30.7.06

Seção Versos Subcutâneos: Poema Vegetal

Poema vegetal

As palavras me brotam das pernas.
Mais eu piso nesse território,
Na poeira da cada uma das vidas,
Mais frutifica essa vaga poesia.

Começo a achar que o meu poema
É um trabalho de planta
Que suga os fluidos da terra
E toma sua força do vento.

Corro do poema como do espelho.
Vejo que sou homem, não que sou verde!
O poema, porém, corre nos membros
E todo passo o multiplica.

28.7.06

Lá fora também tem guerra

Tenho acompanhado os acontecimentos no Líbano com natural preocupação, mas acima disso, um grande ponto de interrogação na cabeça. Há dias venho querendo escrever sobre o assunto, mas não conseguia levantar informações confiáveis. Jornais, comentaristas, estudiosos, nada foi capaz de fornecer base para que eu entendesse exatamente o que se passa por lá.

Aquela parte do mundo é um barril de pólvora desde o Império Romano, como se sabe. No século XX, a criação do Estado de Israel não foi exatamente um instrumento de pacificação. Dali por diante, a quantidade de guerras, oficiais ou disfarçadas, é de perder a conta. Yom Kippur, Seis Dias, Golfo (sim, tudo relacionado)... e, a cada dia, atentados, incursões militares israelenses e assim por diante.

O próprio Líbano esteve envolvido nessas escaramuças muitas vezes. Até aí, sem novidades, nada que deixe alguém confuso. Todo mundo ali em volta odeia Israel, que por sua vez odeia todo mundo, os terroristas fazem o que bem entendem, Israel responde com força (bastante), morre um monte de gente e o ciclo se repete. Quem está do outro lado do mundo, como nós, e não corre o risco de levar uma bomba na cabeça, pode até achar monótono.

O que, então, me confunde? Vamos à cronologia. O Hamas, grupo político e terrorista (lá tem dessas coisas), foi eleito partido majoritário da Autoridade Palestina, anunciando um cessar-fogo com seu inimigo judaico. Outros grupos não concordaram com a idéia e continuaram atacando Tel-Aviv e Jerusalém. Os israelenses, além de cortar a ajuda financeira ao governo palestino, iniciaram uma campanha para eliminar parlamentares e ativistas do Hamas. Dois palestinos foram seqüestrados na Faixa de Gaza sob acusação de serem terroristas.

Por enquanto, nada de Líbano. Mas aí entrou na história o tal do Hesbolá, Hezbolá, Hizbolá, Hizbollah, Hezbollah, ou como quiserem grafar. Como resposta ao seqüestro dos dois palestinos, entraram no norte de Israel, notadamente Haifa, pelo sul do Líbano, e seqüestraram dois soldados israelenses. Por enquanto a história é uma competição de seqüestros, pelo visto.

E quem é esse Hesbolá (e suas outras grafias)? O nome significa “Partido de Deus”. Consideram-se seguidores das idéias do aiatolá Khomeini, aquele do Irã. Seu nome descreve uma parte do que realizam. De fato, são religiosos, e bastante e, de fato, são um partido político. Hoje, eles detêm aproximadamente 11% das cadeiras do parlamento Libanês. Mas eles também são proprietários de hospitais, clínicas, centros agrícolas e outras iniciativas sociais. Recebem dinheiro de doações privadas, públicas e mesmo transnacionais, como do governo iraniano.

E o Líbano, esse que está sendo bombardeado e bloqueado, é um país razoavelmente bem distribuído entre muçulmanos e cristãos, a ponto de sua constituição de 1943 exigir um presidente cristão e um primeiro-ministro islamita. Sua capital, Beirute, era considerada a Paris do Oriente Médio, e lembrava também o Rio de Janeiro (o Rio de antigamente, não o de hoje) por suas praias e montanhas próximas. De 1975 a 1990, porém, sofreu com uma guerra civil (apesar de envolver outros países da região) que esfacelou quase por inteiro sua economia e deixou como legado uma ocupação militar síria que só veio a acabar definitivamente (ou quase) no ano passado, após a morte do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, atribuída à Síria. O episódio ficou conhecido como Revolução do Cedro.

