27.10.06

Panela de pressão apitando em desespero


A Europa carrega nas costas o peso de todas os crimes da História. Isso é uma verdade que pode ser verificada em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos do mundo. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

O que restou do banho de sangue foi uma Europa admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia...), não é uma burrice aparelhada de museus. É o continente que inventou o humanismo, mesmo que isso tenha envolvido o Terror em alguns momentos. Foi a primeira parte do planeta a romper definitivamente com a aristocracia, a disseminar os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa. Mais até do que os EUA.

São coisas fantásticas, se comparadas ao que conhecemos no Brasil: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Na Alemanha muito mais do que na França, claro, mas mesmo assim, nada que se compare com a irresponsabilidade brasileira. A cultura européia, mesmo com toda sua arrogância e xenofobia, é a mais aberta do mundo. Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim são os franceses que mais de dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações. Os franceses e, claro, os europeus em geral. No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: "no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y". Já o europeu discute assim: "Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México...". O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas por algum motivo que não sei explicar no nível individual, apenas no social, eles não acham que seja perda de tempo; realmente absorvem aquilo e é útil para eles (eu também estudei, na escola brasileira, as populações e relevos praticamente do mundo todo. Mas não lembro de quase nada, nem entendia por que estava estudando aquilo).

Em resumo, a cultura européia é, sem dúvida, a mais aberta, cosmopolita e atraente do mundo. Eles são capazes de absorver e aproveitar influências de toda parte, sem jamais deixar de serem quem são, com a tradição da cultura européia e tudo mais. Dificilmente alguém vive aqui e não incorpora traços muito fortes do modo de ser deste antigo continente tão cheio de culpa, mas também de honra.

Mesmo assim, estou assustado. Há um ódio latente, difícil não notar. Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provence ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Não é uma questão racial, nem social, nem histórica. É puramente religiosa. Todos odeiam os "arabes" (leia-se arráb), os muçulmanos. E os muçulmanos odeiam a todos, sejam hindus, ateus ou judeus, sob a sigla "cristãos". Vivem em guetos mais ou menos afastados dos centros urbanos, não apenas porque foram atirados lá pelas autoridades do país, mas também porque não querem se misturar aos demais.

Alimentei por muito tempo a ilusão de que a presença em um mundo aberto como o europeu abriria também o pensamento das colônias verdadeiramente medievais em que se transformaram as comunidades islâmicas da Europa. Isso é verdade em apenas alguns casos. Durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível. Fora da sala de aula, isso não acontece. Os grupos islâmicos se tornam apenas mais herméticos. Recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno.

Isso é ruim, mas não é o que me assusta. Minha maior preocupação é com o lado inverso. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante. Não apenas as populações medievais islâmicas não se abriram em contato com a cultura vanguardista da Europa, como os próprios europeus estão se fechando cada vez mais, ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e (graças a Deus) superados.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para loiras de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos. Quando o primeiro-ministro chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas "de boa vontade" mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. É a concretização do que o governo Bush chama de "embate de civilizações". Só que entre vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô, mas fazem questão de não afrouxar as convicções para melhorar a convivência. Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não parecem ser tão fortes quanto mereciam. Nem mesmo aqui. Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue.

20.10.06

Seção versos subcutâneos


............Entrevista

Cidade! O que és?

- Sou água e areia.

Mas tantas almas se atiram das torres
Para extrair as pepitas de usura!

- Sim. Sou água de dar sede,
...Areia de enrijecer o peito.

Cidade! Que lado apontam os olhos?
Como o perseguem os pés?

- Finco meu nome à terra
...para escondê-la de Deus.
...Encaro os heróis que me olham
...Para torná-los também em pedra.

Cidade! Existe vida?

- Há movimento, há marcha.

Há esperança?

- Há projeto.

Cidade! Subiremos ao Olimpo?

- A não ser que nos engulam
...as entranhas do magma.

