4.9.06

Seção dedo de prosa: O nome e ela


Quando menina, ela gostava de deslizar lentamente para fora das cobertas no meio da noite. Debaixo daquele código de silêncio, algo do mais profundo dentro dela tinha frêmitos de prazer com o ruído calmo da fricção dos tecidos. Seu corpo se deixava arrastar deliciosamente, como o de uma cobra, até o chão. Depois, levantando-se, ela saboreava aquela perspectiva diferente da treva, enquanto os dedos de seus pés se acostumavam à mordida do piso frio.

A sala de sua casa era ampla, fresca durante o verão e ligeiramente lúgubre no inverno, quando era abandonada pela família e os raios de sol para cair num silêncio de desespero. À noite, tornava-se um albergue de sombras e formas reconhecíveis apenas para a imaginação. Mas ela entrava naquele vasto recinto com passos reticentes e olhos arregalados. Pareceria uma brincadeira, mas era uma vitória contra o medo, o verdadeiro pavor de origem desconhecida, mas cuja existência não podia ser negada. Ela entrava apoiando as mãos no que estivesse mais perto, o corpo na posição de quem está pronto para correr na direção oposta.

De hábito, ela percorria toda a extensão da sala, observando de cada ponto as diferentes imagens que a parca luz da lua projetava nas paredes ao atravessar o tecido da cortina e dar com os móveis, quadros, enfeites. Maravilhava-se. A experiência, repetida quase a cada noite, valia o esforço e a pena de abdicar do sono e se deslocar pelo espaço ondulante dos corredores. Do lado de dentro da cabeça, ela construía uma fauna que não pertencia a ninguém mais, só a ela. Como é possível que existam tantas formas diferentes? Que delícia perceber como a posição de um par de olhos pode agraciar com o dom de realidade uma figura de puro sonho, tanto quanto uma nuvem que passa no céu pode alterá-la.

Uma noite, ela se sentou, com as pernas cruzadas, bem ao centro da sala, sobre um tapete persa quilométrico, quentinho. Olhava em todas as direções, boca aberta e respiração acelerada. De súbito, sem explicação, ergueu a mão e com o indicador desenhou seu próprio nome no ar, como se tivesse uma tela em branco diante do rosto.

E lá estava ele, seu nome, à sua frente. Ela de um lado, o nome do outro. Flutuando como um pássaro, sem peso, sem um corpo ou uma identidade para prendê-lo, sem significado, sem som. Era só ele.

Ela suspirou. Era só ela. E aquilo era lindo, deixava-a contente para além de seus pijamas. Horas passou ali, contemplando seu nome e sua descoberta, excitada e insone, sem se dar sequer ao trabalho de afastar as mechas de cabelo que lhe caíam diante dos olhos. Até que a vida voltou, pouco a pouco, a enrijecer as paredes da casa e, já sol alto, seus pais se surpreenderam por encontrá-la profundamente entregue ao sono, entre as quatro paredes enfeitadas com quadros e retratos.

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