29.6.06

Seção Gemäldegalerie: Odilon Cavalcanti

Torso, acrílica sobre papel de Odilon Cavalcanti

Batendo perna pelas veredas da internet, tropecei na página de Odilon Kleber Cavalcanti, artista plástico pernambucano que reside em Mairiporã, interior de São Paulo. Fuçando na galeria de obras, descobri coisas fabulosas como a tela acima, essa explosão de cores e formas que remete a todo o mistério do sexo feminino, o impulso inescapável para um universo de descontrole e perdição. A imagem, que tem as cores de um Matisse e o volume de uma escultura de Rodin, fala aos instintos até pela imagem: uma figura fugidia, escapando na direção oposta, diáfana como um fantasma em seu poder de mulher. Se eu tivesse dinheiro, gostaria de pendurar na parede de casa.

Odilon é um artista plástico com décadas de experiência; pinta, desenha, esculpe. Seu trabalho, ao contrário da maioria dos artistas trancados em seus ateliês, é fruto de pesquisa e de uma concepção concreta do que deve ser sua arte pessoal. É por isso que o resultado que atinge possui um verdadeiro sentido interno. Odilon não é epígono de corrente ou mestre algum, ainda que dialogue com diversas tradições da modernidade.

À parte seu trabalho de artista, Odilon toca um projeto social em Mairiporã, chamado Terra da Paz. Crianças locais são ensinadas a lidar com a arte como uma forma de intercâmbio entre as pessoas e das pessoas com o mundo. Mais que assistencialismo, o trabalho é formativo; vê-se pelos resultados: a intervenção em uma praça da cidade, há anos abandonada, resultou em um ambiente de socialização e convívio.

Um artista precisa ter um contato profundo com seu mundo. É dessa fricção que surge a grande arte, sua beleza, sua força, sua relevância. Eis um bom exemplo vivo.

28.6.06

Seção gastronomia: Bar do Cidão

Distorço mais uma vez esta seção; nada de restaurante. Vou falar de novo de um bar. Não tenho nenhum motivo específico para isso, a não ser talvez o fato de estar com os bolsos completamente vazios, incapaz de gastar dinheiro em restaurantes. Não sei qual é a mágica financeira, mas, por incrível que pareça, para bar o dinheiro dá. Sempre!

Vou falar deste que é um dos meus espacinhos preferidos de São Paulo (o diminutivo é indispensável, o lugar é minúsculo). Fazia meses que eu não batia ponto lá, mas não agüentei de saudades e toquei numa quinta-feira à noite para o Bar do Cidão, famoso apenas entre os verdadeiros boêmios amantes de samba e choro.

Cidão, o folclórico dono do bar, é um sujeito agradabilíssimo. Para além disso, cumpre dizer que o homem é um mistério: há quem diga que ele é angolano. Que é carioca. Que é um ex-caminhoneiro nordestino. Mas uma vez lhe perguntei diretamente sua origem e a resposta foi lacônica: Uberaba.

Fica decretado, assim, que Cidão é mineiro, porque foi o que ele me disse pessoalmente. Não importa que todas as outras versões usem o mesmo argumento: neste blog, vale o que está escrito.

Vamos ao que interessa: a descrição da casa. Num espaço de não mais que 20 metros quadrados (nunca medi), uma dezena de mesas espremidas voltam suas atenções para uma única mesinha, em que se revezam, a cada noite, grupos do melhor samba, choro, bossa nova e MPB que se possa encontrar em São Paulo. Cada freqüentador tem seu dia preferido. O meu é a quinta-feira, em que a atração é o simpaticíssimo João Macacão e seus sambas-canção, sua voz grave e seu violão de sete cordas. Tudo isso embrulhado em sorrisos e piadas.

Mas não é minha intenção aqui influenciar ninguém. Vá lá e ouça você mesmo. Para quem conhece o Rio de Janeiro, lembra um pouco o Bip-bip. Talvez menos autêntico, um pouco menos improvisado e a lista dos músicos talvez não seja tão imponente. Mas a comparação cabe.

Assim como no Bip-bip, o bar do Cidão tem como característica principal a absoluta ausência de frescuras. Não espere guardanapos de pano, atendimento imediato, conforto, limpeza e outras tolices. Espere, sim, que o som de vez em quando falhe, que a soma da conta venha errada, que o caldinho de feijão esteja frio, eventualmente.

Por outro lado, não espere ver gente esnobe, inculta e desagradável. Espere boas conversas, casais dançando no minúsculo espaço entre as mesas (incluindo o próprio Cidão, dançarino de mão cheia), músicos virtuosos, como Léo do Pandeiro, um jovem percussionista que ainda vai dar muito caldo.

Espere caminhões de cerveja, cachaça mineira da boa e caldinhos deliciosos (quando quentes).

Que mais posso dizer do Bar do Cidão? Ah, sim: no último fim de semana houve uma festa de aniversário do bar, realizada na quadra de uma escola de samba. Não pude comparecer, nem me lembro exatamente quantos anos estavam sendo comemorados. Mas, do fundo do coração, espero que muitos outros venham ainda; não porque eu seja um santo que deseja o bem aos outros, mas simplesmente porque pretendo continuar freqüentando a casa por anos a fio. Se ela fechar, a perda será tão grande quanto a do Top Cine, ex-melhor cinema da cidade.

26.6.06

Seção Pipoca no Escuro: L'enfant

(atenção, vou contar o enredo do filme. Se pretender vê-lo, não leia!)

O filme em si não tem nada de extraordinário. Não é que seja ruim, pelo contrário, é bom. Mais pra bonzinho. Mas vou comentar aqui porque é possível fazer uma ponte com o filme que inaugurou a seção Pipoca no escuro: O homem que copiava paralersemolhar.blogspot.com/2006/05/seo-pipoca-no-escuro-como-atingir-seu.html). Sim, este filme francês de 2005 tem muito a ver com o brasileiro que comentei recentemente.

Dirigido por Luc e Jean-Pierre Dardenne (serão irmãos?), L'enfant (A criança) conta a história de um jovem casal formado por Sonia, uma bela moça, e Bruno, uma espécie de trombadinha francês e maior de idade que ganha a vida nos pequenos roubos para poder curti-la ao lado da namorada.

O filme começa com Sonia procurando desesperadamente por Bruno, carregando no colo seu recém-nascido filho Jimmy. Quando finalmente se encontram, ele está se preparando para mais um roubo, e descobre-se que o malandro alugou o apartamento dela para um amigo.

Com a ajuda de dois rapazotes com não mais que 14 anos, Bruno consegue surrupiar mais alguns produtos eletrônicos; após dividir o butim com os garotos, pega sua amada Sonia, seu pequeno Jimmy, aluga um carro conversível e parte por aí em meio a risadas, beijos e abraços, com toda a alegria da juventude.

À noite, dormem em um albergue para sem-tetos, e no dia seguinte registram a criança. No cartório, oferecem-lhe um emprego que paga 1.000 euros ao mês, mas ele recusa. Trabalho é coisa de otário, diz. Ela, apaixonada, não dá grande resposta.

Tudo vai bem, até que Bruno se lembra da possibilidade de, nada mais, nada menos, vender a criança. Sem perguntar a Sonia, ele deixa a criança dentro de um quarto escuro para ser recolhida pelos compradores. Em poucos minutos, onde antes havia um bebê encontra-se um envelope com 5 mil euros.

Tranqüilamente, ele volta para o esconderijo que divide com a namorada. Lá, conta para ela o excelente negócio que fez, sem qualquer alteração na voz. E se surpreende quando ela perde os sentidos. Bruno, assustado, leva Sonia para o hospital. Sabe que ela vai denunciá-lo à polícia, por isso sai correndo atrás do filho.

Naturalmente, os traficantes de bebês exigem o dobro do dinheiro para devolver Jimmy. Como ele não o tem, fica com a dívida, e se vê obrigado a roubar para os criminosos, sob ameaças e algumas agressões que provavelmente doeram bastante. Saída do hospital, Sonia não quer vê-lo nem pintado de dourado. Evidente.

A situação para ele está preta. Chama um dos garotos e tenta mais um roubo, mas são perseguidos pela polícia, e o menino acaba apanhado.