15.10.06

Seção Dedo de Prosa: Aeroporto


Chegou à cidade e foi logo pedindo um copo d’água. No saguão do aeroporto, carrinhos para cá e para lá, ficou parado de pé como se esperasse a ajuda de alguém, mas na verdade lançava com os olhos um singelo pedido à cidade, com toda sua educação. Mas a cidade recusou. Então ele se virou e ficou a contemplar a pista, em que aquelas máquinas enormes espremiam suas turbinas até ganhar os céus. Aos suspiros, observou a graça mastodôntica com que os aviões desgarravam o trem de pouso do chão. A cada aterrissagem, piscava por reflexo. Não estava mais acostumado à cidade, ao espraiar marcial da cidade,à clareza hostil da cidade que recusa um copo d’água ao forasteiro que acaba de chegar.

Sentia-se velho porque era tomado por nuvens de aversão àquela terra velada pelo cimento, àquele catálogo de ruas que um dia foram suas, quando eram tão poucas a ponto de conhecê-las todas pelo nome. No tempo em que se viajava para o campo de bicicleta, sem precisar embarcar em um daqueles tanques de guerra voadores. A linha do tempo, pensou, é um rastilho que nos persegue em silêncio, sempre tentando parecer distante e inofensiva. Mas um dia os olhos já fundos se tornam e enxergam a faísca a atingir a pólvora. Aí é tarde.

Sentou-se ao lado de sua mala pesada, ainda contemplando os aviões; subindo, descendo, taxiando. Um trenzinho carregando malas que ameaçam cair. Um caminhão de serviço, com bandejas plastificadas até a borda. Homens de colete cor-de-laranja, boné e fones de ouvido do tamanho de bolas de tênis, que acenam suas raquetes chamativas para os monstros resfolegantes.

A distância, como o tempo, é um caldeirão de fermentar amargura. Uma vida de exílio auto-imposto pode tornar todo país estrangeiro. Pensou nas esquinas que um dia ele dominava como um rei, cortando de uma transversal a outra com a mesma agilidade dos cabos elétricos. Aquelas esquinas, símbolos de elegância e desenvolvimento, são hoje retratos de degradação. Seus antigos prédios de fachadas suntuosas e pé-direito imponente tornaram-se pouco mais que memoriais da decrepitude. Seus antigos vizinhos, enriquecidos, mudaram-se para bairros distantes e inacessíveis, ou por outro lado empobreceram e sumiram na poeira. Escaparam apenas aqueles que morreram. Uma doença, um atropelamento, um crime, pronto. Paz e um outro mundo.

Cada vez que uma voz aguda e desajeitada irrompia pelos saguões do aeroporto, um bando de pessoas de ar desamparado se erguia de suas cadeiras. Arrastando corpo e bagagem, iam postar-se diante do portão, em fila desordenada. Querem ser devorados. Pensam que serão recebidos no conforto de um aparelho servil, mas não sabem que aquilo é na verdade a encarnação urbana e metálica de Moby Dick.

Pequenos calafrios o chamavam de volta ao seu planejamento. Certamente a família já se acotovelava por entre parentes alheios do lado de fora, talvez preocupada com seu atraso. Brava família, que ficou para trás na selva negra. Como serão os netos? Ainda bípedes? Ainda têm dentes para mastigar? São ainda capazes de trepar numa árvore? Que raios, são crianças. Não têm culpa de nada ainda, mas um dia certamente terão uma culpa que não fará senão somar-se à nossa e à de nossos pais. Mas por enquanto são a encarnação da inocência, não têm culpa, só nós carregamos esse peso, talvez porque não saibamos agir de outra maneira.

