29.12.07

O sorriso de Oscar Peterson


Se é verdade que virtuose é quem faz o difícil parecer fácil, então o mais patente de todos foi Oscar Peterson, o pianista canadense que, aos 82 anos, acaba de deixar esta vida. Discretamente, enquanto o mundo só tinha olhos para as festas de fim de ano.

Espera-se de um virtuose que consiga embaralhar os dedos sobre as teclas, as cordas ou os pistões de seu instrumento, encadear uma nota à outra com clareza e velocidade, produzir harmonias complexas em seqüência – tudo isso, sem deixar transparecer o esforço que a música exige. Pois Oscar Peterson ia além. Sobre os temas clássicos do jazz, improvisava melodias que quase não se podia acompanhar. Em seu rosto, sempre a mesma placidez. Sempre um sorriso. Se o virtuose exibe uma expressão tranqüila, Oscar Peterson era mais do que um virtuose: era um gênio. O que ele oferecia era a alegria brilhante de quem produz o jazz mais elaborado como se o piano fosse um brinquedo.

Não sei explicar por que o jazz produziu tantos gênios, tantos músicos tão brilhantes e inventivos. O pendor para a autografia que reside no âmago do estilo talvez seja a chave da explicação. Não há música tão aberta ao improviso quanto o jazz. Mais além, tenho dificuldade em imaginar um estilo de conceito tão amplo, agregador de toda influência que lhe passa pelo caminho: o blues na raiz, o caribenho, o urbano, o rock, os gêneros dos países para onde se expande. No Brasil, aliás, imprimiu seus genes sobre a Bossa Nova.

No século da obra aberta, da dissolução dos gêneros, da rixa entre a reprodução técnica e a mística do efêmero, o jazz se encaixou como uma luva. Gosto de pensar que, se as grandes figuras musicais oitocentistas foram heróis do quilate de Chopin e Wagner, as reverências do último século devem ser reservadas a gente como Louis Armstrong, Charlie Parker e Miles Davis.

Nesse restrito panteão, Oscar Peterson tem vaga inconteste. Somente os semideuses da música são capazes, como ele, de levar ao extremo da possibilidade expressiva temas simples como os de Night Train, Laura, On the Sunny Side of the Street, tantos outros. Debaixo de seus dedos grossos, não eram mais as mesmas melodias. Renasciam como monumentos da ação humana. E enquanto o público se entregava ao êxtase que os grandes gênios do jazz sabem catalizar, Oscar Peterson, ao centro do palco, sorria. Como se zombasse do fascínio de seus admiradores. Mas quem haveria de achar zombeteiro aquele rosto iluminado? O sorriso era de satisfação, o êxtase da beleza pelo som. A mesma satisfação experimentava o público, diante da arte que nascia. Ali, naquele instante, enclausurada em cafés esfumaçados ou serelepe pelas grandes salas de concerto.

Era como se nada fosse difícil para Oscar Peterson. Talvez ele próprio fosse o único a não se considerar o maior dos pianistas de jazz. Havia um outro, cuja grandeza sempre o intimidou. Até o fim de seus dias. Era ninguém menos do que Art Tatum, seu antecessor no panteão, o "Chopin maluco" da definição de Jean Cocteau. Na adolescência, um dedicado e estudioso Oscar quase desistiu da música ao tomar contato com as estripulias do mestre e futuro amigo. Anos mais tarde, apesar da estreita ligação entre os dois, Peterson ainda evitaria colocar-se ao piano diante de Tatum.

Desde 1993, quando sofreu um derrame cerebral, Oscar Peterson não podia exibir o máximo de sua capacidade técnica diante das técnicas. Tocava esporadicamente, jamais em grandes salas. Não tive oportunidade de ver ao vivo o deslizar veloz de seus dedos e seu sorriso tranqüilo. E nem seu rosto brilhante, efeito do reflexo da iluminação no suor da testa – suor de calor, bem entendido, não de esforço excessivo. Uma pena. Mas é um alento saber que, mesmo com as limitações que lhe causou o derrame, ele continuasse compondo. Sua última música chama-se When Summer Comes, recebeu letra de Elvis Costello e foi cantada por Diana Krall.

Na página oficial do músico, sua família agradece o carinho demonstrado pelos admiradores, e sugerem doações para uma instituição de caridade. Pois, além de sua atividade como instrumentista, Peterson foi um ativista dos direitos humanos. Na primeira vez em que tocou no sul dos Estados Unidos, foi obrigado a peitar um policial, pelo direito de tomar um táxi "para brancos". Escapou por pouco de levar um tiro. Se tivesse acontecido, seria mais uma vez em que o irracionalismo étnico subtrairia ao mundo um de seus espíritos maiores.

Mas a humanidade deu sorte: não houve disparo, graças à intervenção de Norman Granz, seu empresário. Do episódio, como da obra de Oscar Peterson, restou a lição: a estupidez é perigosa e deve ser combatida. A arte é sublime, e deve ser aplaudida. Segue um vídeo do Oscar Peterson Trio, para que possamos aplaudi-lo, da maneira como ainda podemos.

5.12.07

Triste é depender do acaso


Raras vezes falei de futebol por aqui. Não que eu ache o tema inferior. Ao contrário, os irmãos Rodrigues estão aí para provar que textos maravilhosos podem ser escritos sobre o brutal esporte bretão. A poética dos pontapés e dribles me encanta e fascina. Mas há um lado idealista em mim, e tem coisas que não estou disposto a fazer. Por exemplo: comentar a Seleção Brasileira. Jamais de la vie, mon cher. A camisa canarinho, aquela mesma de Pelé, Zezé e Didi, anda sendo conspurcada pelos jabazeiros que a envergam, em nome da ganância espúria "daqueles que usam terno". A exemplo de seu escrete, o futebol brasileiro anda no mesmo nível. E, particularmente, soy contra. Como não sou homem-bomba, minha única reação possível é o silêncio.

