30.3.07

Um caderninho sagrado

Uma das melhores coisas dessa maçaroca de blogs chamada internet é a possibilidade de descobrir que não se está sozinho no mundo. Foi com muito atraso que conheci esse universo fantástico, mas em meus passeios já encontrei coisas formidáveis. Uma delas, que me deixou particularmente contente, foi neste blog aqui. Se não estiver errado o endereço que copiei, trata-se de um artigo em louvor ao Moleskine, um caderninho de capa dura, mais ou menos do tamanho de uma agenda telefônica. Ora, direis, um caderninho! O que tem de formidável?

Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que dizem. Em verdade, vos digo que esse objeto é extraordinário, ainda que discreto. Resolveu um dos maiores impasses de minha vida plena de encruzilhadas Várias vezes tentei estabelecer o hábito de andar com um bloco de notas, para anotar idéias, aforismos, observações e números de telefone. Nunca deu certo. Ou era grande demais, ou pouco prático, ou as páginas rasgavam, ou a capa se esfacelava em poucas semanas. Ainda mantenho a maioria, guardada em algum canto. Não há um sequer em que a escrita passe da décima página.

Esses sucessivos fracassos me incomodavam. Pessoas distraídas e errabundas (palavrinha adorável, não?) como eu certamente conhecem o traço mais característico das idéias: elas só dão o ar de sua graça quando estamos distantes de qualquer caneta, computador ou muro caiado. Em suma, quando não podemos registrá-las e corremos o risco de perdê-las para sempre. Da mesma maneira, sabemos que elas se vão logo que chegamos, finalmente, diante de um caderno ou notebook, para anotá-las. Desaparecem, simplesmente, como as sílfides da Arcádia. Portanto, possuir um caderno para anotações pode levar a dois resultados quase opostos: ou as idéias nunca mais nos atacam, ou nós ganhamos uma arma para dominá-las.

Andava desanimado, sem esperanças de laçar pensamentos soltos, quando encontrei "o mestre". Em minha memória vaga, tratava-se de um senhor de barbas brancas, compridas, um rosto enrugado, voz grave e cajado na mão. Mas a realidade insiste em colocá-lo na pele de um colega de faculdade, jogador de rugby e poeta de ocasião. Estávamos no metrô, sempre o metrô, o meio de transporte mais fabuloso do planeta. Conversávamos sobre sei lá o quê, quando alguma frase minha acendeu algo em sua cabeça e ele puxou um caderno. Sim, acertaram: era um moleskine.

Meu amigo, vendo minha surpresa, derramou uma enorme elegia daquele volume. Perguntou-me como eu ousava querer escrever sem possuir um daqueles. Qualquer artista digno do nome carregava sempre o seu. Hemingway, Picasso, Dostoievski. Quando ele disse Platão, objetei imediatamente. Nunca houve moleskines de pedra. Rindo, concordou. Era brincadeira. De qualquer forma, desde que houve moleskines no mundo, é item obrigatório de qualquer rascunhador. É um caderninho sagrado, sentenciou. Dito isso, o mestre se desfez no ar da estação.

Meu primeiro exemplar foi presente paterno. Preto, oitenta folhas grossas. Feito originalmente para desenho, mas perfeito para quem vira as folhas com luvas grossas, sob temperaturas negativas. Eu mesmo jamais o teria comprado. É caro, exatamente como dizem. Mas vale o investimento. Esse de oitenta páginas já está nas últimas. Antes de me ver obrigado a escrever na contracapa, já comprei o próximo. Resolvi testar um de folhas mais finas, 240, para ver como funciona. Não-pautados, naturalmente. É impossível escrever em linhas retas dentro de um trem.

Muitos textos deste blog tiveram lá seu começo, e sua conclusão no computador. Trabalhos para a faculdade, contos, poemas, lembretes, reflexões. A parte mais divertida fica por conta da descrição de gente sentada à frente. Reli recentemente algumas entradas mais antigas. Antigas é jeito de falar; as primeiras letras datam de janeiro. Há um sem-número de tolices, mas, por outro lado, também muita coisa interessante, aproveitável. Pouco a pouco, pretendo transcrevê-las.

E pensar que a humanidade passou dez anos sem esse fenômeno! A última fábrica, em Tours, França, fechou em 1986. A fabricação só foi retomada em 1996, na Itália. Desde então, o caderno tradicional, com sua capa dura (é de algodão, mas parece couro), com o elástico que o prende fechado, ganhou uma infinidade de versões. Típico do capitalismo contemporâneo: folha branca, colorida, pautada para músicos, com mapa da cidade, agenda de telefone, agenda do ano, motivos florais, de super-heróis infantis... Estou exagerando, mas não duvido nada de que venha a acontecer.