Recolheu sua bagagem, lamentando o peso de todas aquelas roupas. Longa temporada na cidade. Foi caminhando, devagar. Tempo apenas para mais uma olhada pelo grande painel de vidro que dava para a pista tétrica dos aviões. Lá, pôde ver um que, destoando de seus pares, não quis simplesmente levantar vôo com um rugido, mas resolveu fazê-lo batendo as asas de alumínio. E assim tomou seu lugar nos céus, enquanto a cidade deslizava para se abrir.

12.10.06

Custos astronômicos a preço de banana


O maior luxo que a vida em Paris oferece, pelo menos do ponto de vista de alguém que veio de São Paulo, é a possibilidade de viver sem carro. Um brasileiro de nascimento mais privilegiado pode achar humilhante ficar esperando um trem, ter que compartilhar um espaço reduzido com outros cidadãos (Céus! Gente que sua!), sem poder sintonizar o rádio na estação favorita ou entregar as chaves para um manobrista, com a discreta sensação de fazer-lhe um favor ao permitir que ele conduza por alguns instantes um dos maravilhosos modelos de automóveis que importamos. Tudo bem, sentir-se importante e rico é muito bom. Mas nada melhor do que não precisar pensar em trânsito, IPVA, multas de rodízio, motoqueiros malucos, motoristas malucos, pedestres malucos, caminhoneiros malucos e todo tipo de sandice com que um paulistano se depara todo dia sem reclamar (pelo contrário, acha lindo: é sinal de pogrécio ou coisa assim).

Eu confesso: desde que completei 18 anos fui proprietário de um carro em São Paulo. E sempre me comportei como um. Sempre me desesperei com o trânsito, quer dizer, com a ausência de trânsito, já que estar atrás de um volante na terra dos bandeirantes é certeza de ficar parado na mesma posição horas a fio. E sempre tomei atalhos indevidos, furei filas, avancei sinais, como todo mundo, ainda que com uma ponta de remorso e um mar de alívio. Durante anos, trabalhei em Campos Elísios e morei no Morumbi, o que significava mais ou menos uma hora para ir e uma para voltar, todo dia. Isso, claro, quando não tinha um acidente ou qualquer outro motivo para que as ruas estivessem mais congestionadas do que de hábito. Depois, consegui me mudar: trabalhava na Paulista e morava de frente para o Minhocão, o que significou uma redução significativa na distância, mas não na irritação: toda semana alguém resolve capotar ou derrapar naquele maldito elevado, e quem leva a pior nessa é, em resumo, todo mundo, já que um acidente em qualquer canto da cidade reflete em todos os outros.

Em São Paulo, só é possível fazer uma coisa por dia. Você elege uma missão a cumprir, toma coragem e sai para a batalha. Ao final do dia, depois de fazer suas compras no supermercado ou (OU, nunca E) consertar seu computador, chega em casa esgotado pedindo o colo da mamãe. Normal: não há nada de errado contigo. Você está apenas sobrevivendo na selva; aliás, parabéns!

Tudo isso para dizer que, num dia como ontem, em que fiz centenas de coisas, todas de metrô, veio à minha lembrança uma campanha para o governo de São Paulo na década de 90. Todo mundo estava envolvido: Maluf, Quércia, Covas, a malta toda (não me lembro do candidato do PT. Seria a Marta? Acho que não, faz muito tempo). Um dos grandes debates era, obviamente, o trânsito (repito: não-trânsito, já que transitar por São Paulo é impossível). Cada um inventava uma coisa, aliás acho que o Levi Fidélix e seu Aerotrem ainda não estavam na parada, mas de qualquer maneira tinha desde pedágios nas marginais até Fura-Fila. O único que vagamente citava o metrô era o Covas (ou seria o Serra? Faz tanto tempo...). Mesmo assim, repito: vagamente. Ainda por cima, lembro-me de que no plano de construção de novas linhas havia um detalhe interessantíssimo: uma metade não tinha nenhuma ligação com a outra. Não consigo explicar, mas lembro claramente; achava engraçadíssimo (hoje, diria que não tem graça nenhuma).