Nesse momento se dá a virada na mente de Bruno. Ele vai até a polícia e se entrega, inocentando o menor de idade. Já no xilindró, Sonia aceita reencontrá-lo, e a cena final da película são os dois abraçados, chorando convulsivamente. É algo catártico, eu diria. O senso de responsabilidade caiu sobre a cabeça de Bruno como uma bomba, de repente, quando já era quase tarde demais. Ele perderá anos de sua vida naquele lugar, mas não perderá a vida em si. Ao mesmo tempo, recupera a mulher e o filho, e ganha a possibilidade de construir, de fato, uma vida.

Vamos à comparação com o filme de Jorge Furtado. Bruno e Sonia são adoráveis, verdadeiramente adoráveis, exatamente como todos os personagens de O homem que copiava. Como eles, são inocentes e bondosos, vivem em função do amor e do prazer, têm sonhos belos para o futuro.

Em ambos os filmes, os jovens personagens não têm muita noção do que possa ser o mal, a não ser, naturalmente, o mal que os atinge diretamente, como o pai que maltrata a filha no filme brasileiro ou a possibilidade de ser apanhado pela polícia no francês.

Tanto em um quanto em outro, a vontade é ganhar a vida sem grande esforço e aproveitá-la da melhor maneira possível. Os gaúchos de O homem que copiava, por exemplo, querem viver próximos ao Cristo Redentor, e os franceses querem passear de carro pelo interior de seu belo país.

Onde está a diferença fundamental? É evidente: O homem que copiava termina triunfalmente no Rio de Janeiro, com todos os personagens, milionários após fraudes, assassinatos, assaltos e traições, felizes e contentes. Na versão brasileira, o crime é uma festa. Uma excelente maneira de subir na vida. É como ganhar na loteria com um empurrãozinho a mais (por sinal, eles ganham mesmo na loteria). Não há um momento em que a realidade bate à porta, como no filme francês. O próprio tom do brasileiro é laudatório aos corajosos e espertos garotos que driblaram todo mundo.

Em L’enfant, a irresponsabilidade de Bruno, maior de idade e pai, tem seu preço. E é um preço alto. Bruno descobre que viver não é brincadeira. Pelo menos, não na França. No Brasil, olhando em volta, me parece que talvez seja mesmo.

E olha que mesmo as brincadeiras cobram seus preços.

25.6.06

Seção versos subcutâneos: O não-nós


O não-nós

As estátuas de Aleijadinho jamais terão câncer:
As imagens de santos, contorcidas de dor.
As estátuas de Aleijadinho de trezentos anos
Que meus netos, um dia, já sem meu nome,
Contemplarão.

As campinas amanhã serão verdes de outra grama
Com a mesma sombra, mas de outras árvores
E o canto idêntico de pássaros novos.
As cidades enormes serão habitadas
Mas não por mim.

A pedra fria, a terra dura, o tão concreto
Não têm por que ter medo de putrefação.
Nem vêem passar o tempo e as idades
Como nós, que sonhamos e sofremos
E também amamos.

Este mundo é nosso: uma posse, um quintal
É chão para abrir o novelo das vidas
Mas pertence a um não-nós tão absoluto
Que é dono de um mundo que não lhe pertence.
Só será Deus enquanto for Homem.

23.6.06

Que saco!

Pois é: não foi.

Alguém sabe como fazer para que os posts respeitem o recuo que eu quero dar?

Seção versos subcutâneos: Órbita de um pequeno

Não tenho conseguido manter os recuos das linhas nos versos. Sai tudo alinhado à esquerda. Isso fraquece a amizade, até porque não ponho esses recuos à toa. Espero que desta vez vá.




Órbita de um pequeno

Gira em torno de mim um universo
de loucura que lambo
como o sal
da guerra.

Tomo dessa loucura os depoimentos
e devoro as migalhas
de sua linguagem...
...sua linguagem.

Meu núcleo é então um eu tão instável quanto
a verdade:
tão estranho – tão
invendável.

Não posso abraçar a loucura porque
– não sei –
tampouco posso abraçar o
mundo.

22.6.06

Seção diálogos: um mundo de estranhos

Conversa entreouvida de três jovens moças em seu local de trabalho.

Moça 1: Moça 2, você não sabe o que me aconteceu ontem!
Moça 2: O quê, moça 1?
Moça 1: Eu estava no ônibus, voltando para casa, e reparei que tinha um cara olhando pra mim.
Moça 2: Ele era bonitinho?
Moça 1: Ah, ele era! Olho clarinho...
Moça 2: Continua, Moça 1!
Moça 1: Ah, ele estava olhando pra mim... aí numa hora ele me cutucou e disse "moça", e me mostrou o celular dele. Ele tinha escrito uma mensagem: "Oi, você me daria o seu telefone?".
Moça 2: Aaaaaaah!
Moça 1: Você acredita? Aí eu falei pra ele: Moço! Eu sou comprometida!
Moça 2: Ai, é incrível, né?
Moça 1: Acho que ele ficou com tanta vergonha que saiu do ônibus, ou então já tava mesmo na hora de ele descer, sei lá...
Moça 2: Não dá pra acreditar, né?
Moça 1: Ninguém merece! Onde já se viu?
Moça 2: Ouvi dizer que tem gente que faz isso mesmo, no metrô, no ônibus, troca telefone sem problema...
Moça 3 (intervém): Eu fazia antes de me casar.
Moça 2: Juuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuura?
Moça 1: Ai, mas você não tem medo?
Moça 3: Medo do quê?
Moça 1: Ah, sei lá, pode ser um tarado...
Moça 3: Todo mundo pode ser tarado, é uma questão de bom senso! O cara foi mal educado com você?
Moça 1: Não.
Moça 3: Ele parecia ser um tarado?
Moça 1: Não, mas vai saber...
Moça 3: Se você estivesse solteira, daria o telefone?
Moça 1: Ah, sei lá, de brincadeira, talvez...
Moça 3: Aaaaaaaaaaah....
Moça 1: Mas eu nem conheço o cara!
Moça 3: E nem vai conhecer!
Moça 2: Gente! Você acha que ela deveria dar o telefone pra um desconhecido completo?!
Moça 3: Ué? Como você conheceu seu namorado?
Moça 1: Num bar, ele era amigo de uns amigos meus...
Moça 3: Pois é, você não conhecia o cara, e hoje namora com ele. E estão pensando em casar!
Moça 1: É diferente!
Moça 3: Bem diferente. Mas é uma pena que a gente viva numa cidade de 11 milhões de habitantes, mas as pessoas não possam se comunicar. A gente pega as mesmas linhas de ônibus todo dia com as mesmas pessoas, que às vezes têm as mesmas idéias que a gente. Poderiam ser nossos amigos. Mas nós nem olhamos na cara delas. E quando alguém tenta romper a barreira da solidão urbana, os outros reagem como se isso fosse um absurdo. Ficam indignadas e tiram sarro, como vocês estão fazendo.
Moça 2: Ah, pelo amor de Deus... Hoje tinha um cara lá embaixo no prédio que veio puxar assunto... e já queria marcar de sair...
Moça 3: Que legal! E vocês marcaram?
Moça 2: Tá maluca? Nem conheço ele!
Moça 3: Depois reclama que está solteira.