Portanto, quando a nossa história começa, temos um Líbano tentando se reerguer, Israel tentando demonstrar sua força e palestinos tentando espezinhar os vizinhos ricos. O governo israelense tomou para si a missão de recuperar seus soldados seqüestrados, com rápidas incursões militares pelo sul do Líbano e bombardeios em áreas ocupadas pelo Hesbolá. Este último, por sua vez, continuou atacando as cidades do norte de Israel.

E de repente, a parte que não consigo compreender, e ninguém consegue me explicar. Por que Israel começou a bombardear Beirute? Por que bloquear os portos do país? Por que os alvos civis? O Hesbolá tem cadeiras no Parlamento, mas não é maioria, nem é governo. O governo israelense acusa o libanês de apoiar os radicais islâmicos, mas qual é a evidência? O que eles esperam conseguir com isso? Jogar o público contra o Hesbolá? Duvido, muito pelo contrário. Estão é atraindo o ódio de quem até então era neutro ou favorável na região. Será que eles esperam que os soldados seqüestrados pulem dos buracos das balas de canhão? Parece um pouco improvável.

Israel é conhecido, entre outras coisas, pela eficiência de sua polícia secreta, o Mossad. Episódios como a captura de Eichmann na Argentina, o assassinato dos terroristas de Munique e as operações de inteligência da Guerra dos Seis Dias fizeram a fama dos agentes. Há quem creia que eles são capazes de tudo. Então por que gastar tempo e credibilidade com bombardeios a Beirute, que vinha pouco a pouco sendo reconstruída?

O mundo mudou muito desde os anos 50 e 60, quando num piscar de olhos o exército israelense tomava território dos vizinhos árabes que os atacavam. Naquele tempo, os tanques chegavam à porta do Cairo ou Damasco e os governos inimigos se recolhiam de medo, eram obrigados a ceder, negociar e por fim se entregar. Hoje, o inimigo não é mais territorial. Os terroristas que atacam Israel estão por todo lado. Dentro do país, principalmente. Bombardeios e outras operações militares padrão são um verdadeiro anacronismo. Pior: são combustível para o ódio, formam novos terroristas em potencial e dão razão aos muçulmanos que vêem grupos como o Hesbolá como “organizações de resistência”. Pior: recentemente, uma pesquisa revelou que a maioria dos cristãos libaneses pensam assim.

Tem alguma coisa aí no meio que eu não entendo.

27.7.06

A máquina isolante

De repente, descubro que a melhor compra que já fiz na vida foi um telefone celular. Durante anos, fui motivo de chacota dos amigos por manter o mesmo aparelho desde 1998; o “tijolão” mal tinha bateria para uma conversa inteira, nem sonhava com toques variados (ringtones, não é isso?) e muito menos acesso à internet. Jamais senti falta de qualquer coisa dessas. Nunca fui um ser telefônico, atendo as ligações já querendo desligar e para chamar alguém é um suplício. Só em caso de última necessidade.

Mas - um belo dia - eis que a operadora decidiu que meu celular não existiria mais. O sistema mudou, ficou ultrapassado, adeus meu velho número. Fui intimado pela namorada a arrumar outro imediatamente, que essa história de ficar incomunicável não pode ser. E saí correndo atrás de um aparelho novo.

Na loja, várias opções. Câmera, rádio, internet, viva-voz, MP3, toques polifônicos... Escolhi um que parecia simpático. A mesma marca do anterior, porque durável e resistente. Escolhi pela discrição, tanto visual quanto sonora: os toques não são tão estrambóticos quanto esses que vemos por aí. Com uma câmera fotográfica que dá pro gasto, contanto que seu nível de exigência para fotografias seja bem baixo. Um gravador de voz que grava mais ou menos um minuto (não sei pra quê) e um rádio FM.

E foi esse último item que fez do celular a melhor compra da minha vida. Poucos dias depois da transação, desci do meu trabalho para andar pela av. Paulista até a Consolação, como faço duas vezes por semana. Lembrei-me das atribuições do meu telefone e resolvi testá-las: coloquei os fones no ouvido e disparei o volume para o máximo.