Os demais atacaram a idéia de ampliar o metrô de toda forma possível. O Maluf, engenheiro velho de guerra (e de ditadura, bem entendido), defendia as novas avenidas, mencionando o tal “custo astronômico” de cada quilômetro construído para o trem urbano. Para ele, não valia investir nisso. Ele não ganhou a eleição, claro, mas o metrô paulistano ficou anos sem ganhar um centímetro, e mesmo hoje, quando está sendo expandido, já há informações de que a jogada talvez não seja assim tão simples...

Ora! Custo astronômico do metrô, então! Andando pelas quatorze linhas de Paris, mais as cinco de trem e as duas de bonde expresso (tramway, como traduzir?), fico pensando nessa sandice, ao mesmo tempo em que me recordo de todo o meu sofrimento pelas ruas esburacadas de São Paulo. Li um estudo uma vez que calculava em US$ 1 milhão por dia a perda da economia com o trânsito da cidade. Outro estudo ataca de US$ 1 bilhão por ano. Não sei qual é a cifra correta, mas não me surpreenderia se descobrisse que é a maior.

Tampouco sei como se calcula essa perda. A poluição está inclusa? As doenças ligadas ao estresse? Os acidentes e atropelamentos? O desperdício de gasolina? O desgaste dos veículos? A ineficiência do cidadão médio, que leva uma semana para fazer o que o parisiense resolve em uma manhã indo de um lado para outro? Mais: o metrô é a maior biblioteca de Paris. Nas duas, três ou até quatro horas que eu perdia em São Paulo todo dia, não conseguia fazer muito mais do que roer a unha e ouvir a CBN para ficar sabendo superficialmente as coisas que vão acontecendo por aí. Mas aqui eu vou e volto com um livro ou um jornal na mão. E não só eu: quase todo mundo. Pois então: nesse cálculo da perda econômico estão inclusos os lucros das editoras e empresas jornalísticas? Dos anunciantes? Das fábricas de papel? E a formação cultural da população? Está inclusa?

Garanto que o tal "custo astronômico" do metrô é ridículo em comparação com o que se perde tendo que viver encaixotado nessas verdadeiras fábricas de monóxido de carbono que entulham as nossas ruas. O próprio Maluf, nos últimos tempos, tem tentado capitalizar a construção das parcas linhas para suas próprias campanhas. Tarde demais. O desastre já está feito, não só em São Paulo como no Rio de Janeiro (a propósito, o Rio também poderia investir em barcas que ligassem a Barra, a Zona Sul e o Centro; seria prático e bonito). Somando o que se perde nessas duas cidades com os congestionamentos infinitos, dá para entender por que o país segue miserável.

11.10.06

Uma noite em branco

Crédito da foto: Brent Townshend

Chega de reclamações, senão vou passar por chato. Já estou vendo gente dizer que eu não me contento com nada, que nem às margens do Sena consigo estar alegre, que só falo de computadores estranhos e burocracias que não funcionam (ah, ainda não escrevi sobre isso? Escreverei). Então este espaço, hoje, estará reservado ao elogio e à expressão das alegrias que Paris pode nos oferecer.

Pois esta cidade, se de um lado tem AZERTY, dossiês cheios de papel e os aluguéis mais desumanos do planeta, também tem a Nuit Blanche. É difícil descrever o que acontece pelas ruas parisienses quando museus, teatros, igrejas, praças, em suma, tudo, atravessa a noite com exposições, concertos, manifestações de toda espécie e, principalmente, um mundo de gente na rua. Mundo de gente, mesmo. Gente de todas as partes, idades, “tribos” (odeio essa expressão!), orientações sexuais, e por aí vai. Gente que vai de um canto a outro atrás do que parece interessante, gente que ocupa as ruas até não mais caber, gente que entra e sai das estações de metrô.

