31.10.07

Introdução à Toscana


Vão me acusar de nostalgia, já sei, mas bateu uma vontade doida de voltar a um assunto que, em princípio, já ficou para trás. Por sorte, não é daqueles temas que caducam, como as ditas "atualidades", tão efêmeras quanto uma chamada de primeira página em portal da internet. (Curioso, não? Até poucos anos atrás, diríamos "notícia de jornal". Mas essa aí dura a eternidade de um dia. Para nós, contemporâneos, já pode ser considerada perene!)

Desculpem a digressão. Fato é que o tempo passa tão rápido, e o inverno promete um padecer tamanho, que não posso tirar da cabeça as memórias do verão. A estação da modorra, como eu já disse outras vezes neste espaço, fez que fez, e conseguiu não ter de passar por Paris este ano. Entendo perfeitamente sua opção: nos meses de férias e claridade, todo mundo prefere tomar a rota do Mediterrâneo.

Não teríamos visto o verão de 2007, se não tivéssemos a boa fortuna de encontrar passagens de trem em promoção para a Itália. Foram duas semanas debaixo de uma lua que encheria de inveja o sertão do Cariri, a tal ponto que chegamos a pedir arrego. Nós, os brasileiros, que enfrentamos com brio as areias de Ipanema em pleno Janeiro. Mas Ipanema tem água-de-coco, mate Leão e biscoitos Globo. Já Florença só tem escroques e hordas de americanos com camisas floridas.

Deixemos Florença para lá, que é tema para outro texto, daqueles bem sardônicos, demolidores, inclementes. Abandonamos essa cidade de ímpios, outrora magnífica, antes do tempo. Como os apóstolos seguindo instruções de Cristo, sacudimos a poeira das sandálias ainda na estação da cidade, um edifício de arquitetura fascista que não deixa dúvidas sobre o caráter da localidade. Estávamos a ponto de decretar a condenação da Itália. Já lamentávamos o heroísmo de Garibaldi, que libertou o país do domínio austríaco, povo tão organizado, honesto e competente... O que resgatou o orgulho (vá lá, a aceitação) do país de nossos ancestrais foi a descoberta, quase por acidente, da Toscana, a legítima.

É irônico que tenhamos caído ali pelo desespero de escapar, justamente, do povo que tenta reproduzir a ausência de escrúpulos dos patronos, os Médici; a cidade em que um copo d'água custa meio rim, e saber as horas, o olho esquerdo. Encontramos, por um preço bastante razoável, um hotel perdido entre duas cidades: Chiusi e Chianciano. O acesso à hospedaria, anunciava a página, se fazia por trem, depois ônibus, depois uma caminhada. Pois era bem o que queríamos: distância e isolamento. Tomamos o primeiro trem.

Excelente decisão. Lá ficamos por três dias, em que cheguei a temer que estivesse morto. Na minha fantasia, tudo podia se explicar da seguinte maneira: a desidratação dera cabo de nós em plena margem esquerda do rio Arno. Os florentinos, em vez de nos conduzir a um hospital, esvaziaram nossos bolsos e jogaram dados por nossas roupas. Esgotado o garimpo, abandonaram os cadáveres sobre a calçada. Para os urubus. Os deuses, aviltados, compadeceram-se de nossas penas, e fizeram-nos crer que estávamos salvos, aproveitando o lado verdadeiramente maravilhoso da região.

Não será com um único texto que contarei tudo que passamos ali, antes de sermos atirados à dura realidade de Roma, outra cidade que já foi um esplendor. Este se pretende introdução a uma série, como tantas outras que já prometi (e poucas vezes cumpri). Cada detalhe daquele canto, que redimiu a península a nossos olhos, merece um relato independente. Laura, dona do hotel, que se delicia em ajudar os hóspedes a aproveitar a estadia da melhor forma possível. Franco, proprietário de uma pequena, mas sofisticada vinícola, que teria alegremente esvaziado sua adega conosco, se não estivéssemos dirigindo. A senhora encurvada que vendia frios em Castiglione del Lago, vila deslumbrante, à beira do lago Trasimeno (só que lá não é Toscana, mas Úmbria). Foi onde provei, também, a melhor refeição de minha vida, que superou até a de Turim. Os Etruscos, antigos habitantes daqueles morros, povo que encarava a morte com simpatia e sabia tirar o melhor das derrotas. Enfim, cada cidade medieval que visitamos, os museus, as estradas, os castelos, os intermináveis trigais pontilhados de ciprestes.

Valerá a pena concentrar-se sobre esse período nas postagens dos próximos dias. Falando em dias, é pena que foram só três. Quando partimos, aqueles mesmos deuses ainda tentaram nos advertir contra a tolice que cometíamos. (Hybris, diriam os dramaturgos gregos.) Uma greve nos manteve presos em Chiusi por uma tarde inteira. Ah, se tivéssemos renovado a reserva do hotel! Falhamos nesse ponto. Ao menos, tivemos a sorte de conhecer um Massimo, alma de enorme nobreza, e sua filhinha Sophia. Mas esses dois também valem um texto exclusivo.

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26.10.07

A oficina de um passado vivo


Bons são os edifícios mistos, daqueles que se faziam antigamente, com lojas no térreo e apartamentos por cima. Da maneira como se planejam hoje as moradias e as cidades em geral, parece que a arquitetura torce o nariz para eles. É pena, creio eu, mas não posso fazer nada. Sei que estou falando como um romântico; para me defender, evoco um argumento de autoridade: Paulo Mendes da Rocha também gosta, e ele é um ganhador de prêmio Pritzker. Com essa companhia, não posso estar tão errado.