Que maravilha! Que diferença! Meu corpo estava ali, no meio daquele gigantesco mercado persa, aquele camelódromo esnobe disfarçado de centro financeiro. Mas minha mente, não. Era como se nada daquilo existisse. Como se fosse um produto da minha imaginação. Que delícia!

Percebi que não tinha comprado um celular. Eu tinha comprado nada mais, nada menos, que uma máquina isolante; como se fosse uma capa mágica que me retirasse do mundo. Os abutres que ladeiam as parcas calçadas da avenida passaram a me ignorar, ó bênção!, e os poucos que ainda se arriscavam a vir eram apenas sombras, imagens de uma fita muda vinda de um outro mundo!

Fiquei livre das ofertas de crédito, teatro amador, salvação da alma, sutiãs invisíveis (?!) e renda de sei lá quantos mil reais trabalhando em casa. Não preciso mais gastar saliva com nãos e nãos-obrigados, muito menos com sai-de-cimas e outras reações iradas. Para esse universo, eu não existo, sou um panóptico etéreo e muito satisfeito.

Deus abençoe o inventor do walkman!


26.7.06

Seção versos subcutâneos: Um dia, talvez


Um dia, talvez

Um dia, talvez
meus poemas virem pedra.

Um dia, talvez
a mensagem chegue a alguém.

Nesse dia, então
o meu mundo será salvo.

Mas no seguinte, só Deus sabe.

25.7.06

Da ausência de amor próprio

Podem me chamar de chato, mas tem coisas que me deixam vivamente impressionado. Uma delas é a falta de amor próprio manifestada nas enormes filas que se formam diante de coisas ruins, eu diria péssimas, como é o caso de alguns cinemas, parques e até padarias. Explico.

Na semana passada, fui com minha namorada jantar com um casal de amigos dos tempos de faculdade. Comemos em um restaurante delicioso, do qual falarei algum dia na seção gastronomia. Ao final, a parcela chocólatra do grupo inventou de caminhar até uma famosa, famosíssima padaria distante algumas quadras, no sentido da av. Paulista.

Eu não conhecia a tal da padaria (não sou chocólatra, e pelo visto a última coisa que a casa oferece é pão), então me interessei pelo programa. Lá fomos nós, por aquelas ruas mal iluminadas da região da Consolação, desviando dos buracos na calçada e dos automóveis daltônicos.

Chegando à famosa, estupenda, imperdível padaria, cujo nome não vou mencionar mas é óbvio para quem conhece, deparamo-nos com uma fila quilométrica. Eu disse uma? Erro meu. Eram várias. Uma para as mesas. Outra para os pedidos. Mais duas para pagar. Se bobear, até os banheiros tinham fila. Não sei, não fui.

Um resumo do lugar: os funcionários não tinham interesse em trabalhar. Ficavam discutindo a família de sei lá quem, e respondiam às perguntas dos clientes com grunhidos. Os doces, péssimos. Meu amigo pediu um, não sei o que era, mas na vitrine era lindo. Na mão, era oco, literalmente. Por dentro, só ar. O preço, lá em cima, naturalmente. As tais filas não andavam, os corredores eram estreitos e vamos parar por aqui que a idéia não é falar mal da bela padaria.

A questão é psicológica: por que tanta gente bem de vida, jovem, bonita, que estudou nos melhores colégios de São Paulo, que pode ter tudo que quiser, quando quiser, onde quiser, como quiser, vai ficar horas parado numa fila para sentar num lugar apertado, ser maltratado por funcionários, consumir produtos de baixa qualidade, sofrer esbarrões, e assim por diante?

Eu poderia gastar laudas e laudas discutindo esse ponto, apenas para chegar a uma conclusão: não sei. O fato é que me parece uma falta muito grande de amor próprio. Seria o complexo de vira-latas do Nelson Rodrigues? Possível. Seria uma forma de ostentação, uma forma distorcida, segundo a qual ser maltratado para gastar muito dinheiro seria chique? Não sei. Seria uma forma de autoflagelação, uma punição imposta a si mesmos como paga por toda a exploração e escravidão que perpassou a história do Brasil? Não sei. Seria apenas cafonice? Provavelmente.