21.6.06

Seção versos subcutâneos

Um haicai em homenagem a Hägar, meu falecido cão.

haicai

A força do cão
a misturar-se à terra.
Tulipas crescem

20.6.06

Seção Dedo de Prosa: Imagens de um seqüestro

Imagens de um seqüestro

Assim, eu fui agarrado de surpresa por duas sombras de cara amarrada. Elas eram enormes, muito mais fortes do que eu. Não tinha como resistir. Fui arrastado e atirado no branco traseiro de um carro de luxo sem maçanetas nas portas de veludo. Tive um ataque de riso quando entendi que estava sendo seqüestrado, e esse ataque só fez aumentar quando finalmente me dei conta de que isso não tem nada de engraçado. O carro arrancou como um acorde dissonante, e eu berrei para dentro. Olhando pelas janelas, vi os campos, onde elefantes devoravam formigas. Uma cena sanguinolenta. As sombras, sempre me cercando, não olhavam pela janela. Só fumavam seus segredos e olhavam para o tudo, soltando baforadas de uivos que cheiravam a tempo. Comecei a ficar enjoado. O carro seguia pela existência, fugindo dos engarrafamentos de fluidos. As rodas pareciam não tocar o chão, como se temessem o contato com a realidade – a realidade concreta, naturalmente. Engoli o destino em seco.
Soube de uma hora para outra exatamente aonde estava sendo levado. Juro que quis escapar – mas as sombras bocejavam. Quis barganhar, quis implorar, mas acabei me cansando de falar sozinho. A luta pode ser uma coisa muito fatigante, dependendo das circunstâncias. É por isso que fui obrigado a me entregar e ser flutuado rumo à vibração silenciosa cujo nome não me podia ser revelado e talvez nem existisse. E o carro chegou, soltando seu longo trítono agudo. Meu coração se fez cerâmica. Fui ejetado para a poeira e perdi o carro de vista. Já devia andar lá pelas nuvens. Continuei com os olhos fixos no chão enquanto me punha de joelhos. As minhocas insolentes faziam gestos obscenos. Senti-me diminuído na minha posição de bípede. Isso assim não pode ser! Levantei-me de um suicídio e olhei bem à frente, já sabendo o que os meus olhos tontos encontrariam.
Como previsto, lá estava ela. Uma edificação de fachada inocente. Banhada do alto por um sol morno e algo sensual. Sedutora em sua ameaça. Bela como uma casa de veraneio. Palpitante como a idéia de um lar. Eu, porém, não estava encantado como me sentia. Estava aterrorizado como sabia. Cambaleei em sua direção como para um regaço de mãe esquecida. Verti vergonhas porque aprendi que aquela casa era quem me conhecia, e não o contrário. Aquela era a casa em que gozei minhas humilhações. Sádica! Aquela casa, ela se assentava sobre as vigas da minha fraqueza. Eu vi, desenhadas nas paredes, como se o tempo se recusasse a passar, as delícias dos meus sofrimentos. Tudo isso, sim, gravado com sal e enxofre em cada tijolo da construção. Minha dor, a própria, era a massa que untava aquela infinitude de peças sem nome que apenas quando unidas tomavam o significado doentio de uma casa.
Quem mora aí? O fogo. E eu estou enterrado em suas lajes. Meu corpo treme e minha voz se quebra: fico feliz de saber que os passarinhos podem construir ninhos ali. Na sede das minhas trevas.

19.6.06

Imagens


Estas duas imagens deveriam ter entrado no post anterior mas, por algum motivo inexplicável desses que só a internet é capaz de inventar, ficaram de fora. Coloco aqui, só por desencargo de

consciência. São a capa do livro e seu autor. Reparem como o cara é figura... mas escreve bem à vera.

Também não consegui fazer o layout ficar decente. Mil perdões; espero que com o tempo eu aprenda.

Seção "Não Veja: Leia!" - Tudo que é Sólido desmancha no ar

Entrei hoje num blog que pedia a indicação de um bom livro. Agradeço à blogueira: lembrei-me imediatamente de que faz semanas que venho postergando um post que, Viva!, vai inaugurar esta nova seção. "Não Veja: Leia!" será um espaço para indicar boas leituras.

E inauguro com um livro que foi escrito nos anos 80, mas confesso que só veio a cair nas minhas mãos há alguns meses, graças à indicação de um professor de estética da faculdade que fazia. Serei sempre grato ao mestre. Obrigado, professor! Tudo que é sólido desmancha no ar (All that is solid melts into air), de Marshall Berman, deriva seu título de um trecho do Manifesto Comunista. Nem por isso é um livro de esquerda, embora o autor tenha publicações sobre o tema.

Este livro trata da questão da "modernidade". Como assim, questão? Como assim, modernidade? Berman, filósofo e crítico nova-iorquino, dedica diversos capítulos a elencar manifestações de uma enorme revolução na vida humana ao longo dos últimos três, ou até quatro, séculos.

A modernidade, aponta Berman, tem seu embrião no Renascimento, quando uma estranhíssima idéia humanista começa a florescer. No entanto, é só com o advento da burguesia "quase" industrial que a revolução “moderna” se espraia por todas as áreas da vida humana, de maneira generalizada, constante e irreversível no Ocidente. A Revolução Francesa, as reformas do barão Haussmann em Paris, o surgimento do marxismo, são todas faces de um fenômeno que se caracteriza centralmente pela mudança ininterrupta, pela incerteza constante, pelo turbilhão de construção e destruição que qualquer habitante de cidade grande conhece perfeitamente.

O livro é bastante extenso e, sim, editado pela Companhia das Letras só poderia ser mesmo bastante caro. Mas só a leitura da introdução já valeria a pena. Eu diria, aliás, que mudou minha visão do mundo.

O restante do livro também é delicioso. O primeiro capítulo estabelece a figura do Fausto de Goethe como símbolo maior da modernização. Seu rompimento com os códigos sociais da Alemanha atrasada do final do século XVIII pode ser lido como um paralelo da renúncia européia à tradição obscurantista da Idade Média. Sua incontinência revolucionária, que o leva a arrasar completamente todo o mundo que lhe é anterior e mesmo aquele que ele mesmo construiu, pode também ser interpretada como um raio-X da sanha acumulativa irresponsável inerente ao capitalismo.

Em seguida, vêm capítulos sobre Marx e as implicações sócio-econômicas da modernidade, Baudelaire versus Haussmann ou dãndi versus flâneur, São Petersburgo e a literatura russa do século XIX (talvez o melhor de todos, até porque esse período da literatura russa por si só justifica a existência de livros) e, por fim, Nova York no século XX.

O post está ficando longo, então vou parar por aqui. Eu bem poderia seguir discutindo o assunto por dias a fio, mas acho que não fica bem. Quem quiser, me mande um e-mail, que o assunto rende. Todos nós vivemos sob a égide do conceito de modernidade, queiramos ou não, mas a questão para nós, hoje, no século XXI, é “aonde isso vai nos levar?”. Espero que encontremos uma resposta antes de descobrir que chegamos a um abismo.

17.6.06

N.B.

Não, eu não sou um dos sócios do bar abaixo.

16.6.06

Seção gastronomia: São Paulo de 4

Este é um endereço que acabou de abrir na cidade. Espero ser o primeiro a falar dele na internet, na imprensa, onde for. Confirmando-se, será meu primeiro furo na qualidade de blogueiro.

São Paulo de 4 é um bar, mas seus sanduíches e porções são tão gostosos que dá para encaixar na seção gastronomia, que já anda abandonada há semanas. Tem um frango empanado, "Fuga das galinhas", que é simplesmente um crime, bem como a sobremesa inventada pela tia de um dos proprietários.

O clima é o mais agradável possível. Na realidade, a maior parte dos freqüentadores são, por enquanto, amigos dos donos. Como eles formam uma combinação inaudita de gente interessante, inteligente e bem relacionada, o resultado é um público de altíssimo nível humano.

Digo humano para diferenciar de nível financeiro e outras baboseiras do gênero, que é o que geralmente se deve entender quando lemos nos jornais e revistas que um lugar tem um nível excelente. Não é disso que estou falando. Estou falando de gente, mesmo.

A música é sempre muito boa, por mais variada que seja. De samba a jazz, passando por rock anos 80, forró e mais uma infinidade de coisas. Graças à vastidão do ambiente, é possível circular sem levar grandes cotoveladas. Ainda por abrir, um espaço no segundo andar onde haverá música ao vivo.

O lado negativo fica por conta do atraso na instalação do exaustor da casa. As obras já começaram, mas enquanto não ficam prontas o cheiro de cigarro é insuportável e, num dado momento, as pessoas podem começar a passar um pouco mal. Nada que não se corrija com o tempo.

A entrada é gratuita e os preços são justos. Mais justo ainda é o tal pão de queijo da meia-noite, que passa regularmente em todas as meias-noites que uma madrugada pode ter, ou seja, a cada quinze minutos mais ou menos.

Outro dia levei um amigo lá, e ele comentou que teve a impressão de que o bar fosse GLS. Respondi que ele tinha razão, de certa forma. Mas eu diria que está mais para S que para GL. A sexualidade dos freqüentadores é irrelevante no espaço, uma vez que homos e heteros se misturam sem maiores questionamentos. Por outro lado, tanto uns quanto outros, homens, mulheres, gays ou não, concordam que no mínimo a paisagem é boa.