Pois bem, apesar de toda essa preferência pelas construções mistas, nunca tinha morado em uma. Dirá algum rabugento que isso explica muito. Não teria tanto entusiasmo, se conhecesse na pele o que é viver sobre comércios movimentados, barulhentos, insuportáveis. Nada mais ultrapassado e miserável, para nós que vivemos na era do condomínio fechado! E também confesso, é bem o momento, que já recusei um apartamento porque era no primeiro andar, logo acima de um açougue. Tive receio de dividir a vida com ratos, baratas e o cheiro da carne. Pois é, sou um hipócrita.

Acontece que, em torno dessa ciranda de gostos, idéias e ações, há um elemento chamado mundo. E o mundo, já sabemos, dá voltas. Eis que, agora mesmo, finalmente, passo pela experiência de viver na estreita vizinhança de lojas e outros serviços. Não posso nem dizer que vivo acima deles, porque o apartamento é térreo. Trocando em miúdos, durmo e acordo espremido entre um laboratório de próteses dentárias e um entreposto da Cruz Vermelha para distribuição de roupas usadas.

Não posso dizer que tirei a sorte grande. Mendigos fazem fila diante de minha porta, na expectativa de obter casacos e cuecas. Quando partem, deixam para trás seus dejetos e garrafas vazias. Ou cheias, mas não de bebida. Do outro lado, zumbem os aparelhinhos dos protéticos, cujo timbre, irônica mas bem apropriadamente, faz lembrar os dos dentistas. Como se não bastasse, um dos profissionais, sempre animado e expansivo, tem o curioso hábito de conversar pelo celular, manhã cedo, logo ao chegar ao serviço. Muito educado, não quer incomodar os colegas. Prefere ir à rua e discutir diante da janela mais próxima, que, ora, é a minha. É impossível demovê-lo.

Não obstante, estou contente com a nova experiência. As dezenas de pequenas lojas enchem de vida o bairro, por onde há sempre gente circulando, comprando, discutindo. Se, não raro, caminhões bloqueiam a rua, tanto pior, a gente desvia. Se temos pressa, esbarramos uns nos outros, rudes e irresponsáveis, mas não nos ofendemos particularmente se nos esbarram. Xingamos sempre, é claro. Mas é só para estar certos de que não somos estátuas de mármore.

Essa animação revela detalhes inusitados, muitas vezes deliciosos e pitorescos, difíceis de perceber no meio da algazarra. Costumo passar diante de um edifício, aqui perto, cujo negócio, ao rés-do-chão, é uma oficina de conserto de cadeiras. O moveleiro, se posso chamá-lo assim, é um senhor idoso, que trabalha diante da janela aberta para a rua, trançando seu vime e encaixando a madeira, em gestos lentos, discretamente trêmulos, com a ajuda de óculos espessos.

A oficina jamais está plenamente iluminada. Conta apenas com um abajur que esclarece, sem grande brilho, a área de trabalho do artesão, e confere uma aparência fantasmagórica às cadeiras; as prontas, afastadas a um canto, e as enfermas, que se empilham à espera do remendo do encosto furado ou o encaixe do pé que se quebrou.

Esse homem velho, que passa o dia todo sozinho em seu ambiente de lida, está ali sem falta, semana após semana, cumprindo o mesmo serviço simples, com o mesmo cuidado. As pacientes são mais antigas ainda do que ele. Cadeiras como as do famoso quadro de Van Gogh, ou mais elegantes, com braços de veludo, como as de um palácio. Objetos de séculos idos. Custo a acreditar que ainda existam na casa de alguém, e constato, algo surpreso, que existem na minha própria.

O homem que conserta cadeiras na minha rua é como uma encarnação da história diante de meus olhos, em pleno século digital, com quase todos seus atributos de passado real, vivo. Tão prosaico em seu quotidiano, esse negócio pode se dar ao luxo de ignorar que o tempo passou. E, com o orgulho febril de último de sua espécie, herói entristecido, tenta ignorar que o tempo sempre passará. Que esteja fadado a desaparecer sob a avalancha de cadeiras mais modernas e confortáveis, pouco lhe importa.

20.10.07

Greve (d'après Eisenstein)


Cena inicial de Greve, clássico do mestre russo Sergei Eisenstein

Europeus, em geral, adoram greve. E cada povo, claro, à sua maneira. Em Londres, certa vez, calhou que eu fosse surpreendido por uma. O dia inteiro sem metrô. Mas que eu não me preocupasse, contemporizou um tranqüilo funcionário. Qualquer chefe, qualquer professor, qualquer um perdoará o atraso. A greve britânica é um elemento natural do processo político. Quando há negociação importante em vista, uma categoria cruza os braços e pronto. Só para colocar as cartas na mesa. Mais civilizado, impossível. A terra de Thatcher, pelo visto, não é tão liberal quanto gosta de pregar.

Naturalmente, o dia em questão teve um trânsito histórico. Os automóveis em fila, acredite, literalmente não saíam do lugar. Mesmo assim, não ouvi uma buzina sequer. Tomei um ônibus e, afetado pelo fuso horário, adormeci. Quando acordei, sabe Deus após quanto tempo, estava rigorosamente no mesmo ponto. Metade dos passageiros já haviam descido. Segui o exemplo. A tal ponto a população reagia com tranqüilidade à situação potencialmente caótica, que não ouvi reclamações.