Fiquei contente ao descobrir que minha paixão não é exclusiva. Vivam os blogs! Andei pesquisando, e descobri que o Neil Gaiman, de The Sandman, também andou fazendo suas loas. Pesquisei ainda mais um pouco, e encontrei dezenas de outros apaixonados por esse objeto de ar tão insignificante. É chato descobrir que tanta gente se antecipou a mim, mas não faz mal. Não tenho pretensões de dar um furo. Só digam à fábrica que, se quiserem me pagar para fazer mais elogios, aceitarei na hora, sem tentar valorizar o passe. E parte do pagamento pode vir em produtos, não tem problema.

28.3.07

O duro ofício de salvar angiospermas


No meu último texto, aquele mal-humorado, mencionei umas certas flores que estavam à beira da morte. Enganadas pelas altas temperaturas do início do mês, ousaram nascer em março e quase pagaram com a vida quando viraram os ventos da Fortuna, isto é, do Atlântico.

Hoje, essas flores são o centro das minhas atenções. De maneira geral, não tenho mais do que reclamar. Foram-se embora, oxalá para sempre, o frio e o granizo. Atrelados a eles, as Eríneas da depressão e da agressividade. O céu de um azul monótono e ofuscante que inaugurou a segunda-feira devolveu o ar aos meus pulmões e as pessoas às ruas. Abro a janela diante de minha mesa e me ponho a trabalhar, estudar e escrever, enquanto acompanho o fluxo bucólico da vida alheia. Se fico cansado, enfio no bolso a já célebre câmera furreca e me despacho para a cidade. Registro pequenas cenas, as folhas nascendo nos galhos, os canteiros se enchendo de cor.

Há, porém, esse pequeno contraponto à minha alegria. As flores. Passaram, as coitadas, duas semanas trancafiadas no apartamento. Sufocante já para mim, imagine para elas. Cheguei ontem em casa, alegre com as paisagens exteriores. Ao dar com as flores, fui tomado de comiseração. Espero viver muitas décadas ainda, mas elas são filhas da primavera. Guardam-se em forma de esporos e sementes durante os meses de inverno, nutrindo apenas a esperança de um Abril que tarda a chegar. Que espécie de monstro serei eu, se as deixar perecer justamente no auge de sua glória potencial?

Confesso que nunca tive grande intimidade com vegetais domésticos. Primeiro, porque vivia em São Paulo. Mesmo assim, meu apartamento de infância vivia cheio de bromélias e azaléias, sob os cuidados apaixonados de minha mãe. Não posso dizer que herdei essa habilidade. Morando sozinho, a única planta que possuí foi uma miniatura de samambaia. Mas sua vida foi mais curta do que se poderia esperar, porque o único espaço disponível ao ar livre era uma mirrada varanda que dava para o Minhocão. Aquele mesmo, o terrível. Acreditem, todas as lendas sobre o monóxido de carbono são verdadeiras. Pelo menos para o organismo das plantas.

Já em Paris, fui diversas vezes intimado a comprar pequenos vasos de flores para enfeitar o lar. É evidente que, em dezembro, no escuro, no frio, a idéia serviu apenas para fornecer um quadro dramático da finitude da vida. E para jogar dinheiro fora, naturalmente. Decidimos, portanto, que só valeria a pena investir novamente quando chegasse a época de deixar os pequenos seres expostos à janela. Aliás, os canteiros floridos estão em quase todos os parapeitos da cidade; Em mais umas semanas, estarão lindos. Espero poder fotografá-los, para publicar neste humilde espaço (que às vezes é para olhar sem ler, também).

O engodo da primavera precoce nos levou ao erro, à desmesura trágica, de antecipar a compra das flores. Receberíamos em casa alguns amigos, era fundamental que o lar estivesse à altura. Fui à loja e escolhi dois pequenos vasos, um de hortênsias, o outro de maria-sem-vergonha. São essas que, nos últimos dias, estiveram cabisbaixas, moribundas, implorando meu auxílio.

Não me fiz de rogado. Penso nessas flores o dia todo. Coloquei-as do lado de fora e as reguei. Depois de algumas horas, vi que o sol já as abandonava; empurrei-as para o último canto iluminado. Arranquei as folhas secas. Lembrei-me do hábito que têm os bons jardineiros de conversar com suas plantas. Longe de ser uma mania, é uma prática que defendem com veemência, ensinam e exigem de seus seguidores. Resolvi colocá-la em prática. Digo às flores que estou torcendo por elas. Que confio em sua capacidade de recuperação. Se necessário, não hesitarei em me inspirar nos manuais de auto-ajuda: "Vocês conseguem! Vocês são vencedoras!"