Sim, a virada cultural de São Paulo é vagamente inspirada na Nuit Blanche de Paris (e Madrid, Lisboa e mais meia dúzia de cidades). Mas é qualquer coisa de muito diferente. O clima é outro. Os participantes não são heróis corajosos como no Brasil: são apenas gente em seu curso natural da vida. Famílias, casais de idosos, adolescentes, turistas. Não existe a mesma campanha da mídia e da prefeitura para incentivar as pessoas a achar aquilo a quintessência da vida cultural. É apenas evidente. Algo que se faz.

É mesmo uma delícia traçar rotas para a noite. Um concerto em Notre Dame às 19h? Dá tempo de sair e pegar uma exibição de filmes africanos no Marais? O que tem em Clemenceau? Céus, o Louvre é gratuito até a meia-noite!

E toca para o Louvre. Quando ele é gratuito (como todos os museus da cidade), no primeiro domingo de cada mês, é simplesmente impossível entrar. A fila dá a volta na pirâmide e sobe em si mesma, depois serpenteia para fora de Paris e chega a alguns metros da Brandenburger Tör, em Berlim. Mas não na Nuit Blanche. É possível até ver a Mona Lisa, e não apenas relanceá-la. Isso significa muito, embora as três ou quatro camadas de vidro blindado entre seu rosto e o tal sorriso enigmático tornem a contemplação da obra em si não muito diferente de uma ilustração de livro. Decepcionante, sim, mas são as agruras da vida contemporânea.

O mesmo não acontece com a Vitória de Samotrácia, ali no meio de uma escadaria, disponível a quem quiser chegar perto e contemplar suas formas esvoaçantes. As grandes obras se sucedem sem tempo para recuperar o fôlego. Eros e Psyche entre o Lançador de Disco e alguns imperadores de Roma. A Vênus de Milo saindo do banho há milênios, sem braços mas também sem gavetas. Competindo com as obras de arte, o próprio edifício, recheado de afrescos e arabescos em ouro.

Mas os funcionários são públicos e, para piorar, são franceses. Dá meia-noite e eles querem ir embora. Colocam todo mundo na rua, não sem antes apagar as luzes. Tive medo de tropeçar em alguma divindade helênica mas, ufa, graças a Deus não causei esse prejuízo à humanidade (nem perdi o direito de ficar na França).

Expulsos do gigantesco museu, o que fazer? Depois de andar quilômetros e quilômetros, de dia e de noite, pelos bulevares e avenidas, não queremos mais saber de caminhar pelos corredores das expedições. Que tal ir para casa, tomar um vinho que compramos, um Petite Récolte delicioso da Nicolas, melhor rede de loja de vinhos da França, que custou a enormidade de 2 € (o preço de uma Coca-Cola, mas sem a gastrite), mais o queijo que estava em promoção? Boa idéia, a não ser que haja alguma apresentação de jazz ou um grande pianista. Investiguemos na brochura.

Nada de jazz. Por outro lado, um teatro alternativo perdido no meio do nada tem o palco aberto para artistas desconhecidos que queiram mostrar seu trabalho. Além disso, no subsolo alguns pintores underground (sem trocadilhos, por favor) expõem o que de mais recente produziram. Que tal? Excelente, vamos embora.

Saindo do metrô, surpresa: o mesmo mundo de gente que ocupava as calçadas da Rue de Rivoli se dirige para eventos como o nosso. O movimento é contínuo. O teatro é interessantíssimo, vetusto, pequeno, com seus pilares de madeira e suas cadeiras de veludo. A exposição dos artistas underground é negligenciável, e no palco dois cantores, uma violoncelista e uma harpista executam grandes clássicos da música pop norte-americana feita nos últimos três ou quatro anos. Nada contra os americanos, mas não é o que buscamos numa Nuit Blanche. Some-se a isso o fato de que franceses têm uma dificuldade enorme com a língua de seus vizinhos além-Mancha, mais o fato de que nem nessa noite especial os burocratas do metrô estenderam o horário além do normal (1h da manhã). Melhor dar a noite por encerrada.