O endereço? Procure na internet. Adianto apenas que é um quarteirão da Vila Madalena que não se parece com todos aqueles outros insuportáveis. É calmo e quase escondido.

14.6.06

Seção versos subcutâneos: Cá, Fontaine

Cá, Fontaine

A rolinha parda
bateu asas e
cansou.
Pousou num galho seco,
tristonho...
Despencou.

A rolinha parda fez lá
seu esforço
Aos suspiros tentou
até que enfim
conseguiu.

Galho podre e rola parda
rolaram com doçura
pelo chão

Sobre o manto
- maciozinho -
de folhas
- ai, pinicam! -
velhas e mortas,
ficou a rolinha deitada,
feliz.

Ah! Que bom que não tem inverno que me obrigue a migrar!
Pensou, e caiu no sono.

13.6.06

Seção Versos subcutâneos: Amemo-nos

Estou me especializando em tomar puxões de orelha. Recebi uma reclamação que vale por mil, apontando que passei batido pelo 12 de junho, Dia nos Namorados. Tempo de tirar a carteira do bolso e declarar com bens o amor que no resto do ano você declara com beijos, abraços, palavras e atitudes. Pois vá lá. Eis um soneto que pode se encaixar na data, pelo menos no que ela ainda tem de belo:

Amemo-nos

Libido, o convite lascivo pleno
Vinho tinto, música, apartamento
Tomar e deixar, bel divertimento
Não, bem mais obscuro, bem mais obsceno...

O degustar, parco prazer ameno
De escorrer – sorver como desatento,
Como sangue ao sangue, um assalto lento:
Rugidos que aos suspiros concateno.

Depois te banhas, pois que no fragor
Da batalha corpo e alma consomes:
Joelhos e cotovelos se arrastam

E arranham: sim, ao prazer o amor
Não se furta em responder por seus nomes:
Explodem os corpos que se desatam.

12.6.06

Dias de Fussballweltmeisterschaft Zweitausendsechs (Copa do Mundo 2006)

Levei um puxão de orelha de um amigo muito experiente nessa coisa de blogar: dê intervalos maiores entre as postagens. É impossível ler tudo. Fica chato. Eu, como pupilo humilde e dedicado que sou, baixei a cabeça e assenti. Vou aproveitar a Copa do Mundo pra ficar mais tranqüilo com o blog.

Falando em Copa do Mundo, alguns comentários:

Galvão Bueno deve ser maluco. Segundo ele, a Alemanha foi campeã pela última vez jogando em casa numa final histórica contra a Holanda. Isso foi em 74. Galvão, nosso Stalin esportivo, apagou da história a copa de 90. Mas tudo bem, ela foi perfeitamente esquecível, a não ser para os alemães, claro.

Os times africanos estão de fato crescendo. A Costa do Marfim, por exemplo, não fez feio contra a Argentina, apesar de terem muito menos futebol e malemolência que os hermanos. Falta muito a aprender, mas quando acontecer, sai de baixo.

A grande diferença entre os grandes países futebolísticos e o resto é realmente a intimidade com a bola. Vendo Portugal e Angola jogando, pude reparar que eles esperam a chegada da gorduchinha dando aqueles passinhos que nós, jogadores amadores, damos. Não consigo descrevê-los, mas eles demonstram falta de tempo de bola, algo que um profissional brasileiro, argentino ou italiano já nasce sabendo. Não tem jeito, isso não vai mudar.

Telão no estádio? Ih, virou show do U2.

Esses são os meus comentários sobre a Copa. Hoje de manhã escrevi um texto sobre a volta ao normal da vida em São Paulo, mas o blogger caiu, como sempre, e perdi tudo. Vamos ver se depois escrevo de novo. Nota zero para o Google nessa!

Seção versos subcutâneos: Olhos de epilepsia

Teus olhos de epilepsia
Buscam na carne a essência;
Que te parece, portanto?
Que te parece essa carne?

Teu membro fraco renega
O calor dos corpos vivos;
Que te parece, deveras?
Que te parece esse sexo?

A tua arcada dentária
Rasga com furor o vento;
Que te parece agora?
Que te parece esse espectro?

Parece verdade?
Parece miragem?
Parece loucura?

Se te deixasses dormir...
Aí saberias.

9.6.06

Seção Dedo de Prosa: O endereço do papel

O endereço do papel

Chega à frente do edifício e confere o endereço. No papel amarrotado, em letra de fôrma, o nome da rua e o número. E o apartamento. Aperta o botão do interfone. Afasta-se alguns passos e se põe a observar o prédio. Uma construção antiga, coberta de fuligem, mas ainda imponente no meio de todos os fios e cartazes publicitários enrugados. Colunas de pedra maciça, sólida, áspera, forte, angulosa. Janelas grandes, com persianas feias, velhas, enferrujadas e tortas.

De frente para a porta metálica, trabalhada, de quase três metros de altura, toca novamente a campainha. Os números dos apartamentos já estão puídos nos botões, mas ninguém parece se preocupar em substituí-los. Nem aos vidros da porta, todos trincados. Não tem porteiro. Ninguém entra, ninguém sai do prédio.

Região central da cidade. Vendedores ambulantes. Gente que vende pipoca. Milho. Baterias de relógio. Homens jovens diante de banquinhas com filmes e discos piratas. Ninguém responde ao interfone. Ninguém aparece no corredor para dar alguma orientação. Ninguém nada.

O endereço está certo, não está? Está. Mas esse prédio parece abandonado. Não deve morar ninguém aqui. Uma mulher carregando um bebê. Parece que a qualquer momento pode deixá-lo cair. Ela não sabe segurar o próprio filho. Entra no prédio ao lado. Uma construção muito parecida com essa, mas habitada. Habitada por uma mãe pouco caprichosa e sabe lá mais quem.

Um idoso pede esmola a uma distância de poucos metros. Estende o braço fino e enrugado. Mais uma vez a campainha, e as pedras lá em cima, duras, quadradas, mortas, e o idoso pedindo esmola cá embaixo, pobre, seco, vivo por um fio. Poucas moedas dentro de seu chapeuzinho mirrado a ponto de esfarelar.

Suspira. Olha o relógio. O horário é o combinado. Longo caminho. Ônibus, metrô, baldeação, caminhada. Pessoas mal-encaradas em torno. O alto-falante anunciando um candidato a vereador. Do outro lado da rua, um assalto, gritaria, o meliante esbarra e derruba uma pequena senhora e suas compras. Frutas pela calçada, comoção, um ambulante de camisa curta e aberta ajuda a pobre senhora a se levantar. Já vai longe o ladrão com seu revólver enfiado na bermuda, o sinal abriu, a vítima acelerou, fez a curva, está em outra rua e indo em outra direção.

Nenhuma reação do interior do prédio. Só pode estar abandonado. Não adianta bater. Ninguém lá dentro, no corredor. As pancadas reverberam. Porta antiga de metal. Faz bem externar a raiva. O ambiente é desagradável. O calor é desagradável. O cheiro é desagradável, cigarros, suores e escapamentos.

Os freios dos coletivos guincham ao parar nos pontos. Todos os ônibus com defeito no freio. Os passageiros mortos de cansaço. Desanimados. Menos duas moças com brincos cor-de-rosa, que estão sentadas e conversam animadamente. Um rapaz, de pé, as observa. Parece desejá-las vagamente, como se deseja uma bala entre outras num balcão de bombonière. Os demais passageiros olham para o chão ou para as próprias mãos.

Mais batidas na porta. Com violência. A violência é um alívio. Sede. Dois homens de cabelos brancos passam em direção a lugar nenhum. Um sonhou com uma placa de carro: quarenta e seis, vinte e três. Não pode ser à toa. Mais adiante, se detêm diante de uma banquinha de madeira com um sujeito atrás. Um sujeito de olheiras abissais e pele flácida. O do sonho repete: quarenta e seis, vinte e três. Pois não, doutor, com a voz embargada de quem não está presente. E o senhor? Não sei. Gosto de cavalo. Pois leva cavalo, então. Pagam. Continuam conversando. O homem da pele flácida, enquanto coça os cabelos do peito, enfia o dinheiro no bolso da calça. Escuta rádio. É uma estação evangélica. Cura através do espírito. O demônio expulso. A vida recomeçada. Uma canção de alegria.