Outro canto em que uma greve me surpreendeu foi a Itália, aquele rabicho irritante de terra onde, não bastasse terminar, tudo começa em pizza. No vilarejo toscano de Chiusi, quis comprar passagem para Roma. A moça que deveria me dar informações, por trás da cara amarrada que caracteriza sua nacionalidade, limitou-se a fender o ar com um No! contundente, e ênfase no ponto de exclamação. Normal. A polidez, vinda de um italiano, é algo que me surpreende. Ela apontou para uma folha de papel, ali ao lado, com uma só palavra: Sciopero. Minha expressão vazia não a comoveu. Permaneceu imóvel, saboreando a indolência. Foi o vendedor de uma banca que me explicou o que ocorria. Uma greve nacional de trens, até o início da noite. Era um sinal. Eu deveria ter desistido de conhecer a Via Ápia, para permanecer entre os ciprestes da Toscana.

Os franceses, em particular, adoram greve. É parte de sua definição como povo, assim como os dossiês, as baguetes e a insatisfação. Não é absurdo que uma central sindical convoque uma paralisação apenas porque faz muito tempo desde a última. E a coisa é agressiva. Não basta parar o metrô. O país todo precisa ficar sem trem, ônibus, bonde, bicicleta. Todo mundo em casa, por favor.

A última greve inesquecível, de que todos falam com respeito reverente, aconteceu em 1995. Doze anos atrás, quando o século era outro. Por semanas, ninguém foi, ninguém veio. No dito Hexágono apertado entre Espanha e Alemanha, não circulou transporte público algum. Pessoas dormiam nos trilhos, sem ter como voltar para casa. Foram quase novas férias em pleno outono. Algo semelhante ocorreu há dois anos, durante os protestos estudantis que paralisaram a Sorbonne.

Nesta semana, anunciaram "Le jeudi noir": quinta-feira negra, como alguns jornais se referiram ao movimento. Dia 18 de outubro, as composições manteriam repouso por 24 horas. A memória de 1995 logo assomou à mente coletiva dos franceses. Exagero, talvez; mas, naquela ocasião, tudo começou com um plano de um só dia, que foi se estendendo até quase dar um mês. Há quem preveja algo parecido. A greve deveria durar 24 horas, mas já passou de 48, embora uma parcela razoável do tráfego já esteja restabelecida.

Foi o suficiente para causar confusões de todo gênero. Congestionamentos. Filas nos pontos de táxi. legiões de estudantes e trabalhadores marchando pelas vias com uma dificuldade que nem as tropas de Hitler tiveram. As bicicletas públicas, em geral confiáveis, desapareceram nas mãos de usuários amedrontados pela perspectiva de depender das próprias pernas. Chegamos a perder duas entradas para um espetáculo porque não conseguimos chegar até o teatro.

Como os londrinos, os parisienses têm o hábito da greve. E o gosto, conforme eu disse. É assunto, e tudo que é assunto vale a pena. Sobretudo se for negativo. Mas, ao contrário de seus antípodas insulares, os franceses não reagem com galhardia. Cheguei a tentar um caminho pelo metrô. Levei sorte na primeira linha. Esperei apenas uma dezena de minutos. Na segunda, não foi bem assim.

Era uma plataforma aberta, elevada, exposta ao vento de quase inverno. Uma multidão já se acumulava, impaciente, impaciente, impaciente. A cada três minutos, um alto-falante estridente nos lembrava que a circulação estava "fortemente perturbada", algo que podíamos constatar pelo silêncio imóvel dos trilhos. De súbito, uma outra voz, feminina e envergonhada, assume o microfone. Gaguejando, anuncia: o próximo trem virá em trinta minutos.

Parecia que o time da Argentina entrava no Maracanã. Uma vaia que materializou no ar vibrante a ira de centenas de cidadãos. Não houve um mortal que não recolhesse suas coisas para partir. Melhor esperar no café da esquina, tomando um aperitivo qualquer. Do meio da turba, porém, destaca-se um homem baixo, manco, velho e desdentado, com ar de desabrigado, que coxeia na direção oposta. Aciona o botão do telefone de emergência. Do outro lado, um grevista ingênuo atende a ligação. O velho baixo e coxo fala numa voz enrolada de ébrio.

- Chamem um táxi, por favor.
- Hein? - responde o grevista, inocente como uma criança.

O pequeno homem, externando toda sua raiva, exalta-se. Sobe na ponta dos pés para aproximar mais o rosto do aparelho.

- Vocês vão pagar um táxi para mim, seus "isso e aquilo"! Eu quero ir pra casa, seus "isso e aquilo"! Não vou ficar aqui mofando neste buraco!

Todos interrompemos nossa retirada para acompanhar a gritaria. Alguns sorriem, outros caem na risada franca. Muitos, ali, gostariam de fazer o mesmo. A essa altura, o homem já não fala mais com um grevista, apenas uma caixa sem vida. Mas isso lhe é mais do que suficiente. Já reclamou. Seu instinto francês está saciado, ele pode prosseguir com sua vida. E, de fato, o faz. Toma o mesmo rumo dos demais usuários. Sempre praguejando, em coro com a multidão.

16.10.07

Um vício é um vício


Dizem que parar de fumar é muito difícil. Não sei, jamais fui fumante. Comprar cigarro, observe, nada mais é do que transformar dinheiro em fumaça. Sem falar no cheiro que impregna as roupas e os ambientes, a tosse, o câncer. Fico imaginando o desespero de tantos colegas durante uma longa palestra da qual não se pode sair para aliviar o vício, e a idéia me parece bastante engraçada.

