Crédito da foto: Yo mismo.
Anos atrás, tive um professor que, como díziamos, engoliu um megafone. Já não lembro mais como se chamava, o profeta do Apocalipse. Só lembro que ele usava sempre uma camisa xadrez. Em aula, com a ajuda de instrumentos estatísticos infalíveis, elencava em tom catastrófico um sem-número de dados sobre a "africanização" do Brasil, como dizia. Vai fazer década que fui seu aluno, e me lembro com um certo desconforto de suas menções ao empobrecimento da classe média, à migração de empresas, ao aumento da criminalidade e à queda da qualidade de ensino. Hoje intermitente, meu otimismo era àquele tempo inabalável. Para mim, o alarme era apenas espetáculo.
Esse professor me veio à lembrança durante um almoço com gente do mundo todo, particularmente brasileiros e, claro, franceses. Eu conversava com um jornalista local, desempregado como a maioria, e como a maioria dos nossos, também. Perguntou-me como vim parar na França, este país decadente, idiota (as palavras são dele) e violento. Expliquei-lhe que foi mais o acaso do que qualquer outra coisa, mas acrescentei que, se o assunto é violência e decadência, sou escolado.
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Contei-lhe das últimas barbaridades em nossas terras. Falei dos tiroteios, das crueldades, das bombas, das prisões abarrotadas. Falei de tudo que veio à minha cabeça, e não disse nem metade. Como todo brasileiro, minha memória é curta, e chegou um momento em que me faltaram exemplos para ilustrar meu "a coisa está terrível".
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O francês não teve o mesmo problema. Mencionou uma vizinha sua que foi assaltada por três homens, um deles armado, teve a bolsa roubada e levou um soco. Uma gangue de adolescentes que atacava usuários dos trens de subúrbio e finalmente foi presa. Um agressor apreendido no metrô. Vândalos inalcançáveis, que pareciam feitos de ar. E outros casos que nem entrariam em nossas estatísticas.
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Finalmente, fazendo uso das técnicas oratórias que todo francês aprende em casa, ele arrematou, levando as mãos à cabeça: "A França está em plena terceiro-mundialização". Em outras palavras, se nós tememos o risco de virar África, o maior medo dos europeus é, bem, virar nós.
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Confesso que me senti um pouco ofendido. O Terceiro Mundo, afinal, não é esse fim de mundo todo (perdoe o trocadilho, foi irresistível), como o ar assustado do meu interlocutor levia a crer. Por outro lado, talvez a África tampouco seja assim tão má. O pouco que conheço desse enorme continente (a Cidade do Cabo e uns cantos do extremo sul) me leva a crer que eles têm muito potencial, isto é, se forem capazes de combater as divisões que herdaram da colonização européia.
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O gringo estava transtornado com o que considerava crimes inaceitáveis. E no Brasil, o que seriam esses crimes? Não entrariam nem como nota de calhau. A conversa, que começou na violência, enveredou por sendas mais espinhosas. Corrupção na política, decadência econômica, índices educacionais desoladores. O francês demonstrava, a cada vez, uma vergonha mordida de seu país.
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Os jovens franceses, bradou, terminam seu período de estudos obrigatórios, aos 16 anos, cometendo erros inaceitáveis de ortografia (um problema, de fato, para os franceses, e não à toa). As contas do governo estão começando a apresentar desequilíbrios preocupantes. Um candidato à presidência parece ter driblado o imposto sobre grandes fortunas. Um outro chamou de escória os jovens das periferias. Tudo isso é inaceitável. São sinais claros de que o Terceiro Mundo se avizinha. Adeus, velho berço da cultura ocidental!
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Nesse ponto, minha ofensa se dissipou. Melhor dizendo, transmutou-se em inveja. Quem me dera poder arrancar os cabelos com erros de ortografia dos nossos adolescentes. Tentei lhe explicar que jovens brasileiros diplomados no ensino médio são às vezes incapazes de interpretar uma frase simples. Exagero, decretou. Puro sensacionalismo. Impossível.
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Desisti de abordar nossos escândalos de corrupção quando ele disse que isso existe em todo lugar. E como explicar o fato de que o país pode ter inflação baixa e juros altos simultaneamente? O nível de endividamento do Estado brasileiro é qualquer coisa de inconcebível para essas pessoas.
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Ao final, eu já passava por mentiroso. O que me salvou foi a concordância dos demais brasileiros, com a diferença de que alguns acrescentavam um impropério contra Lula. Cuidado! Não fale mal do nosso presidente diante de um francês: afinal, apenas um reacionário poderia criticar o, como consta no Le Monde, líder operário que se tornou chefe de uma nação com quase duzentos milhões de almas.
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Só me restou tentar acalmá-lo com relação ao seu continente tão querido. De fato, nunca mais a Europa mandaria no mundo. Até não seria tão mau: os séculos de dominação européia foram um tanto quanto sangrentos. Ainda assim, por mais que as indústrias se desloquem para a Índia e os filmes americanos dominem as salas de cinema (talvez a questão mais alarmante de todas), a riqueza do continente está garantida, na medida do possível.
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Nós, brasileiros, falamos em africanização, mas toleramos toda espécie de bagunça institucional; reclamamos da vida caótica que se leva nas cidades, mas contribuímos para ela; tememos a violência, mas a alimentamos; condenamos a corrupção, mas a praticamos quotidianamente. Nossas mobilizações, nossas comoções nacionais, dissipam-se com a velocidade do pensamento, substituídas por preocupações menos exigentes. Não queremos alterar em nada a nossa forma autofágica de viver. Seguimos à perfeição, em velocidade de cruzeiro, a rota para o desastre.
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Os europeus, essa gente ultrapassada, fria, desagradável, freqüentemente malcheirosa, violenta, pedante e por aí vai, quando dão com um policial que procrastina em serviço, só falta derrubarem a delegacia. Perante as dificuldades de integração na Zona do Euro, chiam, reclamam, brigam entre si. Mas vão atrás da solução. Os franceses, por exemplo, sentem que são muito menos eficientes, na hora de descascar abacaxis, do que seus vizinhos alemães. Invejam-nos por isso. Sentem que estão ficando para trás.
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Nós não nos importamos em ficar para trás. O fato de que, há anos, nossa economia só cresce mais do que a do Haiti (em guerra civil), ora, já virou piada. Recebo diariamente, por "feed", as notícias dos principais jornais brasileiros. Em tempo real. Mais de metade, juro, fala de futebol: as agruras dos jogadores que tentam renovar contratos, as indecisões dos técnicos. A impressão que fica é de que, no Brasil, nada acontece que mereça mais destaque do que a contusão do goleiro do América.
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Até que, um dia, algum grande crime choca, momentaneamente, o país. A sociedade inteira se comove. Pede-se a redução da maioridade penal. O governador do Estado em que o crime aconteceu, normalmente Rio ou São Paulo, aproveita para exigir medidas da União. Dali a pouco, como por milagre, o grande problema volta a ser a escalação do Madureira. Ou alguma novela.
Nada disso é concebível para a mente do meu interlocutor. Mesmo com a ajuda dos conterrâneos, não consigo dar a entender o abismo que separa essas duas concepções nacionais. Ele continua desolado, ele e seus compatriotas.
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Donde fica a pergunta: o que está mais próximo, a "terceiro-mundialização" da Europa ou a "africanização" do Brasil?