Nada disso tem graça. Muita sede. Na esquina, poucos passos além, um boteco com máquina de karaokê. Pessoas de todas as constituições possíveis sentadas no balcão. Um moço imberbe tenta acompanhar uma melodia diante da máquina. Não consegue direito. O microfone lhe roça o buço negro. Desafinado. Não entende a letra. Voz feia. Ninguém lhe dá atenção. Água, por favor.

Copo ou garrafa? Copo. Com gás ou sem? Sem. Gelada ou natural? Gelada. Um real. De volta à fachada do edifício. Decide esperar só até acabar aquele copinho. Mais um toque sem esperança naquela campainha. Pode estar quebrada. A água não vai durar muito. Sede. Calor. Sujeira, poluição... Se o interfone estiver quebrado, não vão escutar. E fazer o quê? Não há fluxo de pessoas naquele prédio, não dá para entrar. Será que ele está vazio? Será que ninguém mora nele? Não tem ninguém do outro lado?

Difícil respirar. Ambiente desumano. Insuportável. Nem o sol se digna a aparecer por aqui. As nuvens começam a tomar conta do céu e o ar vai ficando abafado. Escaldadas, algumas pessoas já preferem correr para se abrigar da chuva que virá, sem dúvida. O vento vem de uma só vez, forte, levantando papéis.

O homem da banquinha se assusta. Com um movimento da mão, agarra-se a seus cartões, que ameaçavam sair voando. Sem demonstrar pressa ou preocupação, eleva os olhos para o céu e faz um sinal afirmativo com a cabeça. Parece que sorri. Só de leve. Começa a enfiar os cartões no bolso da camisa, sem ordem, amassa a maioria. Continua não demonstrando pressa ou preocupação. Recolhe suas coisas.

O copo está ficando vazio. Melhor correr, também. O vento é refrescante, mas é sinal de chuva. Pode ser temporal, não seria nenhuma surpresa. Buzinas. Motoristas fazendo gestos obscenos para fora das janelas de seus automóveis. Os sinais vão do vermelho para o verde, do verde para o amarelo, daí para o vermelho, como sempre. Os pedestres atravessam correndo. As mulheres, segurando suas bolsas. Os homens, desajeitados. Jovens passam por entre os carros oferecendo balas, canetas e carregadores de telefone celular. Alguns já estão cobertos com um plástico. A chuva é inevitável.

A porta continua fechada. O interfone continua mudo. Ninguém responde. Não há comunicação. A volta vai ser tão penosa quanto a vinda. Mais metrô, mais ônibus. Debaixo de chuva. Empacotados de gente. Milhares de pessoas suadas, agredindo-se para entrar nos vagões ou nos coletivos. Alguns batedores de carteira. Algumas freadas bruscas. O dinheiro das passagens gasto à toa.

Um acesso de raiva. Mais batidas na porta. De mão fechada. Só o eco consegue invadir aquele corredor bege, mas rebate no mármore das paredes e corre de volta. No mais, o prédio prefere o silêncio. Lúgubre, impávido, segue sua vida decadente. Não responde, não se curva para um cumprimento, não oferece abrigo, não demonstra compaixão. Todos os prédios enfileirados. Aquele é o pior de todos. Insensível. A chuva desaba pesada.

8.6.06

Seção Versos subcutâneos: O romance que nos escapa

Decidi que não vou mais deixar textos explicativos antes de poemas. Acontece que me dei conta de que essas explicações servem apenas para direcionar o entendimento do leitor, ou seja: destroçam as possibilidades dos versos. Daqui por diante, portanto, vai seco mesmo:

O romance que nos escapa

A mesa da biblioteca,
no silêncio dos saberes,
deseja ardentemente a carne
apetitosa da poltrona.
Freme, sua, enrubesce
quando sente no tampo um livro
e o leitor que, ajeitando o assento,
dela aproxima seu grande amor.

The economy, stupid!

Depois de uma gestão marcada por escândalos de corrupção, deslizes verbais, uma política externa desastrosa e a destruição da cultura nacional, eis que nosso presidente está à frente, e bem à frente, de seu adversário nas pesquisas de intenção de voto para a reeleição. E isso tudo porque, sagaz como é, ainda não admitiu que será candidato em outubro.

Todo mundo está surpreso, ou finge estar. Analistas políticos culpam as divisões internas do PSDB, as brigas com o PFL, a sabotagem do José Serra e do Aécio Neves, a falta de empatia do público com o candidato tucano, Geraldo Alckmin, também conhecido como Chuchu ou “o cara que colocou o Saulo de Castro Abreu na SSP-SP”.

Outros apontam as viagens eleitoreiras do presidente para inaugurar obras no país inteiro, a tal da auto-suficiência em petróleo os aumentos para o funcionalismo, os churrascos na Granja do Torto e até a proximidade da Copa do Mundo.

OK, tudo isso é verdade. Mas a resposta mais correta parece vir da pena de um político estrangeiro chamado James Carville. Tudo bem, a frase é bem batida, mas explica a vitória do Clinton nas eleições americanas de 1996 e explica o bom desempenho de um combalido Lula em 2006, ou seja, uma década depois: “It’s the economy, stupid”.

A frase era um dos motes da campanha de Clinton e parte de uma percepção corretíssima mas que só podia mesmo surgir nos Estados Unidos. Quando a economia vai bem e as pessoas sentem que podem comprar mais, seus empregos estão garantidos, dá pra sonhar com aquela televisão nova, não há erro: eles vão votar no partido da situação. Mesmo com mensalão, charuto na Lewinsky, compra de votos (né, Fernando Henrique?), derrota da seleção, unha encravada...

Chuchu ou não, viagens ou não, se o dólar estivesse em R$ 4, a inflação em 10%, a massa salarial caindo, os juros nominais acima de 20% e assim por diante, Alckmin poderia carimbar seu passaporte para o Planalto e o ar seco de Brasília.

Isso quer dizer que as políticas econômicas do governo Lula foram brilhantes? De jeito nenhum. A economia brasileira se beneficiou sobretudo do acaso, ou melhor, da sorte. Fatores absolutamente incertos como a alta dos preços das commodities, a demanda obesa da China, os juros baixos dos EUA e a conseqüente sobra de capital para países emergentes. Ah, sim, sem contar o aumento da produção de petróleo justamente no momento em que ele atingiu US$ 70 no mercado internacional.

Mesmo assim, o Brasil foi o país emergente que menos cresceu nos últimos anos (não posso considerar o Haiti um país emergente). Nossos 2,5% anuais são até tristes se comparados aos 9% de uma Argentina, por exemplo. Crescemos menos que a Venezuea de Chávez, que o Paraguai, que a África do Sul... que todo mundo. Principalmente: a taxa de expansão da economia brasileira foi menos que o crescimento da população. E isso é perigoso: continuamos empobrecendo, num país em que já é perigoso andar pelas cidades durante o dia, que dirá à noite.

A pergunta que isso traz à cabeça é: como estaríamos se a China tivesse decidido frear o crescimento, os EUA tivessem tido um surto inflacionário que exigisse um aumento dos jutos, a plataforma P-50 não tivesse ficado pronta e os investidores estivessem mortos de medo das volatilidades do mercado?

Difícil dizer, mas certamente a vida do molusco presidenciável não seria tão fácil.

Para terminar: os juros americanos estão subindo, a China deu mostras de que pretende pousar seu crescimento, os preços das commodities estão estabilizando. Que segundo mandato teremos, se o Lula confirmar a vitória?

As apostas estão abertas.

Seção curtas: o óbvio Lulante

Os jornalistas brasileiros ainda não descobriram o óbvio. Tudo bem: admito que foram inteligentíssimos, mas muito espertos mesmo, ao se dar conta de que Lula será candidato à reeleição, apesar de não admitir e fingir que é com ele.

Mas apesar de toda essa inteligência, ainda não foram capazes de observar que todo e qualquer político agirá sempre dessa maneira. A política é a arte dos artifícios. Os candidatos farão tudo para aproveitar ao máximo as oportunidades que tiverem.