Existem outros vícios, sim. Eu não poderia escapar de todos. Está para nascer o homem que vive sem obedecer a alguma substância, impulso ou idéia. Mas estou livre dos principais, acredito. Ao menos, dos mais perigosos. Não consumo químicos ilegais. Minha relação com o álcool é plenamente gustatória. Que culpa tenho, se há uma variedade tão grande de bebidas com valor gastronômico? Sói prová-las o mais rápido possível. E eu o faço. Não a ponto de ser alcoólatra.

Há um vício, porém, de que não consigo me libertar, e sei que é mortal para o organismo. Uma substância cheirosa, líquida, negra e quente. Uma frutinha vermelha que enriqueceu muito latifundiário brasileiro. Vendida para o mundo inteiro, torrada e moída, fervida e coada, servida no desjejum ou após as refeições. Pelos céus, eu admito, não consigo passar o dia sem tomar café.

Começou quando decidi que deveria escrever sem parar. Foi, digamos, uma decisão leviana de juventude. Acreditei que pudesse ser um desses autores que se debruçam sobre o teclado na hora do almoço e só se levantam na hora do café-da-manhã. Horários definidos por e para outras pessoas, porque, com esses artistas geniais e incompreendidos, a comida serve apenas para não cair doente sobre uma página incompleta. Esses abnegados não dão importância às coisas boas da vida. Não buscam prazeres, nem glórias. Querem apenas fazer sua literatura... e assim por diante.

Jamais consegui. Tentei por alguns dias, mas sempre ocorria uma dessas três coisas: 1) Algo me puxava de volta para o mundo exterior, um jogo de futebol, uma bela morena passando na janela, uma goteira pingando na cozinha. Qualquer coisa. 2) Eu me via sem assunto. Queria escrever, mas, bolas, sobre o quê? Com que palavras? Tentava escrever apenas frases, até que delas saísse algum assunto. Não funcionava. Ou as frases eram ruins, ou o assunto era banal. 3) Eu tinha sono. Dormia na escrivaninha, acordava, dormia de novo. Escrever é algo muito chato, já aviso a quem quer começar. Ver televisão é mais interessante e, se dormimos, não sentimos culpa.

O café, insumo insidioso, ofereceu-se como solução. Prometia mil maravilhas. Que me deixaria acordado, alerta, esperto. Que faria de meu cérebro uma máquina incansável, sempre produzindo idéias, frases e imagens. Que eu me tornaria o mais produtivo dos homens, preenchendo laudas e laudas com letra miúda e nervosa. O café, mais do que as drogas, o álcool ou o tabaco, é o segredo dos grandes autores. Acreditei nessa história. Caí no conto.

Não demorou para que ele se tornasse minha fonte principal de alimentação. No trabalho, eu afundava o dedo no botão da garrafa térmica. Duas, três vezes por dia. E todos comentavam. Cada colega preparava para si uma pequena xícara a cada manhã. Quanto a mim, era um copo cheio até a borda. Mais de uma vez, vi meu chefe meneando a cabeça, em negativa ressentida. À tarde, quando a garrafa estava vazia, eu quase me recusava a continuar prestando meus serviços. Só não o fazia para não ser mandado embora. Sabe como é a situação, a coisa não está fácil para ninguém.

Há anos, eu me arrasto para fora da cama, esbarro em todos os móveis, vou até a cozinha e, em gestos de cágado, preparo a cafeteira. Espalho-me no sofá, à espera, ainda sonhando, os olhos bem atados. Quando ouço o chiado da bebida pronta, não sei explicar o que se produz em mim. Desperto imediatamente e pulo sobre ela. Bebo tudo de uma vez, e só daí parte o dia. Minhas roupas cheiram a café. Meus lençóis, idem. Minha mulher, às vezes, tem insônia, apenas da essência que a roupa de cama exala. Ela, que também é viciada, e já o era antes de nos conhecermos.

Parar parece impossível. Um dia sem café corresponde a um dia como morto-vivo preguiçoso, mais morto do que vivo. Não quero conversar, mal cumprimento as pessoas, a luz do sol me incomoda. Arrisco dizer que é como se nesse dia eu simplesmente não tenha existido. É um vão na minha existência, a negação da continuidade do tempo.

Pois bem. Há coisa de uma semana, decidimos, juntos, reduzir o consumo da bebida. No lugar das duas canecas diárias, uma xícara. Pois bem. Funcionou no primeiro dia. No segundo, fui acometido da dor de cabeça típica dos dias de pouco café. Resisti bravamente. Depois, vieram os dias cheios de aulas e trabalhos por entregar. Tomamos duas xícaras, cada um. Uma escorregadela, certamente. Mas nada que se compare às canecas transbordando de outrora.

Tenho suado. Tenho tido pesadelos. Não tenho conseguido manter o ritmo de leitura e estudos. Um vício é um vício. Mas hei de resistir. Mesmo se, hoje, algo tenha dado errado. Escrevo com a caneca amarela ao lado do computador, oferecendo-se como prova de meu fracasso. Mas hei de resistir. Parar de fumar, dizem, é muito mais difícil. E tem muita gente que consegue.

10.10.07

Instrumentos de vingança

- Eles aproveitam. Revendem mais barato pra quem faz a fila em cima da hora.
- Como é?
- Puta sacanagem, não acha?

Mais do que uma sacanagem, ele recebeu a informação como agressão direta. Dolosa. Sentiu mesmo uma pontada no estômago, como se uma gastrite viesse de lhe nascer, assim mesmo, de uma hora para outra, como efeito de uma descoberta que o revoltou para além de sua alma.