Minha mulher apoiou a iniciativa, mas manifestou uma preocupação tipicamente brasileira. Perguntou se não havia risco de roubarem nossas plantinhas. Haver, há. Mas quem vai querer se apropriar de flores à beira da morte? De qualquer forma, o momento é de desespero. Não há alternativa. Só o sol salvará, só o sol salvará. É necessário deixá-las expostas. A todo custo.

À noite, recolho-as, porque as madrugadas ainda são frias. E dou-lhes mais alguns goles de água, acompanhadas de palavras doces e confortadoras. De manhã, acordo ao primeiro raiar do sol, abro novamente as janelas, exponho minhas pacientes e, contente de ter cumprido um dever, volto à cama, para mais duas ou três horas de sono.

Se terei sucesso, não sei. Mas os prognósticos são bons. Por baixo das pétalas esmaecidas, posso observar que já brotam novos botões. Ainda tímidos, é verdade. Principalmente na maria-sem-vergonha. As hortênsias ainda inspiram cuidados. Mas meu esforço já teve alguma recompensa. As folhas, também constatei, estão mais verdes e erguidas. Esses indicadores me enchem de esperança. Será que também devo comprar terra?

Sei que ainda há muito trabalho pela frente. Angiospermas são um grupo de pacientes muito delicado. Qualquer erro pode ser fatal, é necessário agir com muita prudência. Água em excesso pode matar. Em falta, mais ainda. Sol forte queima. Olho nos termômetros, porque qualquer nova variação de temperatura selará a morte desses seres coloridos, a quem me afeiçoei sem querer. Seria um golpe muito duro.

25.3.07

A face oculta da primavera

Foto: Eu.
(Primeiro relatório: por enquanto, tudo bem. Ainda não sumi deste espaço, nem quebrei nenhum membro. Não fui à bancarrota, pelo menos em definitivo, nem fui deportado. Logo, a maldição do gato preto não teve efeito sobre mim. Até agora, claro. Menos mal. Eu, um; forças ocultas, zero.)

Muito pelo contrário. Parece que meu problema é com o perfeitamente visível. O céu, quero dizer. Tenho uma preferência bastante acentuada por vê-lo azul. Redundante? Sem dúvida, mas é a pura verdade. E às vezes a verdade é, mesmo, um pouco óbvia. Sou movido a tempo bom, ou melhor, a calor. Na verdade, sou um exemplo de pessoa ecológica: meu combustível é o sol.

Nas últimas semanas, comportei-me como aqueles suecos e americanos que desembarcam pela primeira vez em Copacabana e descobrem a luz, o mar, a areia fina e os biquínis cavados. Como eles, fiquei louco. Saía, estonteado, pelas ruas, apontando minha câmera (aquela, a furreca) em todas as direções, alegre, sentindo o cheiro das flores e espirrando com o pólen. A diferença para os gringos de Copa é que eles usam camisetas floridas e apanham insolação, algo que certamente não me acontecerá, pelo menos até julho. No mais, estive no mesmo espírito pueril. "Vivam as mulatas", dizem eles. "Viva a primavera", digo eu.

Mas este não será um post alegre, lamento constatar. A primavera, a verdadeira, por quem tanto eu esperava e que ousei anunciar antecipadamente, finalmente chegou. Com ela, veio a neve. Neve? Não aqui, claro. Em Paris, não tem dessas coisas. Mas em todo o entorno, sim. Muita. A França primaveril está em alerta de nevascas e avalanches. Caminhões tombam nas estradas. Desabrigados encontram a morte. O tempo ameno, anunciam os ventos, terminou de vez. Hoje é o primeiro dia do horário de verão, mas só percebi a mudança porque cheguei atrasado a um ensaio.

Pegos de surpresa (pelo frio, não pelo horário), os cidadãos desta capital se puseram a cair doentes a um só tempo, como numa versão reduzida da gripe espanhola. Meu Deus, como estou sendo dramático! Mas isso é inevitável sob o jugo do General Inverno, esse grande discípulo de Sun Tzu que tem no currículo vitórias esmagadoras sobre Napoleão e Hitler. Fui vencido, deixei-me cair na armadilha. O inimigo se escondeu da minha vista. Crédulo, deixei de lado os casacos e cachecóis. Pois logo que me viu desguarnecido, saltou sobre mim o ardiloso guerreiro, e me derrubou.