Não entendo qual é a surpresa. Qualquer outro em seu lugar faria a mesma coisa, a não ser que seus assessores sejam incompetentes e, convenhamos, burros.

Mas aí, claro, ele não chegaria a presidente.

Seção curtas: Degas no escuro

O Masp é um museu nascido sob o signo da gestão irresponsável e amoral de recursos privados.
É um museu que se desenvolveu através da promiscuidade dos governos brasileiros (no caso, Juscelino), que tratam o dinheiro dos impostos como se fosse capim.
Hoje, é um museu em crise, esperando a oportunidade de ser salvo por mais uma operação financeira de aparência milagrosa e fundamentação escusa.

Nada muito diferente do país como um todo.

7.6.06

Seção versos subcutâneos: O homem acinzentado

Este pequeno trabalho é uma homenagem a um antigo chefe meu, que transmitia um ar de constante e inexplicável tristeza. Certa tarde, enquanto lia debaixo de uma árvore, vi-o a voltar do almoço, naquele passo cadenciado que lhe é característico, o olhar baixo e um guarda-chuva na mão. O resultado segue abaixo:

O homem acinzentado

O homem acinzentado
Se protege da chuva forte
Todos os dias.

Olhos fixos no casco do Olimpo,
Conversa em voz baixa com deuses
Sempre enfastiados.

Atravessa a multidão a tentá-lo
Como bloco que se perdeu dos foliões;
Morto de desejo?

O homem estofado de couro
Destranca o tabuleiro de ardósia
E se aplica um xeque-mate;

Comemora com uma taça de Porto
E, ao vento de desejos inconfessos,
Sente-se mareado.

Jamais regurgita a fealdade,
Mas absorve o desencanto:
Vê seu mundo morrer.

6.6.06

Seção Gemäldegalerie: Grasset e os primórdios do art nouveau


Eugène Samuel Grasset nasceu em Lausanne, Suíça, em 1845. Estudou na Escola Politécnica de sua cidade até se interessar pela arte, quando trabalhava como assistente em um escritório de arquitetura. A paixão deve ter sido fulminante: passou a estudar pintura e gravura, e foi parar no Egito para estudar sua arte e, pelo visto, se inspirar nos milenares hieróglifos das tumbas dos antigos faraós.

De volta à Europa, foi tragado pelo turbilhão artístico da época: como todo jovem criador, acabou no centro do Universo de seu tempo: Paris. Lá, misturou-se com gente como Alphonse Mucha e passou a ser um dos pais do movimento Art nouveau, que de certa forma ditou grande parte das tendências da arte menos revolucionária do século XX. Prova disso são os edifícios que existem até hoje, mesmo no Brasil, inspirados no movimento (sobretudo seu famoso epígono, o art déco).

Na primeira imagem, mais comportada, temos uma amostra do trabalho de ilustrador e cartazista de Grasset. Como se vê, o cartaz usa o mínimo possível de traços, nega a necessidade de luz ou perspectiva e remete aos vitrais das antigas catedrais góticas. Mais que isso, a base do que seria o trabalho de artistas como Henri Toulouse-Lautrec, por exemplo, já está presente na obra de Grasset, décadas antes.

Forçando um pouco mais a vista, começa a ficar evidente que já está presente nesse trabalho a semente do que mais de meio sédculo depois seria a Pop art norte-americana. O despojamento da imagem, a simplicidade da imagem, as cores chapadas, os volumes grandes, os contrastes evidentes. Mesmo aquele erotismo subliminar das obras posteriores já pode ser visto aqui.

A segunda imagem destoa da obra mais evidente de Grasset. Está exposta em um museu suíço. Ao contrário do primeiro trabalho, que era o cartaz de uma exposição de arte, este deve ser a ilustração de um livro; talvez um conto-de-fadas, ou uma história de terror, não sei.

Mas a idéia é completamente diferente: ainda que as cores do fundo continuem sendo fortes e chapadas, o sujeito da imagem é tratado de maneira diferente. Esses estranhos espectros em fuga numa floresta de pesadelo são compostos com um azul claro cheio de traços, de tensão, cores diáfanas e linhas irregulares.

Fascinante, não? Tive curiosidade de saber qual é o livro que foi ilustrado por essa imagem, mas a página do museu suíço não informou (ou então meu alemão já está tão ruim que não consegui entender...). Um dia, quem sabe?

Eugène Grasset morreu na França em 1917.

5.6.06

Seção Dedo de Prosa: Cinco Reais

Sobre aqueles dias em que não sabemos como combater o amargo da boca e a respiração curta. Sobre o sentido de panacéia que damos ao dinheiro quando queremos desaparecer no tom cinzento de um mundo hostil. Sobre isso, e tantas outras coisas.

Cinco reais

Por cinco reais me alimentei terrivelmente mal. Pedi o que de mais caro havia e me sentei sozinho. Tentei transmitir todas as minhas tristezas para o dinheiro, mas elas grudaram em mim como as unhas de um gato preto esfomeado. Falhou a minha incursão na bruxaria. Hoje vejo que se tivesse comprado alguma coisa, alguma coisa concreta, ficaria sem o dinheiro, mas algum patrimônio a mais. Estupidez? Consumismo? Mas o tal objeto seria companhia e ícone para aquele momento de tristeza que jamais esquecerei. Mas o que acompanhou a acidez do sentimento na realidade não foi nada mais do que a acidez do meu estômago com fome. Nunca fui tão infeliz... ler relatórios com olhos mareados é uma tarefa difícil. Argumentar, com o coração retorcido, é impossível. A fome como punição é uma tolice, mas é melhor do que o suicídio. Não é? A fome é perfeitamente apropriada para uma alma sem firmeza. Mas é mesmo assim uma tolice enorme. Nunca fui tão infeliz... caminhar com as pernas bambas, cuspir horários, prazos, cronogramas... A fome não é uma punição valorosa, e nem pune. Nem conforta. Nem reforça. Chorar? Não basta. O dinheiro banhado nesse pranto? Não lava. Mais tarde fui descobrir que o fogo não purifica, nem o ferro extirpa, ainda que decepe todos os membros e fure todos os olhos do mundo. Nem a arte, do alto de suas nuvens do sublime, eleva a alma de um homem prosternado, estatelado, arruinado. Enquanto na garganta os espíritos cruciam, alhures o capital circula e as chuvas alagam. A verdade? Um corpo inerte, um homem pálido e frio, é matéria de poetas e garis. Minha fome é o vazio do meu estômago, não é poema nem guerra. Por cinco reais, posso comer bem ou mal, posso comprar uma lembrancinha, posso garantir a semana de um mendigo. Posso morrer de graça. Sofrer de graça, tombar na calçada e dormir ao relento. Mas não há dinheiro que justifique ou salve ou reverta a vida de ninguém.

Seção diálogos: Às fogueiras!

Este diálogo aconteceu de verdade, entre uma mãe e a filha na hora do chá, diante de torradas, xícaras, bule, toda aquela parafernália. A mãe, católica fervorosa, mas das que se consideram modernas. A filha, espiritualidade à parte, não segue necessariamente a mesma linha. Prefere se manter à parte por motivos pessoais, etcetera, etcetera, o roteiro é bem conhecido. Vamos ao diálogo.