A portadora das más novas era uma antiga amiga, com quem se encontrara por acaso. Não a via há anos, desde que uma tentativa de seduzi-la fracassara tão vergonhosamente que resultou em rompimento definitivo. Por causa do episódio infeliz, ele sentia vergonha só de se lembrar da moça. Ela, em compensação, perdera o amigo sem ter culpa maior do que uma forma de se expressar talvez um pouco dura e direta além da conta.

Naquele momento, porém, não houve como desviar o caminho. Irritado, nervoso, a nuvem de ódio que envolvia seu raciocínio bloqueou a capacidade de reconhecê-la, mas não pôde impedir um olhar furtivo para uma bela e até então anônima figura feminina que cruzava seu caminho. Foi ela que o reconheceu, e gritou seu nome com a alegria de quem reencontra o melhor amigo. Como se o afastamento tivesse sido coisa normal.

E, de fato, ela estava linda, ainda mais do que antes. Os anos lhe fizeram bem; a ele, só fizeram mal, segundo sentia. A disparidade, por injusta, o magoou. Respondeu ao cumprimento apenas para não revelar seu desconforto, esforçando-se por aparentar naturalidade.

A fortuna lhe concedeu um alívio quando ela perguntou o que o trazia àquela área. Era a oportunidade de que ele precisava para descarregar sua irritação e disfarçar o mau jeito. Contou que tinha vindo ao teatro, ali ao lado, na tentativa de trocar as entradas que havia comprado para uma peça, com data para dali a duas semanas.

Como sempre acontece, alguém inventara um jantar importante e o marcara para a mesma noite. É o dito imprevisto, a que todos estão sujeitos. Seria, é fácil concluir, necessário trocar os ingressos. Uma alteração simples e pouco traumática. De um dia para o seguinte, nada mais, para um espetáculo que fazia até um certo sucesso, mas jamais se apresentava com lotação esgotada.

Mas não é assim que as coisas funcionam, quando estão envolvidas pessoas de mentalidade estreita. A moça que o atendeu foi grossa: não o deixou terminar de expor a questão; e peremptória: ao interromper seu discurso tão humilde, sentenciou, através de uma frase padronizada, que os ingressos não são reembolsáveis, nem alteráveis. Nem sequer se deu ao trabalho de acrescentar que sentia muito. Apenas fez avançar o próximo da fila.

Mas ele não quis se dar por vencido assim tão rápido. Barrou o próximo e exigiu falar com um superior. A moça enrubesceu, pulou da cadeira e foi buscar sua gerente, uma mulher de baixa estatura, meia-idade e ar de mal-amada. Era tão grosseira e peremptória quanto a subordinada. Repetiu o decreto. Nem reembolsável, nem alterável. Ele começou a se exaltar. Era um cliente, ora bolas. Ela ameaçou chamar a segurança. Foi por pouco que ele não cedeu no ato, temendo causar um escândalo. Depois, iluminou-se em sua cabeça a percepção de que um escândalo seria prejuízo quase certo para o estabelecimento.

- Chame a segurança, então! É mais cômodo do que fazer seu trabalho!

Bem foi chamada, a segurança. Dois sujeitos enormes e carecas, de terno negro, que o atiraram para fora com uma gorjeta de cascudos e pontapés.

Com dores e hematomas pelo corpo, vinha agora sua antiga musa lhe dizer por que não era possível fazer a mudança nos ingressos: os lugares não-ocupados são vendidos novamente, a um preço bem mais baixo, para estudantes e outros sofredores, que se estapeiam para entrar na peça que já vai começar. Que aproveitadores!

Como era de esperar, o novo dado o enfureceu. Sua cólera transbordou em palavrões de vasto repertório, acompanhados de chutes repetidos no tronco mais próximo. A cena deve ter sido ridícula para os demais transeuntes. E um pouco assustadora. Muitos se afastaram, desviando do caminho. Só a amiga, que conhecia sua personalidade, não reagiu além de um alçar de sobrancelhas desdenhoso.

- Eles vão ver, eles vão ver, eu vou me vingar! - Ele pronunciou por entre os dentes, exibindo na mão direita, a meio palmo do rosto dela, os ingressos amassados por sua fúria.
- Como? - Ela se mostrava tão impávida, mãos nos bolsos e tudo, que sua atitude só contribuía para deixá-lo ainda mais irritado.
- Ainda não sei. Vou pensar. Lhe juro.
- Pago pra ver.
- Paga como?
- Não sei. Vamos ver o que você vai fazer, aí eu penso.

Assim se fez. Eles se separaram, e se reencontraram no mesmo lugar, no mesmo horário, duas semanas adiante. A noite fatídica. Ele pensava que ela não estaria lá, que teria esquecido. Passara duas semanas planejando, mas não tivera idéia que parecesse digna, e só compareceu porque não queria lhe dar a covardia por mais um motivo para desprezá-lo como homem.

Ela tinha, com efeito, se esquecido inteiramente do assunto, depois de tantos dias passados. Mas era seu caminho habitual de volta do trabalho. Ela estaria ali do mesmo jeito, como todo dia. Lembrou-se de tudo quando o avistou. Chovia, mas ele não considerara carregar um guarda-chuva, tão nervoso estava ao sair de casa. Sua condição era digna de lástima, ensopado e tremendo de frio. Mas ele sorriu, honrado pela sua memória, quando ela lhe perguntou o que ele tinha bolado. Quem diria! Ela se lembrava!