Estou aniquilado, mas tenho o consolo de não ser o único. O efeito do clima sobre as pessoas é digno de um estudo antropológico. Já naturalmente truculentos, os vizinhos aqui da cidade estão arrumando briga até com hidrante. Recomendo não perguntar nada na rua, mesmo a alguém usando um colete com a inscrição "Informações". A resposta será invariavelmente um grunhido, com o sentido de "Que é? Não vê que o tempo está feio?". Os cariocas gostam de dizer que sua cidade é triste quando o tempo está ruim, porque as belezas se escondem. Para entender a melancolia desta semana em Paris, multiplique o baixo-astral carioca por mil.

O clima é de depressão generalizada. Os piqueniques sobre a grama, típicos desta época, foram substituídos por longos finais de semana debaixo da colcha. As bicicletas desapareceram. Mesmo os adolescentes que, duas semanas atrás, gritavam diante de minha janela e não me permitiam dormir, onde estão? Puf, sumiram. Por falar em janelas, as flores que comprei para enfeitá-las não resistiram à queda da temperatura. Estão esquálidas. Melhor elas do que eu, mas não sei se agüento mais uma semana de estalactites nas pálpebras.

Meu moleskine, que carrego sempre no bolso interno do casaco, há tempos não vê o dia. Eu poderia dizer que também ele quer se proteger dos ventos árticos. Mas seria uma metáfora idiota. A verdade é que tenho sempre as mãos nos bolsos, para reforçar as luvas acolchoadas. Não as tiro de lá por nada. Bom, se o segredo da existência se revelar de repente...

Mas isso não vai acontecer. Certamente não debaixo do frio, que paralisa toda minha vida. Congela-a, em suma. Meus planos de conhecer as florestas próximas foram adiados. Meus estudos seguem em ritmo lento. A louça se acumula. O blog silencia. Estou convencido de que não conseguirei boas notas, o trabalho não virá, o dinheiro acabará. Quando o tempo está ruim, tudo aponta para baixo. Por exemplo, não duvido nada de que a eletricidade, e com ela a internet, seja cortada antes que eu termine este texto.

23.3.07

É mais forte do que eu


Dando seguimento a uma longa tradição estudantil, eu costumava passar minhas tardes de bobeira, com amigos, no gramado da minha saudosa faculdade. Certo dia, havia uma escada de alumínio apoiada contra a parede, para que um funcionário, aliás bastante vagaroso, se dedicasse à prosaica epopéia de trocar uma lâmpada. Tenho quase certeza de que nenhum dos amigos que me faziam companhia se lembra desse episódio, mas, para mim, ele está fresco na memória.

Éramos, em resumo, um bando de desocupados, que vinha de encher a pança no bandejão. Ficamos a observar a reação das pessoas obrigadas a atravessar o terrível obstáculo pela passagem estreita que deixava. E constatamos algo que parece incrível: existe uma correlação entre a postura ideológica de um indivíduo e sua tendência à superstição. Explico, para quem não sabe: reza a lenda, sabe Deus de qual origem, que é de extremo mau agouro passar debaixo de uma escada. Um supersticioso preferirá mudar de calçada a submeter-se a um risco tão medonho.

Estupenda, a análise estatística que levamos a cabo naquela tarde! Sim, claro: muito mambembe. Mas seus resultados nos pareceram incontestáveis. Senão, vejamos. Um alto quadro de certo partido político supostamente de esquerda e hoje no poder, homem conhecido e bigodudo, saía de uma palestra que viera dar em nossa escola. Ao se deparar com a famigerada escada, alterou radicalmente sua trajetória, contorceu-se todo, evitou o risco do azar e se afastou em passo apertado. Um outro, professor da casa, reconhecido por sua defesa enfática dos ideais rigidamente reacionários, nem tomou conhecimento daquele corpo estranho. O caminho que se lhe oferecia, atravessou como um tanque de guerra, espumando de raiva contra o Estado.

Finalmente, a prova definitiva. Mais um professor, este conhecido por sua participação em governo recente (um que teve dois mandatos, mas já terminou), também dono de um belo bigode e um enorme bico amarelo, interrompeu sua marcha diante da escada e ficou a considerar suas múltiplas escolhas. Indeciso diante de uma cesta de bens indiferentes, acabou por preferir a prudência. Com toda a cautela do mundo, contornou o enorme amuleto de azar.