Nessas horas só nos resta recorrer a Jung e sua idéia do inconsciente coletivo. Milhares de pessoas são levadas por um impulso inexplicável e irresistível a postar-se umas atrás das outras, esperando sei lá o quê, após vestir-se com suas melhores roupas e raspar as embalagens da maquiagem, no caso das mulheres. Alguma coisa no fundo de suas cabeças, alguma coisa que não se consegue investigar, empurra suas mãos para dentro da carteira, pagando com alegria por produtos e serviços de péssima qualidade e um serviço deprimente.

Fica uma sugestão a nossos psicanalistas; uma verdadeira pesquisa de campo. Muito mais fértil e interessante que esses consultórios insossos.

18.7.06

Seção dedo de prosa: Domingo

Outra seção que andava abandonada. Lá vai um microconto:

Domingo

Camila entra cantando uma música americana, fones bem enfiados no ouvido. Passeia pelo quarto, numa meia dança. Atira o corpo às almofadas. Balança as pernas nuas para se refrescar. Está leve. Mariana, cara inchada, espera um olhar. Não encontra. Camila olha apenas para dentro. Mariana crispa as mãos e morde o lábio inferior, enquanto a outra suspira de olhos fechados. A alça fininha da blusa branca escorrega pelo ombro. É domingo e faz um calor silencioso.

Mariana berra. Não é justo!, grita. Dá dois socos na parede. Camila se assusta. Abre os olhos e procura em volta. Fecha-os. Mariana sacode a cabeça e esconde o rosto no travesseiro. Suas mãos agora também doem. A cantoria recomeça, esganiçada e desafinada de propósito. O choro tenta fazer concorrência. Camila baixa os olhos para seu aparelho de música. Usa o polegar para aumentar o volume. É domingo e faz um calor silencioso.

14.7.06

Seção versos subcutâneos: Montagem

Deixei de lado por tempo demais a minha seção preferida. Em parte, porque assuntos mais concretos têm me ocupado, como bombas em ônibus, roqueiros mortos e muros que dividem cidades.

Mas acho que o motivo mais profundo é o período por que passo, de revisão interna das minhas convicções artísticas, i. e., poéticas; tudo, admito que a isso se possa chamar "vácuo criativo" ou coisa assim.

Mas há por trás algo além. Na fase em que estou, tenho desgosto por tudo que já produzi. Sinto que falta algo, talvez isso, talvez aquilo. Travo uma luta entre meu gosto pelo sucinto e minha admiração pelo grandioso; o quotidiano e o transcendental; o concreto e o sonoro; o louvor à palavra e sua aniquilação.

Resultado: não sei qual caminho seguir, porque gosto de todos. Vejo poetas escrevendo ensaios em que rejeitam aspectos de alguma escola poética. E eu, concordando não com todas, mas com grande parte das soluções, ao mesmo tempo rejeito as críticas. Não consigo me associar a nenhuma corrente.

O século XX foi capaz de nos provar peremptoriamente os riscos da arte programática. Ficou claro que vanguarda é contingência, não panacéia. Não há rotas desenhadas, ou antes, há, mas todas elas são engarrafadas e levam ao mesmo lugar.

Com que, então, podemos substituir os programas e manifestos? Claro: com um amálgama das idiossincrasias humanas. Mas o que é isso? Como manifestar isso sobre, por exemplo, uma folha de papel? Ou uma tela? Ou um palco?

Tudo é permitido? Nada pode ser criticado? Não é possível, o resultado seria a anarquia. Mas não é a anarquia que queremos atingir? Claro que não, se quiséssemos não sairíamos de casa. Também não adianta teorizar: isso nos joga de volta às vanguardas, cujo tempo passou por superação histórica.

Tenho pensado sobre isso, e não gosto de nada do que escrevo. Também deixei de gostar do que escrevi. Tenho uma convicção a respeito da postagem de poemas no blog: só posto os mais antigos. Deixo-os envelhecer algum tempo, como vinho, guardadas as devidas proporções. Depois releio-os, mudo-os quando necessário (sempre), e quando sinto que há relevância em seu tema, posto-os.