Contudo, não posso me furtar a deixar uma palavra sobre o assunto do momento, ou seja, o rebaixamento do Corinthians. Nem tanto pelo fato em si, que pode ser explicado de muitas maneiras, a principal delas sendo: "fez um número insuficiente de pontos para permanecer na primeira divisão". Mas por todo o barulho que se produziu em torno do evento, e principalmente, o que mais me interessa, pelo que tudo isso nos diz sobre nosso país, esse que construímos no cotidiano, em cada gesto e palavra proferida.

Sim, um evento futebolístico pode explicar a essência do Brasil. É o país do futebol, não é? Os muitos rebaixamentos de clubes grandes que já tiveram lugar pouco repercutem na história nacional, a não ser na dos próprios clubes. A queda do Corinthians, ao contrário, é um excelente trampolim para entender nossos vícios nacionais. Por quê? Nem tanto pelo fato de que, pela primeira vez, a CBF se distrai e "deixa" cair um clube de massa. Tampouco pela festa da torcida arco-íris paulista (e, sejamos honestos, nacional), que fez buzinaço pela avenida Paulista como se fosse para um time campeão. E sim, principalmente, pela forma como esse rebaixamento se deu. Pelo rebaixamento em si. E, de quebra, pela reação da imprensa e dos torcedores em geral.

O que tem de errado na maneira como caiu o Corinthians? Simplesmente, é uma vergonha, uma verdadeira tragédia nacional, que o clube de Itaquera tenha sido rebaixado pelos resultados do campo. É uma prova de que o brasileiro confia demais na divina Providência. Não fosse a incompetência dos jogadores e o time ainda estaria na primeira divisão. Mesmo depois que seu ex-presidente confessou a manipulação de resultados há dois anos. Mesmo depois de tornar-se patente que o Timão foi usado para a lavagem de dinheiro de um mafioso iraniano. Mesmo onze anos após a gravação em que o então presidente do clube organiza um esquema de corrupção de juízes (quem não se lembra do "um, zero, zero", estrelado por Ivens Mendes, Corinthians e Atlético Paranaense, é porque não tinha televisão em casa nos anos 90).

Pois bem. Depois de tudo isso, a única punição à irresponsabilidade dos dirigentes, ao desvio de verba, ao roubo puro e simples, teve de cair do céu. Enquanto isso, tomemos exemplo da Itália. Trata-se de um dos países mais desorganizados e corruptos do mundo. Mesmo assim, há dois anos, enquanto o Corinthians passava a mão no campeonato brasileiro, estourou um escândalo de manipulação de resultados no país de Berlusconi. Envolvidos estavam muitas pessoas e quatro clubes: Juventus, Lazio, Fiorentina, Milan. Pois bem. A tradicional Juve foi rebaixada para a segunda divisão, e começou a disputa com 30 pontos negativos, além de ver extirpados de sua sala de troféus dois títulos conquistados no período investigado. Lazio e Fiorentina também foram rebaixados. E o Milan, time do então primeiro-ministro e manda-chuva do país, ficou na primeira divisão, mas não pôde disputar a Copa dos Campeões, e também largou com pontuação negativa. E não estamos falando da Suécia ou da Alemanha, mas da Itália. A Itália!

E o Brasil? O rebaixamento natural, nesse caso, é uma punição branda e casual. O "título" de 2005, primeiro campeonato entre aspas da história do futebol brasileiro, não está com cara de que vai ser revogado. Os clubes prejudicados pelo trambique não serão ressarcidos. O Corinthians não será multado. Nada impede que, daqui a dois anos, tudo tenha sido esquecido, e ainda lancem um DVD com a campanha heróica do clube na segunda divisão.

Nada mudará. O sofrimento dos corinthianos será tão vão quanto a alegria de seus adversários. Nenhuma lição será tirada do episódio. Ora, normal, isso é Brasil. Não punimos a desonestidade no futebol da mesma maneira como não a punimos na política, na economia e na história. É a mesma coisa. Comemorar a queda do Corinthians é tão ridículo quanto celebrar um escorregão de Collor ou uma doença de Maluf.

Mas de quem, em tese, poderíamos esperar um alerta, uma denúncia, uma voz contrária? Ora... Da imprensa, de quem mais? Pois espere sentado. A Globo, não contente em transmitir um treino do clube do Parque São Jorge, lamentou cada gol e cada resultado adverso. As manchetes todas, na segunda-feira, davam conta de uma comoção nacional que deveria existir, é certo, mas por outro motivo. Ávido por um pouco de seriedade, entrei hoje no blog do Juca Kfouri, que tantas vezes já assumiu o fardo de lutar contra as sujeiras de nosso futebol. Um verdadeiro paladino da justiça aplicada ao esporte, que já comprou briga com Eurico Miranda, o finado Caixa d'Água, Ricardo Teixeira e cia. Sempre com muita coragem. E agora, o que ele apresenta? Uma comparação entre o rebaixamento de seu time e Maysa cantando "Meu Mundo Caiu", a história poética de uma criança que chora a derrota, reclamações tardias contra Alberto Dualib. E mais nada.

Eis por que fico sem vontade de falar de futebol.

(PS: Este texto não é um xingamento ao Corinthians ou seus torcedores; tampouco é mais um a tirar sarro do infortúnio do clube. Pelo contrário, ele é coisa séria; discute a complacência do brasileiro para com a desonestidade. Portanto, nada de reações futebolísticas coléricas. Combinado?)

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