Mais uma meia-dúzia de exemplos nos levaram a desenvolver a teoria. Os de esquerda, ou que assim se dizem, têm maior inclinação a acreditar em forças ocultas. Os de direita só acreditam na força, nada oculta, do capital. Já os membros desse partido, teoricamente centrista, que esteve no poder, mas não está mais, querem entrar no Reino dos Céus. Mas não sem antes fazer um pé de meia e conhecer a Europa. É uma teoria idiota, eu sei, mas não me censurem antes de fazer um teste. Coloquem uma escada diante de algumas cobaias e vejam o que acontece.

Não me considero supersticioso, mas tampouco sou materialista. No futebol, claro, pratico algumas mandingas; não quero ver um título jogado fora por culpa minha (na verdade, os títulos têm sido perdidos por outros motivos). Se não me meto debaixo de escadas abertas, nas calçadas deste mundo, isso não se explica por alguma crença em conjunturas cósmicas. É, ao contrário, uma analogia perfeitamente racional. Escadas abertas se fazem acompanhar, sem exceção, de objetos como pincéis, vasos de flores, avisos luminosos, martelos e quetais. Todos eles, graves que são, tendem para o centro do planeta, e meu crânio pode estar no meio dessa trajetória. Portanto, opto pela prudência, como o professor que mencionei, e faço um caminho maior. Questão de segurança, não de fé.

Mesmo sendo imune ao vício da superstição, tampouco posso me entregar de braços abertos ao ceticismo. Sou brasileiro, não sou? Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, como diz o ditado. Eis que hoje, portanto, me vejo confrontado mais uma vez com a questão da crendice, não mais na relva, de barriga para o ar, mas em minha própria carne. Voltando para casa, cansado, esfomeado, sou surpreendido por um corpo negro que cruza meu caminho, um palmo adiante dos meus pés. Não demorou mais de um segundo para eu identificar aquele tufo de pelos. Um gato, sem sombra de dúvida. Um gato preto.

Agora, queiram observar as circunstâncias. O bicho estava, silenciosa e pacificamente, deitado entre as rodas de um carro estacionado. Durante minutos, na rua quase não passou alma. Ele estava livre para atravessá-la quando bem entendesse, com toda a calma do mundo, sem ser molestado. Mas... não. Ele preferiu esperar até que eu despontasse na esquina. Preparou o impulso das patas, acompanhou minha aproximação e, quando eu estava no ponto certo, disparou. Como uma seta, em um instante estava do outro lado, debaixo das rodas de um outro carro, não mais, nem menos confortável ou seguro do que o anterior.

É claro que isso pode não significar nada. O pequeno felino pode ser extraordinariamente inteligente, dotado de um senso de humor refinado e cruel. Talvez ele venha acompanhando, há dias, cada passo meu. Talvez tenha me escolhido ao acaso, para pregar uma peça em alguém. Finalmente, talvez eu esteja me iludindo, e tudo seja uma obra do destino para me indicar a chegada de algum grande infortúnio. Como saber?

Segundo a tradição das grandes crendices históricas, o modo correto de agir numa hora dessas é perseguir o tal do gato até conseguir retribuir o gesto e cruzar o caminho dele. Há uma tira do Pato Donald em que, por páginas e páginas, e corre atrás de um bichano e sofre todo tipo de contratempo: é atropelado, multado, cai em um bueiro, perde um compromisso com a Margarida e por aí vai. Como não sou personagem de cartum, minha reação foi outra: preferi fechar os olhos para a incrível conjunção de fatores sobrenaturais. Segui meu caminho como se nada tivesse acontecido, agarrei-me às minhas convicções racionalistas. Se me acontecer algo de muito negativo nos próximos dias, avisarei. Ou sumirei destas páginas.

21.3.07

A fórmula do roteiro perfeito


Não sei se já estreou no Brasil o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano; se estreou, recomendo vivamente. Senão, recomendo para quando estrear. "A Vida dos Outros" (se é que vão traduzir assim o título Das Leben der Anderen) é um grande filme, baseado num roteiro perfeitamente amarrado, com uma direção precisa e consciente de cada detalhe da dramaturgia. Provoca as mais fortes sensações, sem precisar apelar em momento algum a qualquer coisa que possa ser considerada piegas. Saindo da sala, fiquei surpreso ao descobrir que são quase três horas de projeção.

O ponto alto está, sem dúvida, nas atuações. Os três papéis principais são muito bem interpretados, sobretudo o agente da Stasi Gerd Wiesler, por Ulrich Mühe, e a atriz Christa-Maria Sieland, por Martina Gedeck. O cinema alemão, a propósito, tem nos brindado com algumas das melhores obras dos últimos anos. De "Corra, Lola, Corra" e "Adeus, Lênin" até "A Vida dos Outros", tivemos "Edukators" (Die Fetten Jahren sind Vorbei), "A Queda", "Sophie Scholl, die letzten Tage" ("Uma Mulher contra Hitler"), e tenho certeza de que estou esquecendo mais alguns.