O problema é óbvio: se eu rejeito tudo que jamais escrevi, acabo não postando nada!
Hoje juntei forças e recolhi este aqui. É uma homenagem a um dos grandes mestres do cinema, o soviético Sergei Eisenstein, o papa da montagem cinematográfica, o homem que transformou as imagens em grandes seqüências de ideogramas em movimento.

Montagem
A Sergei Eisenstein

Uma faca
Na mesa / a faca
No tampo rugoso da mesa de mogno
O fio / o cabo / o frio da faca

O sangue
Na mão / a mancha do sangue
Nos calos da mão / nos dedos
O úmido / tépido / trágico sangue

Aos olhos
Às faces
Ao queixo
O choro
O espasmo / soluço / salobro do choro
A textura / o brilho / o mistério da lágrima
Da lágrima

Na mesa / a faca
O sangue / na mão
A lágrima na face
No coração / a fenda
No fato / a metáfora

13.7.06

Voltando àquele assunto desagradável


A coisa engrossou de novo em São Paulo, e de novo o Lembo atacou com “está tudo sob controle” e o Alckmin com “a polícia paulista tem padrão europeu”. É evidente que ambas são mentira, mas cada uma de maneira diferente: a frase de Lembo é um paradoxo: como pode estar tudo sob controle se está tudo absolutamente descontrolado? Em situações sob controle, cidades de 11 milhões de cabeças não ficam sem transporte público.

Já o candidato xuxu-nas-nuvens não fez nada mais que seguir a eterna tradição paulista de megalomania cega. Um exemplo: recentemente uma amiga minha que se formou na veneranda academia do Barro Branco, que forma nossos PMs, me contou que para sair da escola ela teve que dar menos de 200 tiros. Não estou falando de tiros em pessoas, que os policiais paulistas têm oportunidade de sobra de dar depois que chegam às ruas. Eu me refiro a tiros de treinamento, contra alvos parados ou em movimento. Em suma, aqueles que ensinam os futuros profissionais a lidar com revólveres e munição.

Duzentos tiros, cabe informar, não ensinam ninguém a atirar. No máximo dão uma noção do coice da arma, da posição correta para segurá-la e assim por diante. mas numa situação de verdadeira necessidade, em que é necessário reagir rápido contra criminosos no meio do caos urbano, o policial precisa ter movimentos automáticos e um auto-controle supremo, caso contrário poderá atirar antes da hora e ainda acertar civis.

Isso não é um padrão europeu.

Outro que não é padrão europeu é o de fuga das cadeias. (0,13, ele disse?) Em primeiro lugar, esse número é difícil de ser apurado quando não se consegue nem controlar quem entra e quem sai das prisões, nem muito menos quantas pessoas estão em lugares como a tal cadeia de Araraquara (cada órgão cita um número diferente). E como São Paulo tem metade dos presos do país, certamente o índice de fuga é maior do que o número de presos de alguns Estados.

Mais uma falácia prepotente do nosso antigo governador é a louvação da tal cadeia de Presidente Bernardes, a “única de segurança máxima” do país. Tudo bem, é possível que seja mesmo, mas não tenho dúvidas de que possa existir segurança maior do que a de uma cadeia cujos presos comandam os crimes que acontecem do lado de fora, usando celulares, rádios ou o bom e velho bate-papo com advogados. Já seria um bom começo se ela não estivesse sempre em rebelião.

* * *

Mas chega de falar mal dos nossos políticos, porque isso todo mundo faz o tempo inteiro. Vamos falar mal de nós mesmos! Que tal? Um sujeito que estava no supermercado da rua Maria Antônia (Higienópolis), atacado de madrugada, assumiu o mais sério dos tons para informar que estamos no meio de uma guerra civil não declarada. Já ouvi essa declaração uma centena de vezes, mas desta vez resolvi me perguntar:

Estamos mesmo?