Mãe: O mundo está ficando maluco... Estou muito preocupada com isso.
Filha: Sabe que eu também? Bombas atômicas, terroristas internacionais, poluição atmosférica, esgotamento dos recursos naturais...
Mãe: É impressionante o retrocesso moral!
Filha: Impressionante mesmo. Parece que estamos regredindo, as pessoas pensam com o fígado, uma violência generalizada, consumismo irracional, hedonismo suicida...
Mãe: Você sabe qual foi a última?
Filha: A última? Bom, tem várias últimas...
Mãe: Agora uma tal artista aí... Uma tal de Márcia X., resolveu que queria chocar.
Filha (aparte): Ih... Já sei o que está vindo...
Mãe: Pois é. O que é que a fulana resolveu fazer? Pegou vários terços e fez desenhos com eles... em formato de... bem, você sabe, de...
Filha: Sei, sei, sei...
Mãe: ... bom, de pênis...
Filha: Eu sei, eu sei, eu sei...
Mãe: Pra quê, isso? Precisa atacar a fé das pessoas assim? É sempre com a Igreja Católica! Nunca é com as outras, já reparou? Quer publicidade! Quer ibope! Que absurdo...
Filha: Bom, ela deve ter feito isso há muito tempo... Já morreu há anos...
Mãe: É mesmo? Como é que eu nunca tinha ouvido falar disso?
Filha: Sei lá. Vai ver não era tão importante assim.
Mãe: Claro que era. Agora o Banco do Brasil resolveu colocar essa “obra de arte” dela (as aspas estavam bem claras na expressão da personagem) numa exposição!
Filha: Faz sentido, era uma exposição de arte erótica...
Mãe: Arte? Isso não é arte! E que bobagem, arte erótica, isso é coisa de gente deturpada. É só ver essa dos terços, essa mulher só queria chamar a atenção!
Filha: Não seja por isso, já tiraram a obra da exposição, pode ficar calma.
Mãe: Tiraram porque a gente se mobilizou! Você tem que ver o e-mail que eu mandei pra direção do Banco do Brasil! Todo mundo está cancelando suas contas no banco! Os católicos não podem permitir uma coisa assim! A gente só leva porrada, tem que responder também
Filha: Mas e a outra face...
Mãe: Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Não podemos permitir uma blasfêmia dessas! É uma pena que ela já morreu, senão a gente poderia tomar atitudes, você sabe, mais drásticas!
Filha: Que isso, mãe! Que violência!
Mãe: Ah, não dá mais pra ficar agüentando calada, não!
Filha: É, interessante. Parece que a artista conseguiu o que queria.
Mãe: Artista, coisa nenhuma! Artista era Michelangelo! Essa mulher é uma depravada!
Filha: Mas muito eficiente... a tal da obra atingiu em cheio o objetivo. Você que é uma estudiosa tão profunda da Bíblia, que lê todos aqueles comentadores, leu Agostinho, Cantalamesa, Caldwell, Tomás de Aquino e assim por diante, quando uma artista obscura do Terceiro Mundo faz um ataque frontal no chão de uma exposição de arte o melhor que você consegue fazer é fazer invectivas e defender a censura.
Mãe: Você queria que eu ficasse calada?
Filha: Acho que a maneira correta de marcar uma posição é através de argumentos sólidos. Senão vamos acabar que nem aqueles crentes que atacam terreiros de macumba. Se você acha que ela está errada, e você certa, prove. Só que ao reagir irracionalmente, você se uniu a esse grupo obscuro chamado “Opus Christi”, que ninguém sabe de onde veio, mas tem a TFP no DNA, e propagou o abafamento do debate. Qual foi o resultado? Eu nunca tinha ouvido falar dessa artista, mas agora onde quer que eu vou tem cartazes com “BB Censura” e um terço em forma de pinto.
Mãe: Um absurdo! Tinham que tirar esses cartazes.
Filha: Tarde demais, quem colocou o assunto na mesa foram vocês. Talvez conquistassem mais almas através da argumentação e da conquista, não do tacape.
Mãe: Pois é essa passividade dos católicos que faz com que os fiéis diminuam a cada dia.
Filha: Que passividade? A passividade da Inquisição? A passividade da Opus Dei? A passividade da TFP? A passividade de todos aqueles colégios religiosos cuja grande contribuição para a espiritualidade das pessoas eram, e continuam sendo, a palmatória e a pedofilia?
Mãe: Como você pode dizer uma coisa dessas? Não foi essa a educação que eu te dei! Eu te eduquei em Deus! Não sei o que você anda vendo aí pelo mundo, mas estou sinceramente chocada.
Filha: Eu também estou chocada.

Seção Versos subcutâneos: Rabisco

Pra não deixar passar em branco o fim de semana, vai aí mais uma pilha de versos a esmo.

Rabisco

Tenho ganas de rabiscar
e rabisco
Firo os olhos glaucos e as paredes brancas
rabisco
Tiro do meu peito o cancro que ferve e
Grito contra o outro o claro o podre
rabisco
Porque não tenho poder, mas posso
E possuo a força do rabisco
E garrancho e mancho e gasto
Quebro porque só sei quebrar
Só sei
Só posso
Só penso em quebrar
rabiscar
rabiscar

Construíram ergueram escreveram criaram
E não me cabe tijolo nem telha
Nem centelha
Nem semente
Rabisco a casa que me cria e a cidade que me queria
frio

Rabisco porque um rabisco é retalho e cada talho na minha face eu traço nas faces dos que me retaliaram
Retalho os caros crimes que me criaram e embalaram para que eu recomeçasse e perpetuasse essa causa
Só reajo
Só respondo
Só reclamo

Tenho algo a dizer
Bem alto
Mas calo:
Não tenho voz que dê vazão ao meu azo incandescente
Não tenho lógos não tenho luzes não tenho lastro
Tenho força
Tenho sexo
Tenho sangue
De raiva desejo rabisco
De ânsia eu acordo e arranco
De engasgar quero gasto e rasgo
e rabisco

2.6.06

Seção perguntas pertinentes: De que valem nossos planos?

Pra variar, fui tomado ontem à noite de uma daquelas insônias olímpicas, em que se vagueia por todo um apartamento pensando em todo tipo de bobagens. Mas até que o que martelou minha cabeça durante toda a madrugada não é tanta besteira assim.

Pensei o seguinte: Até segunda ordem, a vida é um acaso. Mesmo que você acredite que tem uma missão na Terra, ou uma "causa final", ou coisas assim: se você não for claramente capaz de apontar qual é essa sua missão/causa final, é como se não a tivesse, porque só vai saber qual era depois que morrer (se tanto). Portanto, vale que a vida é um livro em branco, absolutamente indeterminado, aberto a todas as possibilidades de escrita com a caneta que todo mundo tem nas mãos a nascer.

Pra quem gosta de ler filosofia, sim, isso tem um matiz fortemente existencialista: a existência precede a essência, blá blá blá. Mas, em linguagem de gente, o que fica é isso: Você existe e ponto final, independentemente daquilo em que acredite. Não somos capazes de determinar o que é a vida, onde ela começa, onde ela termina e assim por diante. Não sabemos se o pensamento determina o mundo ou se ele é apenas uma função química presente nos neurônios.

Vale considerar que a vida é, como dissemos, um acaso. Se cada um escreve no seu livro o que quer, por que seria mais correto escrever para si mesmo "O Grande Gatsby", vamos supor, do que "Xoank034 kojd0p", por exemplo? Porque um romance bem escrito é melhor do que uma série de letras e números à toa? Pode ser. Mas então, o que é melhor: escrever na própria vida "O Grande Gatsby" ou "Os Lusíadas"? Boa pergunta. Cabe a você decidir se tem espírito de contrabandista milionário presa do amor ou de viajante, explorador de novos mares.

Idéia interessante. Porque mesmo quando tomamos essas decisões, às vezes acontece de querermos escrever "O Grande Gatsby" e acabarmos escrevendo "O Processo". É capaz de querermos escrever "Os Lusíadas" e terminarmos com "Moby Dick" ou "Linha de Sombra". Isso porque há terceiros escrevendo nossas vidas junto conosco, às vezes a nosso favor, às vezes contra nós.

Mas o fato é que nós temos que agarrar a pena com força para garantirmos que as linhas principais serão fruto de nosso próprio punho. Talvez seja esse o desafio da vida: escapar às facticidades com que nos deparamos ao nascer. Rebelar-nos contra toda uma carga de determinações que parecem mais fortes do que nós.

Parecem, mas não é necessário que sejam. De fato, desde a alvorada da Humanidade, todos os indivíduos, grupos e sociedades tiveram que criar mecanismos aos quais eles mesmos se submeteriam, e aos quais submeteriam seus descendentes. Mais que isso, em todas as esferas humanas, seja a individual, a familiar, a social, tentou-se impor os mecanismos de um membro sobre os demais. Fonte de guerras, disputas, assassinatos.

Esses mecanismos são todos artificiais, ainda que funcionem perfeitamente. São formulações que cristalizam o Universo caótico à nossa volta (não é à toa que Chaos é a origem de todos os deuses) e nos ajudam a conduzir nossa existência, ao mesmo tempo enquanto indivíduos e enquanto grupos.