Mas ele não tinha o que propor. Estava preparado para se atirar no saguão do teatro, berrando feito um lunático, só para não privá-la de um espetáculo que vinha esperando há duas semanas. Mas ele já sabia de antemão que ela não se deixaria conquistar por uma atitude, no mínimo, pueril e condenável. O desespero não seria de grande valia. Talvez, admitiu para si próprio, fosse mais digno reconhecer o fracasso, simplesmente, e convidá-la para um aperitivo. Mas antes que ele pudesse abrir a boca, avistou a salvação.

Dez passos adiante, um casal de mendigos se apertava debaixo de uma marquise, tentando escapar da chuva, manter-se aquecidos e, milagre, dormir. Para ajudá-los, uma garrafa de vinho já quase enxuta. Era o plano perfeito. Ele se aproximou do casal. A primeira impressão que teve foi o mau cheiro. Vinha deles. Tanto melhor. Sacudiu o homem. Ele não acordou. Foi necessário abafar um princípio de asco e repetir o gesto, até sentir o bafo de álcool e perceber o movimento agressivo da boca em que faltavam alguns dentes.

- Que é, caralho?

A mulher também já começava a se agitar, despertando. Praguejava contra a vida. A outra mulher, a que era jovem e bela, mantinha-se a uma distância segura, incrédula, torcendo o cabo do guarda-chuva como se fosse uma peça de pano.

- Tenho uma coisa pra vocês. Estão com frio? Sei de um lugar pra vocês dormirem por mais de três horas. É quentinho e escuro. Que tal?

A mulher, revolvendo sobre o próprio corpo, afirmou repetidamente que aquilo era mentira, mentira, mentira. O homem, coçando o cabelo ralo das têmporas com suas enormes unhas amareladas e aneladas de sujeira, produziu uma careta de indecisão.

- Quer idéia melhor? Não existe! - Para convencê-los, acrescentou à proposta uma nota de dez. Novinha em folha, quase brilhante.

Foi o argumento perfeito. Dois pares de olhos salivaram. Os dois desabrigados se ergueram sobre os pés, com suas vestes rotas e a pele manchada. Pelas rugas do rosto, poderiam ser octogenários. Eram magros, desengonçados, pigarreavam e fungavam sem parar. Por um momento, ele chegou a sentir que se aproveitava de duas pessoas como se fossem seus brinquedos, meros instrumentos de sua vingança. Mas o olhar da mulher de hálito perfumado, às suas costas, removeu qualquer possibilidade de desistência.

Esticou o ingresso para o par de pobres-diabos. Apontou a entrada do teatro. Eles se puseram em marcha, capengando lentamente. O que aconteceria, uma vez que chegassem? Seriam barrados? Que escândalo! Aquele teatro não tinha medo de escândalos, mas, naquele caso, sofreria um processo que poderia colocar em risco sua existência. Fora a perseguição da imprensa. Então eles entrariam, assistiriam ao espetáculo, incomodariam o público? Quem sabe? Era o que ele mais desejava. A amiga se aproximou, boquiaberta.

- Isso que você fez foi de uma maldade!
- Eu sei. Mas foi a única vingança que consegui imaginar.
- E agora?

Ela sorria com um brilho nos olhos que ele jamais presenciara. Pelo visto, ela não tivera o mesmo lampejo que ele, sobre aproveitar-se de dois seres humanos. Tanto melhor. Ele sentiu que o espírito lhe retornava.

- Agora, eu estou com frio. Vamos tomar um café, e lá você pode me dizer como vai cumprir a promessa.

Foi ela que, na manhã seguinte, lhe apontou a chamada no jornal: "Casal mantém relações e interrompe peça". Ele riu ao ler o título. Sentiu-se um vencedor, um esperto. A matéria seguia. Grande parte da platéia do Théâtre du Rond-Point acreditou que a cena de sexo fazia parte do espetáculo. Alguns pagantes, pudicos ou elitistas, ergueram-se e partiram. A cena foi interrompida, os atores se paralisaram, contemplando a cena insólita. Só com a entrada dos seguranças, talvez os mesmos homens enormes e carecas, ficou claro que nada daquilo estava incluso no preço do ingresso. Os mendigos espernearam, gritaram, praguejaram, morderam seus assaltantes. Em vão. Foram expulsos da sala. Depois, chegaram policiais, e os levaram em cana.

Estavam presos. A vingança não poupara o teatro, é certo. Mas os maiores punidos foram os dois sem-teto. Terminada a leitura, ele suspirou, tomado de remorsos. Ergueu os olhos para a mulher à sua frente, cuja pele macia brilhava, refletindo do sol que entrava furtivo pelos vãos das cortinas. E imediatamente os baixou novamente, envergonhado do que fizera, arrependido de suas motivações. Considerou ir até a delegacia e pagar a fiança do pobre casal. Era o mínimo.

Ela percebeu que algo não ia bem. Seguindo sua intuição, levou a mão até seu queixo e puxou a enorme cabeça pendida com a delicadeza das sedutoras. Encarou-o sorrindo, doce, cândida, de uma forma como sabia não permitir defesa.

- Que foi? Algum problema?
- Eu me sinto mal -, ele explicou. - Pra me vingar do teatro e pra impressionar você, acabei cometendo uma injustiça. Eles estão presos por culpa minha. E são inocentes. Eu me sinto muito mal.

Ela respondeu com um gesto da mão, como quem afasta maus pensamentos da cabeça dele, e uma piscadela.

- Esquece isso. Na prisão, eles não vão passar fome, nem frio, nem vão pegar chuva. Aposto que vão até preferir. E você, trate de aproveitar o momento.

O argumento tirou de seus ombros um peso que lhe parecia uma tonelada. Às vezes, a mentalidade pragmática das mulheres é redentora.