O que constitui uma guerra civil? No meu entender, esse apelido só pode ser agregado a uma situação em que uma determinada sociedade, em geral um país, se cinge em dois partidos (não no sentido político, claro), irreconciliáveis, e cada um toma em armas para impor sua opinião e aniquilar o outro. Mas isso se dá por meio de uma organização formal visando uma constituição posterior legal do Estado, com o vencedor à testa. Exemplos claros são a Guerra Civil Espanhola, a Revolução Francesa, a Russa, a Americana e assim por diante.

Não é isso que acontece no Brasil. Os bandidos, sejam os traficantes do Rio, sejam os presos de São Paulo, sejam todos os outros grupos espalhados no país mas que ainda não tiveram a oportunidade de fazer suas traquinagens, não agem com vistas a uma tomada do poder. Não se pode nem sequer falar em um levante popular, porque o objetivo da maioria dos envolvidos não é promover justiça social para alguma classe, ou coisa parecida, mas simplesmente subir na vida.

Mas precisa causar tamanho terror para isso? A princípio, não. Uns roubos aqui, uns golpes ali. Alguns têm sorte, outros vão presos. Por que o terror? Por que incendiar ônibus ou metralhar ruas? Que vantagem teria o crime em incomodar a sociedade formal, se a população não se incomoda com sua existência nas comunidades carentes e a polícia a princípio não tem interesse em combater suas atividades (muito pelo contrário)?

Aí é que entram as prisões. Cansei de ouvir gente apoiando o tratamento animalesco que recebem os presos no Brasil. Afinal, “são vagabundos”, “esses bandidos têm é que se f*” e assim por diante. A lógica é a seguinte: para que possamos continuar nossa rotina, joguem os elementos incômodos nas masmorras e vamos esquecê-los.

Esse projeto funciona perfeitamente numa sociedade de escala baixa, escravocrata, latifundiária como era a brasileira, e particularmente a paulista, há pouco mais de 120 anos. Mas hoje, quando os capitães-do-mato se transformaram em policiais e os escravos se transformaram em lúmpen, o que se configura é um caldeirão sempre a ponto de explodir.

Nessas masmorras que são as cadeias brasileiras, em particular as paulistas, os ladrões de galinha já mencionados, cujo único objetivo é subir na vida, desenvolvem estratégias de sobrevivência verdadeiramente selvagens. Aprendem a odiar, a matar para não morrer, a lidar com a corrupção de carcereiros e policiais. Aprendem tudo, em suma, que verdadeiros guerrilheiros urbanos precisam saber para paralisar a vida das cidades.

Dois meses atrás, a polícia de São Paulo matou quase trezentos “suspeitos” em represália aos ataques do PCC. Como a população carcerária do Estado gira em torno dos seis dígitos, sem contar os que estão soltos, o banho de sangue mal fez cócegas na criminalidade. Sobretudo se contarmos que mais da metade das vítimas provavelmente não tinha nada a ver com o assunto. A formação do exército de reserva do crime continua a todo vapor, e detalhe: não tem vestibular.

Há muito mais a ser comentado. Espero não precisar fazê-lo, ou seja, espero que a estratégia de lidar com “a situação” se torne um pouco menos fantasiosa e pedante. Caso contrário, ainda vou ter muito pano pra manga por aqui.

11.7.06

Obituário: Syd Barrett

Sei que pouca gente conhece o guitarrista Syd Barrett, raramente mencionado nas antologias da história do Rock, jamais lembrado pelos noviços do instrumento, que veneram os mestres sem fazer menção a esse gênio perturbado que marcou, ainda que só de passagem, a história do Rock inglês.

Pois Syd Barrett, que morreu recentemente (a porta-voz que anunciou o falecimento disse "há alguns dias"), é fundador e responsável pela maioria das composições da fase mais perturbadora do Pink Floyd. Fala-se muito de Roger Waters, o baixista prepotente que não cansa de nos lembrar de que é o principal compositor da banda no seu auge comercial, com Dark Side of The Moon e The Wall.

Tudo bem. Mas na fase mais psicodélica, inventiva e provocante da banda, o nome a ser lembrado é o de Syd Barrett. The Piper at the Gates of Dawn, Astronomy Domine e outras pérolas musicais são assinadas pelo guitarrista.