Mesmo assim, é uma noite para não esquecer. Um grande Bienvenue à francesa, mostrando por que eles têm tanto orgulho (até arrogência) da cultura de seu país e sua capital. Estar no meio de uma grande massa humana cuja ligação maior é o interesse pelo que está acontecendo em volta, trocar informações com desconhecidos na rua, enfiar-se por teatros e galerias desconhecidos e meio obscuros, nada disso tem preço. Para fechar o pacote, a noite estava uma delícia, um frio aceitável até para mim, que tenho uma dificuldade enorme de aceitar o frio; a iluminação reforçada, salientando os muros dos palácios e as marolas do Sena; a lua cheia, como que dando sua bênção.

Depois disso, posso dizer que vale a pena se enfronhar por toda a burrocracia dos descendentes de Descartes. Agora chega de elogios!

10.10.06


Sucesso! Nunca me senti tão triunfal como no dia em que abri o notebook em que ora trabalho, vi seu teclado e pude constatar que, sim, de fato, graças a Deus: é do chamado QWERTY*. Traduzindo: é um teclado decente.

A história é bem mais longa que isso, claro. Antes de mais nada, não quero ofender os usuários do famigerado teclado AZERTY, ou, em outras palavras, os franceses. Mas quero, e vou, fazer uma reclamação: uma coisa é não gostar de falar inglês nem com turistas (o que resulta em vendas não finalizadas e negócios não fechados, mas e daí?, é a defesa do orgulho nacional); outra completamente diferente é não permitir aos falantes de outras línguas que as usem para comunicar-se através dos computadores do país. Exatamente: no teclado francês simplesmente não há a opção de acentos que não existam no francês (ou seja: á, í, ó, ú etc.), e não se pode acentuar as maiúsculas, nem colocar cedilha, nem nada. Desculpe, mas isso já passa dos limites do bom senso. Até os teclados americanos / britânicos permitem o uso de acentos, isso porque o inglês é uma língua de que eles estão de todo ausentes.

No francês...

Tudo bem, não vai ser isso a deteriorar minha relação com esse país tão cheio de coisas interessantes, como por exemplo a garrafa de vinho delicioso que comprei por pouco mais de cinco reais (outra melhor ainda custou onze, mas era um festival com descontos). Vamos então à minha saga em busca de um computador com que pudesse postar no blog, mandar textos para o Brasil, trabalhar, enfim... tudo.

Pois logo que cheguei no aeroporto Charles de Gaulle, cheio de malas e casacos que não usei porque ainda era verão, mas tive que carregar do mesmo jeito, quis avisar à família e aos amigos que tudo tinha corrido bem. Quase morto de cansaço e falta de alimentação (esses aviões são dose!), encontrei um cybercafé e... ei-lo, o maldito teclado. Logo percebi que isso seria um problema. Por aqui, quinze minutos de internet custam entre 1,50 e 2 €. Digitando devagarzinho, como é possível nesses malditos teclados, pode contabilizar nisso o seu salário da vida toda, aquele mesmo que você poupou durante anos para conseguir pagar um aluguel europeu (tema para outro capítulo).

Agora vamos supor, por outro lado, que você seja jornalista, publicitário, sei lá, qualquer profissão que lide majoritariamente com texto. Nesse caso, você está em péssimos lençóis. Como mandar uma matéria para o Brasil completamente sem acentuação, como o post anterior? Nem pensar. Solução? Desembolsar mais alguns meses daquele tal salário suado e comprar um notebook. Você, pobre Zé Mané recém-chegado do Terceiro Mundo, ainda pensa com seus próprios ingênuos botões: “Isto aqui é Paris! Cidade chique, elegante, cosmopolita, em que se anda no metrô ouvindo ao mesmo tempo duas dúzias de línguas, sem contar o francês, que é óbvio, o português que você mesmo está falando dentro de sua cabeça e o inglês da turistada. É evidente que neste naco tão fabuloso do planeta é possível encontrar qualquer coisa, a começar por um teclado não AZERTY, ou seja, usado em qualquer país que não seja a França, parte da Bélgica, parte da Suíça e possivelmente algumas ex-colônias dos gauleses" (longo raciocínio, hein!).