Vou esboçar um resumo do enredo, mas muito curto, porque não é esse o intuito do texto. Na década de 80, um zeloso agente da Stasi (Staats Sicherheit, a polícia secreta da Alemanha Oriental) é incumbido de vigiar um dramaturgo e sua esposa, atriz, apesar de o casal ser considerado entre os maiores colaboradores do regime socialista. Munido de suas próprias desconfianças e preocupado em fazer um bom trabalho (afinal, é um prussiano), o agente mergulhará na vida dos artistas, mas muito além do recomendado. Qualquer coisa a mais que eu disser estragará o filme. É uma pena que seja tão fácil ler mais detalhes por aí!

O diretor, produtor e roteirista chama-se Florian Henckel von Donnersmarck. Se o nome parece comprido, saiba que, completo, fica Florian Maria Georg Christian Graf Henckel von Donnersmarck, em que o Graf significa "barão". Pois esse aristocrático alemão ocidental, 33 anos, nascido em Colônia, descendente de uma linhagem de militares e industriais prussianos, batalhou durante anos para ver nas telas o resultado de seu trabalho. Sem jamais ter pisado na antiga DDR, nome oficial da Alemanha Oriental, escreveu, captou recursos e dirigiu a história que melhor toca nas chagas do antigo país. Reza a lenda que um grande escritor do lado oriental o expulsou de seu escritório aos brados, ironizando sua condição de "filhinho de papai" criado em Nova York.

Chegamos ao ponto que eu queria abordar. O roteiro, que, como em todos os filmes bons que tenho visto nos últimos anos, é muito bem construído. Não há ponto sem nó, frase solta, seqüência sem sentido. Cenas do final explicarão detalhes do início, atitudes aparentemente corriqueiras se revelarão fundamentais. As variações da tensão dramática são impecáveis, o riso se interpõe à apreensão nos momentos certos. Os personagens são profundos, ambíguos. Não há heróis claros, nem vilões absolutos. Tudo perfeito.

Como eu disse, tenho visto a mesma perfeição em muitos filmes, das mais diferentes origens. Americanos, europeus, brasileiros, argentinos, orientais. Em todos, os roteiros são precisos, enxutos, ricos. É fantástico. A impressão que tenho é de que os alquimistas da tela, esses seres fabulosos que existem para nos divertir e impressionar, descobriram a fórmula do ouro cinematográfico. O cinema nunca mais será o mesmo. Penso em Fellini, Godard, Buñuel, Truffaut, Antonioni, Glauber. Nas suas obras-primas, cheias de momentos estonteantes, que só ganhavam em riqueza com os pequenos pontos de imprecisão. As falhas deliciosas, às vezes gritantes, não são menos fruto da genialidade que as seqüências apoteóticas, que marcaram época, como o final de "Oito e meio" e a verborragia de "Terra em Transe".

Não há mais espaço para isso, como, de qualquer forma, não há mais espaço para o cinema de autor. O risco de que um roteiro resulte ruim, falho, cheio de buracos, é quase nulo. Um responsável "óbvio" poderia ser apontado, sob o nome de Syd Field, o "script-doctor" que virou uma espécie de Lair Ribeiro do roteiro internacional, com seus livros escritos em estilo imperioso, diria até tirânico. Mas ele é apenas parte da explicação. O cinema é uma indústria cara. Muito rentosa, mas cheia de riscos, então perder dinheiro é inaceitável. Antes de ir para o estúdio ou a locação, um roteiro é lido centenas de vezes, por dezenas de pessoas. Passa por uma cirurgia estética (literalmente) muito mais minuciosa do que a das modelos da Playboy, e muito mais eficiente, porque sempre imperceptível. Ao final do processo, o texto só não será impecável por um desastre.

Isso não significa, claro, que não haja filmes surpreendentes. Pelo contrário: todos o são. Mas não consigo deixar de sentir que a surpresa é planejada, testada em laboratório, quem sabe em ratos, antes de chegar às salas de projeção. Numa analogia de gosto duvidoso, é como se o filme fosse um dentifrício, e pesquisadores tivessem descoberto o tubo perfeito, aquele que mais agrada ao consumidor e economiza a pasta. A partir daí, todos os tubos, nas farmácias, serão idênticos. Melhor, impossível. Claro, mas estamos falando de arte, não de uma commodity. A princípio.