Mas o mais interessante a mencionar sobre Syd foi o seu recolhimento, após deixar a banda, em 1968. O motivo de sua partida não foi nenhuma briga: simplesmente o excesso de drogas e álcool perturbou seu cérebro a tal ponto que ele mal conseguia formular frases com significado.

Seu substituto foi outro gênio da guitarra: David Gilmore. A genialidade de Syd pode ser medida pelo fato de que Gilmore, um mestre e grande instrumentista, não pode ser comparado em genialidade ao seu antecessor.

Barrett se recolheu a sua casa em Cambridge, de onde raramente se ouviu falar dele, salvo no lançamento de dois discos solo, um deles muito recentemente, dois ou três anos atrás. Ouvindo os discos, vê-se que o cérebro que os produziu não segue a mesma lógica aristotélica que nós; é difícil escutá-los, mas não se pode perder de vista o respeito devido a um verdadeiro gênio dos sons.

Comparo a morte de Syd Barrett à de Tommy Bolin, outro grande guitarrista que não tem o reconhecimento que merece. Outro dia falarei dele, quem sabe?

10.7.06

Foto do Bar do Cidão



Uma leitora, por sinal muito simpática, enviou para o meu e-mail esta foto, tirada no Bar do Cidão. Ela foi tirada por alguém encostado à porta da Casa, e a parede ao fundo é, bem, o fundo do bar. Como eu disse, o lugar é pequeno, mas delicioso. Não sei em que dia foi tirada a foto, nem quem está tocando, mas o povo parece gostar, a não ser a moça de cabelo preso, à direita, que boceja ostensivamente. Agradeço à leitora pela inestimável colaboração. É uma pena que o sistema do site não me permita colocar a imagem junto ao texto!

Crédito da foto: Denise Pavan Límpias

Die Cotia Mauer

Berlim, 1961. Uma manhã nublada, fria e escura no final de um inverno particularmente rigoroso. O pequeno Fritz, oito anos recém-completados, morador da região de Alexanderplatz, parte oriental da cidade, brinca com seu aviãozinho de papel à beira da área desmilitarizada da cidade, sob os olhares condescendentes de soldados soviéticos e, para lá do arame farpado, norte-americanos.

Fritz é filho de um torneiro mecânico e uma professora ginasial de Consciência Revolucionária. Seu avô, um bravo praticante de equitação, consta das estatísticas de baixas da Wehrmacht em Stalingrado. Em suma, Fritz é uma criança alemã-oriental padrão do início dos anos 60.

Até essa manhã pesada de 1961. Desatento para tudo, salvo seu aviãozinho de papel, Fritz não se dá conta de que subitamente seu brinquedinho improvisado causa um grave incidente diplomático ao invadir o espaço aéreo da terra de ninguém, ciosamente guardada pelos sorumbáticos combatentes do povo. Ignorando toda a conjuntura geopolítica, Fritz se arrisca pelas trincheiras e arames farpados para resgatar seu patrimônio. À distância, com a vista prejudicada pelo nevoeiro que cobre a sofrida capital alemã, um jovem guarda, incumbido da missão de manter os alemães orientais no oriente alemão, confunde nosso herói com um cidadão insolente em meio a uma tentativa de emigração forçada.

“Halt!”, grita. Não obtém resposta da criança que se ri enquanto um pedaço de arame lhe rasga o calção. O soldado atira para o alto. Nada. Pesaroso de ter de cumprir seu dever, sob risco de corte marcial, faz mira com seu fuzil siberiano e dispara. Bem treinado nas academias do norte, seu tiro é certeiro.

A morte de Fritz causou enorme comoção em ambos os lados do país dividido. Talvez por coincidência, alguns meses depois uma multidão de pedreiros em seus caminhões barulhentos aporta na região do infeliz ocorrido. E ao raiar do sol, os berlinenses, à exceção de JFK, acordam com um muro dividindo sua cidade. Eles estão incrédulos. Como um muro tão extenso pode ficar pronto em tão pouco tempo? É a eficiência alemã.

Coloquei no texto esse preâmbulo com o objetivo de chamar a atenção para uma terrível coincidência que une cidades tão diferentes, em países tão distantes, com quatro décadas de intervalo. Tão trágica quanto a história de Fritz é a do brasileiro Wesley Snaipes de Jesus, que em 2001, quando perdeu a vida, tinha a mesma idade de seu antípoda alemão.