Meu amigo, você está errado. Mesmo nos piores muquifos, naquilo que a França tem de mais recôndito e, do ponto de vista deles, vergonhoso, nada feito. A resposta é invariável: "Impossível na França. Compre pela internet". Como, internet?, sem computador? Mais: mesmo na rede, cada vez que você entra no site de alguma fábrica e indica seu endereço neste país hexagonal, seu pedido é transferido para a subsidiária daqui. De fato: impossível.

Mas estamos na Europa. Sempre é possível encontrar soluções. Primeiro projeto maluco: tomar um trem até Londres e comprar in loco. Segundo projeto: A Alemanha é mais perto. Qual é a primeira parada do trem em território tedesco? Vou até lá e compro. Terceiro projeto: no metrô, dezenas de cartazes anunciam viagens com descontos aparentemente imperdíveis. Uma delas: Porto, em terras lusitanas, e portanto obviamente lusófonas (a não ser que a loucura do mundo já tenha chegado a níveis indigitados, o que, pensando bem, não seria tão surpreendente). 25 € a passagem. Por que não?

De repente, uma mensagem no orkut. A prima da namorada, que mora em Madri, vem passar o fim-de-semana conosco. Resposta rápida: "como é o teclado espanhol? Se for QWERTY (é claro que é, só os franceses pra inventar qualquer coisa diferente disso), por favor compre um baratinho para mim! Eu pago!" E finalmente: sim, é QWERTY. Ela compra o mais barato na loja em que confia e o traz. Pago em espécie. Setecentos euros no bolso andando pelo metrô de Paris não é a experiência mais tranqüila do mundo, mas, ora, para quem já andou com vinte reais na estação da Sé, nada que meta muito medo.

Hoje, finalmente, tenho acesso à internet em casa, tenho um programa (Open Office, bem bacana) que substitui o Word perfeitamente (aqui, ó, Microsoft!), posso falar com a minha família pelo Skype (aqui, ó, companhias telefônicas!), assim por diante. Sou uma pessoa normal, que digita sem olhar para o teclado. Mas durante três semanas eu andei de um lado para outro de Paris (foi bom para conhecer a cidade), conversei com coreanos, argelinos, marroquinos, brasileiros e toda sorte de nacionalidade esquisita, tudo em busca de um maldito teclado. E finalmente consegui.

A propósito, pior do que ter 700 € no bolso no metrô é saracotear por aí com uma caixa gigantesca de computador debaixo do braço. Mas para quem já andou com uma caixa de sapato (vazia) na estação Paraíso, fichinha!, nada que meta muito medo.

* QWERTY, a propósito, são as seis primeiras letras da primeira linha do computador. Q - W - E - R - T - Y.

3.10.06

Um mes e nada de acentos

Pois e, faz um mes que nao escrevo no blog. Tambem, como vou fazer isso? Perdido no Velho Continente, Cidade Luz, Rive Gauche e tudo o mais, cercado de computadores com teclados bizarros, sem acesso a internet, sem endereco, sem documentos definitivos, sem conta bancaria... Nao tem quem consiga publicar nada. Mas antes que pensem bobagem, morto nao estou, pelo menos por enquanto. Assim que eu conseguir comprar (ou passar a mao em) um notebook com teclado normal, volto a publicar. Ate la, espero que o Google nao apague a minha pagina.

E quem entrar aqui, por favor, leiam as coisas antigas, eu ficarei contente de saber que algum movimento ainda tem...

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