Nesse campo se inscrevem as leis, os deuses, as ambições, tudo. O homem, que a princípio se sentiria um ser flutuando no espaço, sem cordão umbilical que o una a nada, se inscreve em entidades que lhe dão sentido: a família, um time de futebol, um povo, uma empresa, o que for. Todas elas criam uma ordem que a princípio não existia, mas é fundamental para criar um campo no qual nosso ser, tanto individualmente quanto em grupo, possa se deslocar e ter uma noção suficiente de idéias como “de onde venho” e para onde vou”.

Mas, tornamos a dizer, o fato é que todos esses lastros, esses mecanismos, são criações artificiais cujo sentido é dado pela necessidade que têm de existir para aqueles a quem se dirigem. A razão de ser, portanto, desmorona no instante mesmo em que é questionada. Não porque percam validade, mas porque sua validade deixa de ter um lastro verdadeiramente imperativo. Ao questionar a profundidade essencial de cada uma de nossas crenças, nossas paixões, nossos vínculos e mesmo nossas ambições, corremos o sério risco de nos vermos novamente naquela situação de um ser flutuando num espaço caótico, sem ligação com coisa nenhuma.

Mas isso não é necessariamente um desastre. Alguém poderia ser levado ao suicídio quando se desse conta desse abandono ontológico, tudo bem. Mas o fato é que, com o devido distanciamento, podemos entender que isso nos abre uma infinidade de possibilidades quando somos verdadeiramente capazes de estabelecer os limites desses nossos mecanismos e instituições.

Vou ilustrar o pensamento com um exemplo: freqüentemente, consideramos determinadas atitudes das pessoas “pouco ponderadas”, ou melhor, “verdadeiras loucuras”. Em que nos baseamos para emitir esses juízos tão categóricos? Ora, naquilo que temos determinado em nossas cabeças que é uma atitude sensata ou, estendendo para toda a existência de um indivíduo, um projeto adequado de vida.

É com essa base que consideramos louco uma pessoa que se enfurna na selva para estudar os hábitos de um determinado grupo de primatas, ao passo que são sensatos todos aqueles que acordam de manhã para fazer parte da enorme procissão dos escritórios, em busca de um sonho nebuloso de riqueza, uma panacéia de conforto futuro. Esse segundo indivíduo se casará, terá filhos, fará tudo sensatamente; porém: quem garante que a riqueza virá? Vindo, quem garante que será satisfatória? Quem garante qualquer coisa em relação a esse modelo de vida? E quanto ao outro? Quem garante que ele não voltará à sua cidade apenas para perceber que preferia ficar no mato? Quem garante qualquer coisa? Quem garante que não cairá um meteoro na Terra e ambos morrerão junto com todos nós, e nada disse fez nenhuma diferença na conjunção infinita dos astros?

Nada, a não ser os nossos mecanismos quiméricos que têm a terrível capacidade de, sem serem chamados, determinarem todo o andamento de nossas vidas. A verdade é que não existem loucuras por si só. Quem for capaz de domar seus próprios preconceitos (no sentido que usamos aqui no texto, nada a ver com discriminação de cor e quetais) poderá expandir todo o seu horizonte. Poderá fazer, a rigor, qualquer coisa. Isso nada tem a ver com hedonismo ou desmoralização. Não é porque você não tem amarras formais que você se sentirá no direito de praticar ações criminosas ou que prejudiquem terceiros. Isso é outra seara, o campo da Ética. É com Kant e companhia, não comigo.

O que quero dizer aqui é que todas essas nossas ambições e projeções para o futuro não necessariamente estão corretas, pelo simples fato de fazerem sentido segundo configurações históricas e sociais dadas. Tudo pode ser mudado: o mundo, o país, a vida de uma pessoa. É perfeitamente possível abandonar as preocupações com carreira, filhos que virão, casamentos a se realizar, tudo isso, em função de uma viagem sem lenço nem documento ao redor do mundo. É perfeitamente possível que a carreira e o casamento naufraguem, os filhos não venham. E é perfeitamente possível que a viagem ao redor do mundo resulte em convites de emprego, livros publicados, sei lá, fama, dinheiro, o que for. Tudo é possível. Nada garante que as coisas trilharão qualquer caminho que já tenham trilhado. A capacidade que “as coisas” têm de mudar de rumo é simplesmente fantástica.

Não adianta querer se prender ao que quer que seja.

Quanto à minha insônia, ela foi longe. Só consegui pegar no sono quando já era quase hora de acordar. Passei o dia inteiro pescando no trabalho. Mas até que valeu a pena.

1.6.06

Seção diálogos: Da importância de conduzir o pensamento alheio

Uma praia escaldante, dia ensolarado, o mar verde rugindo um pouco adiante. Crianças correm pra lá e pra cá com suas risadas características, fazem castelos de areia e pedem picolé para as mães. Casais sarados se exibem jogando frescobol, e se ninguém olha, acertam a bolinha na cabeça de alguma senhora que tenta manter a forma passeando a beira-mar. Duas pessoas vão juntas à praia, sem guarda-sol, sem toalha, sem nada. De preferência, uma delas deve ser mais robusta que a outra. A que não é robusta se deita para ler um livro, a outra fica de pé olhando as ilhas à distância. Após um tempo indeterminável:

Pessoa deitada: Ô fulano(a)!
Pessoa em pé (toma um susto): Hm?
Pessoa deitada: Não quer ficar ali na frente? Preciso de sombra.
Pessoa em pé: Tá pensando que eu sou seu(sua) escravo(a)?! Que negócio é esse de ficar dando ordens?!
Pessoa deitada: Puxa, desculpa, eu só pensei que você vai ficar parada aí... podia ficar um pouco mais pra lá...
Pessoa em pé: Mas você é muito folgado(a) mesmo, hein!

Cena 2: Tudo exatamente igual. Só o diálogo é diferente:

PD: Fulaninho(a)?
PP: Sim?
PD: O que você está fazendo?
PP: Nada.
PD: Nada?
PP: Estou olhando o mar... as ilhas... contemplando tudo isso... é bonito... e pensando na vida...
PD: Você pretende fazer isso por muito tempo?
PP: Pode ser, não sei.
PD: E faz diferença exatamente onde você está parado(a)?
PP: Não, na verdade, não.
PD: Você se importaria de ficar parado exatamente como você está, fazendo exatamente o que você está fazendo, só que em vez de aí onde você está, um pouco mais pra cá?
PP: Ah, eu estou te atrapalhando?
PD: Não, imagina. É só que eu queria um pouco de sombra.
PP: Ah, claro, como não?

Esse é um exemplo clássico, ligeiramente modificado por mim, de como a maneira como você faz e diz as coisas é fundamental para atingir seus objetivos. Vamos analisar um caso mais concreto.

Geraldo Alckmin, candidato a presidente pelo PSDB, declarou ontem que o governo Lula foi um "período das trevas". Período das trevas?! A quem ele espera atingir com essa expressão? Aliás, o que ele espera atingir com ela? Quantos votos ele espera ganhar?

Essa é provavelmente a crítica mais inócua que já se fez a um governo. Isso se não for contraproducente. Embora o governo Lula seja marcado por corrupção, um desempenho econômico aquém do esperado, stalinismo mal disfarçado, gafes presidenciais e assim por diante, quantas pessoas no Brasil têm a impressão de que foi um "período das trevas"? E que trevas são essas? Trevas demoníacas? Menos, governador. Trevas medievais? Que-isso, governador!

Com esse tipo de declaração, espero que o picolé de xuxu light não esteja pensando em realmente GANHAR uma eleição...

Ah, lembrei: talvez ele quisesse fazer um paralelo com a idéia que o PT vive propalando, de "herança maldita" do governo FHC. OK, discordamos que haja uma herança maldita. Mesmo assim, somos forçados a admitir que EXISTIA uma percepção dessa tal herança. Por mais ficcional que ela fosse, estava na cabeça do brasileiro de maneira generalizada e é como se existisse de fato. O efeito era fortíssimo e fazia sentido para muita gente no país. Ao contrário de "período das trevas", que só faz sentido pra quem joga RPG ou lê "Senhor dos Anéis".

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