Wesley, também filho de um operário e uma professora primária, era morador da cidade de Cotia, distante cerca de 30 quilômetros de São Paulo. No último dia de sua existência, brincava com sua socada bola de futebol quando, na empolgação de uma jogada bonita, deu um chute descontrolado que mandou a pelota para o meio da rodovia Raposo Tavares, que atravessa o centro do município.

O garoto, quente e suado que estava pela sua partidinha de futebol, não deu atenção aos veículos que atravessavam velozmente sua pequena cidade, rumo a Sorocaba ou Ibiúna. Correu para o meio da pista atrás de sua bola querida, companheira de todos os momentos. Wesley sabia que um dia seria jogador de futebol. Mas seus sonhos foram abortados por força de um automóvel de marca Audi, cujo proprietário não teve tempo de frear e, constrangido, perdeu a oportunidade de passar um final de semana agradável à beira da represa.

Se algum ponto positivo houve nessa história, foi a comoção que causou nos dignos responsáveis pelas rodovias paulistas. Reuniões foram marcadas. Os burocratas analisaram dezenas de diferentes projetos para desviar o trânsito da rodovia sobrecarregada, que jamais poderia passar pelo centro de uma cidade em franco crescimento, como Cotia.

Após mais de um ano de discussões, concluíram que a primeira proposta era a mais racional. Como a estrada faz uma curva à esquerda antes de entrar na cidade e outra após deixá-la, a idéia era simplesmente construir um novo caminho que circundasse Cotia. Parece milagre, mas essa opção poderia até tornar mais curto o percurso.

Comunicaram sua decisão ao prefeito, ao governador e a todos os demais interessados. Receberam apenas caras fechadas. Os comerciantes da cidade não gostaram da idéia, porque poderia prejudicar seus negócios. Nenhuma empreiteira se interessou pela obra, considerada pouco rentável. Os donos dos terrenos a serem desapropriados fizeram pressão para levar alguns caraminguás a mais. A idéia empacou e voltou-se à mesa de discussões.

Até que, finalmente, o consenso foi alcançado. Ficou projetada a construção de um grande e espesso muro na parte da estrada que passa pelo município. Às margens do muro, o trânsito local. Por cima, a via expressa. Nunca mais haveria um Wesley Snaipes! A população poderia dormir tranqüila, os comerciantes não perderia seus clientes, a empreiteira, os políticos locais e quem mais estivesse envolvido poderia colocar algum no bolso e todos ficariam contentes.

Chegaram, então, os tratores, os capacetes e os esquadros. As obras começaram em 2002. Um viaduto aqui, um muro de arrimo ali. E finalmente, em junho de 2006, nas celebrações dos cinco anos de morte de Wesley, inaugura-se o grandioso Muro de Cotia, ou Cotia Mauer, que separa em duas a malfadada cidade paulista, agora a Berlim dos trópicos. Quem está em Ost Cotia não consegue enxergar as casas de West Cotia, e vice-versa. Para ir de uma a outra, só pelos dois ou três checkpoints, isso é, passarelas. E nada de Gorbatchev para promover uma Glasnost.

Passar pela seção recém-inaugurada da rodovia é um prazer para quem está no controle dos pedais. O Brasil é hoje um país europeu, com suas divisões internas e tudo. Dá um orgulho danado. Principalmente para quem abre a janela e não dá de cara com um paredão de concreto, como os heróicos cotienses.

6.7.06

Seção Versos Subcutâneos: Vigília

Vigília

Vi um círculo de murmúrios
E olhos lacrimosos
E velas brancas solenes.

Ao centro, numa pilha seca,
O concreto e o asfalto
E nossas memórias todas.

Por quem o sinal-da-cruz?
Qual é o sentido dos canos
E dos cabos elétricos?

Circulei a vigília, pesaroso.
Vi as desalmas e os destinos
Nos olhares elevados ao eterno.

Neles reconheci espelhos,
Deles aceitei a verdade.
Eles são apenas o inevitável.

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