PS: Esta história é quase baseada em fatos reais. Qualquer semelhança de nome é quase coincidência.

8.10.07

O mau comerciante


Michel não tem tino comercial. Nem um pouco. Faz parte do inexaurível contingente dos que, fora de sintonia com a época em que vivem, não nasceram para os negócios. Não é que lhe faltem interesse ou gosto. Ao contrário, ele adora o comércio. Loucamente. Sofre uma atração misteriosa pelo comprar e vender. Já se meteu no ramo do vestuário, da gastronomia, da arte. Aos trinta e cinco anos, não cansa de mudar de ramo. E essa é sua maldição.

Neste final-de-semana, mais uma vez, Michel encerrou uma empreitada. Está mais triste do que nos outros finais. Esse era seu sonho mais belo. Prometia uma vida prazerosa, confortável, e contato com gentes de todas as partes. A ilusão, como sói acontecer a quem se coloca além das fronteiras, teve prazo curto. Mal completou três anos. Ao final, dívidas e uma amargura difícil de abafar.

O projeto parecia infalível. Graças a um empréstimo bancário, obtido com esforço e rapapés, Michel comprou uma antiga casa no vilarejo de Giverny. A localidade, que abriga pouco mais de seiscentas almas, é o segundo destino mais visitado da Normandia. O sucesso é fruto de um quase acaso: ali assenta-se a última residência de Claude Monet, o grande impressionista. Ao redor da casa singela em que o pintor passou seus anos derradeiros, espraia-se o mais exuberante dos jardins, fonte de inspiração para algumas das telas mais famosas que há. As ninféias, por exemplo, que bóiam entre pontes japonesas e salgueiros, renderam painéis gigantescos expostos no museu da Orangerie, em Paris.

O sucesso do vilarejo é tanto que, durante cinco meses, tudo permanece fechado. Casa de Monet, Museu de Arte Americana, restaurantes, hotéis, residências. Tudo. Michel, ao se estabelecer em Giverny, sabia que teria de acumular, entre abril e outubro, o suficiente para passar o inverno sem sobressaltos. E não deveria haver problemas. Seus colegas e vizinhos estavam satisfeitos com os negócios. No inverno, projetam viagens para o hemisfério sul, como se pássaros fossem. Michel, a despeito dos bons serviços prestados e da dedicação, não teve a mesma sorte.

Conheci-o por telefone, quando já estava na Gare Saint-Lazare, estação cujos trens irrigam a Normandia. Rouen, Calais, Caen. Na noite anterior, Nicole e eu passamos horas procurando lugarejos para passar um par de dias, descansando de um mês de trabalho pesado, antes do reinício das aulas. Decidimo-nos por Giverny, finalmente. Custaria menos, era mais perto e mais reservado do que os outros lugares que se apresentaram. Separamos uma lista de hospedarias. Eram quase todas chambres d'hôte, versão francesa do bed and breakfast anglo-saxão, com a diferença de que o conceito é algo mais sofisticado. Em Giverny, os preços são quase indiscerníveis. Mas uma das casas oferecia algo além: um jantar completo, com explicações de todos os pratos, dos aperitivos, dos vinhos, da sobremesa. Era a casa de Michel.

Ele explicou que já não fazia mais o tal jantar, porque todo o material já fora empacotado. A casa estava vendida, ele entregaria no dia seguinte à nossa partida. Mesmo assim, escolhemos ficar hospedados ali. Foi uma ótima escolha. A casa, centenária, havia sido uma leiteria no início do século XX, conforme se via no cartão-postal pendurado no corredor de entrada, à guisa de quadro. A acolhida, esplêndida, louvável. O pequeno quarto, de paredes amarelas, dava para um milharal infinito. Como um todo, a estadia recomporia as forças do pior doente.

O problema econômico de Michel é que ele vê no cliente um amigo em potencial. O correto, num negociante, seria o inverso. Quase perdemos o trem, pelo tempo que gastamos conversando com nosso anfitrião à mesa do café. Em compensação, ele foi magnânimo. Quando lhe contei que não havia trazido meu violão para a França, foi buscar um que já não usava há anos, e o entregou em minha mão. Em seguida, pequenas lembranças. Um isqueiro com o nome da vila, um pequeno quadro de vidro para pendurar à janela, figurando a catedral. E, com um suspiro que concentrou toda sua frustração, a fotografia da casa que ele habitou naqueles três anos dedicados à hotelaria.

Na última manhã, quando partíamos, havia caixas de mudança espalhadas pela sala. Nem por isso, o tratamento que recebemos de Michel e sua esposa foi menos agradável. Quando anunciei a intenção de pagar, ele trouxe aquilo que seria a cereja do bolo. Cobrou, pela hospedagem, quase 30% a menos do que o acordado. Preço de amigo, ele explicou, em tom melancólico. Protestei. Menos do que deveria, é verdade. O orçamento de estudante não pode recusar descontos.

Michel não é um bom comerciante, mas é dono de uma alma de rara nobreza. Fechou e vendeu sua casa deliciosa no campo, e haverá de se dedicar a algum outro negócio. Quanto a nós, viajantes incuráveis, é certo que teremos excelentes lembranças dos dois dias que passamos entre as folhagens avermelhadas de Giverny. Mas, quando quisermos voltar, quem haverá de nos dar tratamento assim?

