todo mundo chama de nhoque).

O condomínio - quem mora em São Paulo já deve ter adivinhado - chama-se Portal do Morumbi. É o mais antigo do bairro; reza a lenda que seu idealizador e construtor foi à falência após realizar seu projeto e se suicidou de desgosto. O lugar era tão distante que ninguém queria morar lá.

Se tivesse esperado um pouco antes de se matar, o sujeito provavelmente teria virado milionário. A região cresceu bagunçadamente (como todo o resto da cidade), com o agravante de que é tão longe do centro que ninguém parece ter muita disposição de reclamar. A tal da rua do nhoque continua com suas mesmas duas pistas mirradinhas, mas dia a dia surge um novo edifício de vinte, trinta (não estou exagerando) andares em volta. Um prédio que a Globo sempre usa em suas novelas é um dos mais velhos. Fica aqui na frente. Data da década de 80 e é famoso por estar colado na favela de Paraisópolis, um enclave gigantesco escondido atrás de ambos os lados da avenida. Digo escondido porque a rua passa no alto do morro; as construções da cidade formal a margeiam e atrás, só para quem tem interesse em ver um pouco da realidade do nosso país, a gigantesca favela que de tão grade tem três ou quatro nomes diferentes (desculpe se não dou o número exato. Isto aqui não é uma redação e eu não vou checar).

E o Morumbi não pára. As duas avenidas que chegam até mais ou menos perto do Portal (estou sendo condescendente) continuam do mesmo tamanho que antes: estreitas. São a já referida nhoque e a insuportável Francisco Morato. Vá lá: tem também a Eliseu de Almeida, um pouco mais distante. A não ser pela faixa de ônibus da Morato, não mudou grande coisa em termos de infra-estrutura. (Pintura de faixas, colocação de sinais e outras maquiagens não contam.)

(A faixa de ônibus merece um parêntese. Eu queria saber da ex-prefeita Marta Suplicy por que ela acaba na altura do Shopping Butantã. A maioria das pessoas simples mora mais afastado. Por que a faixa vai só até onde vivem os ricos, que andam de carro e não precisam de ônibus? Mistéeeerio... Agora o pessoal do Taboão tem menos ônibus, mas quando chega na Rebouças ele anda mais rápido. Vai ver foi por isso que ela perdeu a eleição nas classes mais baixas...)

Depois desse nariz-de-cera enorme, que vou chamar pelo eufemismo de "introdução", vamos ao que interessa. O Portal do Morumbi é provavelmente o último lugar habitável de São Paulo. Todo dia o jornal vem com anúncios de lançamentos imobiliários prometendo "viver em plena São Paulo como se fosse no campo". Ou "um oásis verde no meio da maior (sic) cidade da América Latina". Mas, analisando mais de perto, não dá para chamar um quarteirão grandinho com um bosque de meia dúzia de árvores mirradas de "área verde", que dirá "oásis".

O Portal, portanto, é a única área realmente verde da cidade. Pequena, mas fazer o quê? Pelo menos, podíamos desfrutar da vizinhança de uma escola que talvez não tenha se destacado em termos de qualidade e renome, mas certamente tem o melhor ambiente para a criação da molecada em toda a cidade. Plantada numa área gigantesca entre a avenida do nhoque e a rua São Pedro Fourrier, a Nossa Senhora do Morumbi (ou Mopyatã) só ocupa de fato cerca de um terço disso (eles não souberam informar a área exata. Acontece.) com as salas de aula, ginásio e o campo de futebol (enorme, excelente, já joguei lá). O resto é pura mata. É uma bênção para alguém condenado a viver em São Paulo ter como vista esse terreno.

Mas!

De repente descobre-se que esse mato todo não é protegido por nenhuma lei, só mesmo a boa vontade das agostinianas que cuidam do colégio. Ou cuidavam, porque a área foi vendida e é lá que vão construir as quinze torres, shopping center e mais o que a cafonalha do bairro quiser.

(cafonalha mesmo, desculpem, mas o pessoal do bairro é muito, muito cafona. Nouveau riche, como dizem.)