No cinema, ou pelo menos no roteiro, o erro foi definitivamente eliminado. Mas não posso deixar de sentir que o gênio, o sublime, o êxtase, e por que não dizer, o dionisíaco, sucumbiram junto. Hoje, vou ao cinema sabendo que o filme será bom, ou às vezes não, mas o roteiro será previsivelmente imprevisível, excelente em sua regularidade, cheio de boas sacadas, mas sem nenhum grande vôo, nenhum risco, nenhuma jogada de mestre. Isso não impede que se produzam filmes maravilhosos, como esse "A Vida dos Outros". Mas algo está faltando. Sinto saudades de ser arrebatado por seqüências como o final de "O Eclipse", do Antonioni. Algo assim, hoje, é simplesmente impensável.

PS: Diretores como Lars Von Trier, David Lynch, Wim Wenders e Woody Allen são um caso à parte. Mas eles já estão aí há bastante tempo, então não contam.

18.3.07

O episódio do mamão de ouro

O cajá, que colhíamos no quintal de minha bisavó, ficava alguma horas espalhado sobre a mesa, para depois virar suco. As jaqueiras, que ladeavam algumas ruas no bairro de minha infância, cuja existência comecei a por em dúvida quando me dei conta do risco que representavam para carros, crianças e pedestres. A carambola, que eu fazia de nave espacial antes de engolir quase de uma vez. O umbu, que vinha do sertão baiano, ao qual jamais dei grande atenção. As jabuticabas, que colhíamos no pé, até voltar retorcidos de dor de barriga. As mangas, que comíamos sempre, e somente, com as mãos, de barriga para o ar.
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São lembrança que se fazem acompanhar de sensações luminosas. Saudade, carinho, uma certa leveza que associamos à infância, junto com as brincadeiras, as brigas, a inocência e a crueldade. Tantas frutas, nomes que cercaram minha realidade; caju, pitanga, graviola, acerola, caqui. Ao meu afilhado, em seu primeiro aniversário, dei de presente uma jabuticabeira, para que ele colha e coma à medida em que seus anos se empilharão. Ao meu pai, ofereci uma muda de carambola, uma de suas frutas preferidas, e minha também. Escolhi ambas cuidadosamente, ainda pequenas, para que o prazer de vê-las crescer se some ao de colher e provar dos frutos.
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Poder esticar a mão e se apropriar de uma fruta para comer é um verdadeiro privilégio. Poder comprar mamões e laranjas por quilo (ou dúzia), também, ainda que menos pitoresco. Tomei consciência dessa enorme felicidade ao visitar uma amiga que já fincou raízes nesta célebre cidade, muito antes de me vir a idéia de passar cá uma temporada. Encontrei-a sentada na cozinha, pupilas brilhando, a venerar um mamão, desses que se compram em qualquer feira com um punhado de moedas. Era tocante a forma como seu olhar se deleitava com aquela fruta, antecipando-se à boca. Jamais, no campo da alimentação humana, um mamão foi tão admirado.
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Perguntei-lhe se ela não tinha intenção de parti-lo. Ela se voltou para mim e manifestou uma sincera preocupação. "Será que está bom? E se estiver sem gosto?" De fato, às vezes os mamões vêm sem gosto, ou nós os abrimos cedo demais, ou tarde demais. Mas aquele não parecia verde. Pelo que sei dos mamões, estava no ponto. Repliquei que a única maneira de saber se o gosto era bom seria abrindo-o. Em suma, era necessário provar. "Tenho medo de descobrir que está sem gosto", ela repetiu. Seu comportamento começou a aguçar minha curiosidade. Se o mamão estivesse sem gosto, ou com gosto ruim, ou o que fosse, ora, paciência. Haverá outros mamões no mundo, queira Deus! Se algum dia se acabarem os mamões, espero já ter, eu mesmo, me acabado muito antes! E aquele mamão específico não era feito de ouro.
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Foi então que ela, finalmente, me explicou o que tornava tão especial aquele exemplar, acima de todos os demais. Se não era de ouro, era quase: custara €4,00. Algo como R$ 12,00, talvez um pouco menos. Um único, bendito, mamão. Ela riu de meu espanto. Seu marido, um gaulês autêntico, mais ainda. E arrematou. "As frutas exóticas, aqui, são caras. Quem me dera viver num desses países onde, de tão comuns, as pessoas nem se preocupam em colhê-las!"
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De repente, descubro que são exóticas todas aquelas frutas, aquelas memórias de infância, aquelas delícias de comer após o almoço. Por extensão, ora, só posso concluir que sou eu mesmo um exótico. Para piorar, ele tem razão; as amoras mais altas do pé, eu não me dava ao trabalho de colher. Se soubesse o preço que elas teriam do outro lado do Atlântico, talvez abrisse um negócio. Falta de informação é um problema, mas o exotismo tem lá suas vantagens: as frutas.
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Aberto, afinal, o mamão não estava sem gosto, mas tampouco valia o que custara. Enquanto o apreciávamos, com o cuidado que os alimentos de ouro merecem, retomamos o assunto das práticas alimentares. O exotismo voltou à pauta, enquanto o descendente de Gargântua elencava os pratos para lá de curiosos que provara em uma recente viagem ao Brasil. Feijão preto, couve, aipim - acho que ele se referia a uma feijoada -, acarajé. O churrasco em esquema de rodízio, como de praxe, foi o que mais lhe chamou a atenção. Que fartura! Esses países são, realmente, impressionantes.
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Num determinado momento, fui exortado a contar de minhas novas experiências culinárias, eu que tenho o privilégio de poder provar in loco da estupenda, inimitável culinária francesa. (Não foi à toa que usei esses adjetivos hiperbólicos. É uma simples tentativa de reproduzir o que me era esperado responder sobre a cozinha local. Uma qualificação ligeiramente menos entusiástica arruinaria o fim-de-semana do casal. E esfriaria irreversivelmente nossas relações.)
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Comecei a buscar na memória algumas coisas que provei nesses meus meses de França. Lembrei-me do escargot, que custa uma fortuna e não passa de um caramujo com azeite (mas é uma delícia, não posso negar). Lembrei-me também das trufas, mais caras ainda. São fungos do tamanho de uma batata, que nascem debaixo da terra, não se sabe como, nem quando, e só são encontrados por porcos farejadores. As rãs, que são caçadas com a ajuda de uma lanterna que as paralisa, e cuja pele sai inteira, de uma vez só, quando puxada corretamente. Os cavalos, que até hoje não sei se são potros ou velhos, imprestáveis para os passeios das condessas. (Sim, aqui se comem cavalos, qual é o problema? No Brasil, comem-se abacates!)