2.10.07

Um sonho em São Paulo


Eis a postagem de um sonho. Não quero fazer do leitor um analista de ocasião, por favor. Mas as imagens que meu inconsciente me impôs esta noite têm muito de cômico. Preciso aproveitar. E não é só isso. Sonhos passam quase sempre pelo assustador e o artístico. Finalmente, são muito reveladores para quem sabe interpretá-los; mas sobre isso, terei de perguntar ao meu amigo especialista em Freud, Jung e Lacan. A partir de agora, portanto, tente imaginar um blogueiro deitado no divã, mãos cruzadas sobre o ventre e ar de aflição.

Antes de entrar no sonho em si, é preciso dar elementos de interpretação, segundo o que guardo de quando tinha condições de investir em terapia. O que posso dizer é que me lembro do último pensamento antes de me ajeitar no travesseiro: "Quando for ao Brasil, agora que vendi o carro, usarei o transporte público, como faço aqui. Mas os preços mudam tão rápido que, ao tomar um ônibus em São Paulo, terei de, céus!, perguntar a tarifa." Por algum motivo, a situação me pareceu embaraçosa. Entrar no ônibus sem cartão magnético, só com as notas verdes de um real, e perguntar quanto custa... Acabei pegando no sono.

Coincidência ou não, sonhei justamente que me via em São Paulo, passando as férias. Visitei a família e os amigos. Estive até mesmo na velha faculdade, onde encontrei antigos colegas, um pessoal todo já formado e espalhado pelo mundo. Lá estava, aliás, um sujeito com que trombava quase todo dia, mas nunca foi de fato meu amigo. Quando o cumprimentei, caí na risada, e ele se ofendeu. Mas como não rir, diante de alguém que não vejo há anos, não sei se está vivo ou morto, e de repente me aparece em sonho? A exemplo da vida real, ele não tinha nada a dizer, nenhuma mensagem a passar. Foi uma imagem inútil, produzida pelos mecanismos insondáveis do cérebro.

Vieram me contar que retiraram todos os outdoors da cidade. "Percebeu?", perguntaram. Olhei em volta. Vi um prédio em forma de carambola, um viaduto grafitado e postes pintados de branco até a metade. Puxa, é mesmo. Ainda é bem feio, mas publicidade, não tem.

Deu vontade de ir até o centro. Assim, sem motivo. Ainda não me esqueci das particularidades paulistanas: transporte de superfície é suicídio; se tomasse um ônibus, ao chegar na avenida Paulista, já seria hora de embarcar de volta para Paris. Cheguei à estação de metrô, mas estava fechada. Uma funcionária impaciente e muito feia explicou que não abriria tão cedo. Ao que parece, alguém não estava conseguindo terminar a obra. Nada muito surpreendente, até aí.

Inverossímil foi o fato de, portões trancados e trens parados, haver uma enorme fila para comprar passagem. Postei-me ao final. Já que vivi na cidade a tempo de ver sumariamente eliminado o bilhete de dez viagens, nem me empolguei. Continuava aflito para saber quanto teria de pagar antes de chegar à boca do caixa. Imagine, ter de colocar a questão! Já ouço vozes femininas reclamando dos homens que não querem perguntar. Ora, deixem-me sonhar em paz!

Resolvi empregar artimanhas: puxei papo com uma senhora à minha frente. Ela tinha a altura do meu umbigo. Talvez até menos. Não sei por que reparei nesse detalhe. Comentei que a fila não andava. Ela deu de ombros e retrucou que era normal. Até gostava, e completou: "Bom momento para conversar com o Senhor". É pena, mas, na língua falada, não existem maiúsculas. Pensei que ela estivesse se referindo a mim. Algo como: "é um prazer conversar com o senhor". Na minha ingenuidade, agradeci a gentileza. Sua reação restabeleceu a caixa alta que faltava à oralidade. Em poucos segundos, fui etiquetado como herege, demoníaco, impuro. Um achincalhe público.

Não sei como terminou esse imbróglio azarado. Não sei por que sonhei com uma mulher maluca me esculachando. Sonhos não se preocupam com motivos. Na cena seguinte, já me encontrava diante do caixa. A vendedora tinha os olhos de um peixe morto. (Isso não é uma metáfora.) Pedi dois bilhetes e, para evitar a vergonha de perguntar o valor, puxei uma nota toda amarfanhada de cinco reais.

O peixe morto me lançou um olhar fulminante. O dinheiro era pouco. Cada passagem valia, ou melhor, custava, quatro reais e vinte centavos. Por que essa cifra, precisamente? Não sei, deixo a meu amigo psicólogo a tentativa de responder. Talvez o inconsciente, em seu lado financista, tenha feito uma operação de câmbio autônoma: é mais ou menos o preço de uma passagem no metrô de Paris.

Saí pela estação a vociferar, como um louco. Como podem querer cobrar tanto por essa porcaria de serviço? Um metrô que não cobre quase nada da cidade, não consegue terminar uma linha e vende passagens em estações fechadas? Só fiquei quieto com a chegada dos seguranças: dois homens de uniforme negro e boina, metralhadora e walkie-talkie. Com seus enormes maxilares, já traziam a coronha em riste. Só tive tempo para uma frase: "Foi sem querer, capitão Nascimento". Tarde demais. Despertei.

Agradeço ao leitor pela consulta e por me escutar com tanta atenção, anotando tudo no caderninho que o paciente não pode espiar. Também mando agradecimentos ao meu chapa pelas explicações psicanalíticas vindouras. Aliás, fiquei até curioso de saber a quantas andam as tarifas de transporte público em São Paulo e no Rio, depois de pouco mais de um ano. Mas, pensando bem, talvez seja melhor não pensar nisso. O sonho de amanhã pode ser pior.

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