Vamos aos fatos: há coisa de doze anos, meus pais se separaram. Pouco depois, meu pai manifestou seu alívio de não precisar mais passar pela avenida nhoque para chegar ao trabalho. E ele tinha razão. É insuportável. Todas as vias que comunicam o bairro com São Paulo são insuportáveis: engarrafadas, esburacadas, estreitas, mal-iluminadas e perigosas. Em dois sentidos: tanto de acidentes - já perdi amigos nessas curvas descompensadas construídas por engenheiros provavelmente bêbados - e de assaltos: já perdi amigos baleados por bandidos que se aproveitam do fato de que a população é endinheirada, a polícia é distante e a prefeitura ausente.

Quando me mudei do Morumbi, minha qualidade de vida aumentou terrivelmente, embora tenha perdido o verde do Portal e do colégio. Isso porque eu moro na frente do Minhocão (papo para outro post). Só de não ter que circular por aquelas ruelas já sou um homem mais feliz.

Agora, digam-me: se numa época em que metade dos prédios altíssimos (e cafonas) não existiam já não se conseguia andar pelo Morumbi, como vai ser quando esse empreendimento estiver pronto?

Pergunta central: São Paulo não tem um plano diretor? Não existe uma separação de zonas? Não existem relatórios de impacto sócio-ambiental para a construção de novos empreendimentos? Não existem órgãos fiscalizadores?

Em Higienópolis, dia após dia um casarão quase centenário é derrubado para dar lugar a um desses espigões que escondem o céu. Surpresa: as casas nem sequer eram tombadas. Como é possível que esses monumentos não tenham nenhuma proteção? Começo a achar que o Cesar Maia, que tombou metade da zona sul do Rio de Janeiro, sob protesto das imobiliárias, não é lá tão maluco quanto parece.

Em Cerqueira César querem agora construir um hipermercado. Como?! Já ninguém consegue se deslocar por ali! Para chegar do meu trabalho, na Paulista, à minha faculdade, na Mooca, eu passo mais de cinco minutos só na alça de acesso à Radial pela 13 de março. São... cem? duzentos? metros. E nesse trechinho miúdo escorrem a cada mês duas horas da minha vida.

Pergunto de novo: esta cidade, cujos moradores se orgulham tanto do pogrécio, não tem um plano diretor? Será que as pessoas não se sentem desconfortáveis por não terem calçadas onde caminhar? Será que elas não vêem como uma maldição ter que viver encaixotadas em apartamentos, carros e shopping apinhados? Ou só ter como opção de área de lazer aquele fétido parque do Ibirapuera? Será possível?

Acho que estamos ficando loucos. De Gaulle tinha razão quando disse que o Brasil não é um país sério. Não é mesmo. Não pode ser sério um país cuja cidade mais rica permite sua autodestruição e ainda aplaude.

Assinei o abaixo-assinado no mesmo instante. E Deus permita que eu me mude logo de país!

13.5.06

Putz que péril!








Cara, tá cheio de possibilidades e configurações neste treco que eu não tenho nenhuma, isto é, absolutamente nenhuma, idéia do que querem dizer.

Alguém me explica por que essa turma de tecnologia inventa todo esse vocabulário surrealista?

A primeira vez a gente nunca envelhece. (Mentira!)

Este é o meu primeiro post. Demorou, mas eu tenho meu blog. Um dia acontece, a gente cede ao devir. Eu não planejei nada: cá está.

Pra quê este blog? Boa pergunta, não tenho idéia, teve gente por aí dizendo que era uma boa idéia e eu acabei comprando. Vamos ver se dá caldo.

O que eu vou fazer aqui? Vamos ver. Não pensei muito nisso, mas acho que à medida que eu for pensando em uma e outra coisa, posso postar aos poucos. Se alguém se der ao trabalho de ler, por favor comente, responda, de repente começa um debate, uma conversa interessante, e a coisa engrena.

O que quer dizer esse título? Parece um paradoxo, mas pensando bem, é o que a gente faz na maior parte do tempo... não é sempre que lemos coisas realmente vendo, olhando o que está escrito. O mais comum é que as mensagens que flanam à nossa volta simplesmente se imprimam na nossa cabeça sem que percebamos. E, como diz Hegel, não se pode escapar ao devir. Vou escrevendo, mas não tentem prestar muita atenção no conteúdo.

Mais sobre o título: Não gosto tanto assim dele. Quem acabar caindo aqui, faço questão que sugira alguma coisa diferente. Vai que alguma coisa cai no meu gosto? Eu troco na hora. Por favor, colaborem.

Valeu, é isso.

P. OSREVNI

PS: Não bebam de estômago vazio, realmente não dá certo.

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