A grande arte culinária da França consiste em tornar extraordinariamente elegantes as iguarias mais inusitadas, vez ou outra repelentes. Nada mais venerável do que o famoso foie gras, ou seja, o fígado estourado de gansos ou patos alimentados à força. Falando em patos, se tem uma coisa que não quero saber como é feita, chama-se andouillette; disso, tenho trauma. Só sei que, depois de prová-la, repensei meu asco de orelha de porco ou língua de boi.

Não sou um grande entendido em culinária, mas o episódio do mamão de ouro chamou minha atenção para o conceito de exotismo. Os brasileiros recebemos as novidades e as diferenças culturais com mais facilidade, sem dúvida. Talvez seja nossa natureza antropofágica, ou reflexo das imigrações e de das nossas próprias diferenças internas, ou ainda uma faceta do nosso complexo de vira-lata. Mas isso não significa que o conceito nos seja inteiramente estranho. Particularidades de povos asiáticos e africanos nos soam tão exóticas quanto as nossas soam aos europeus.

Eu, por exemplo, acho escandaloso que os indonésios fritem insetos e os mastiguem como amendoim. Ou os coreanos, que refogam cães, os mesmos poodles que as madames levam para tomar banho no pet-shop. No Nepal, o nosso bom e velho miojo (na verdade, lámen) é comido cru, no cinema, como se fosse pipoca. Por mais universalista que eu tente ser, não consigo considerar nada disso normal. Que o francês tache de exóticas nossas frutas, tudo bem. Mas responda com honestidade: o que parece mais insólito, comer jabuticabas e pitangas ou fungos e caramujos?

15.3.07

Ainda chegaremos lá

Crédito da foto: Yo mismo.

Anos atrás, tive um professor que, como díziamos, engoliu um megafone. Já não lembro mais como se chamava, o profeta do Apocalipse. Só lembro que ele usava sempre uma camisa xadrez. Em aula, com a ajuda de instrumentos estatísticos infalíveis, elencava em tom catastrófico um sem-número de dados sobre a "africanização" do Brasil, como dizia. Vai fazer década que fui seu aluno, e me lembro com um certo desconforto de suas menções ao empobrecimento da classe média, à migração de empresas, ao aumento da criminalidade e à queda da qualidade de ensino. Hoje intermitente, meu otimismo era àquele tempo inabalável. Para mim, o alarme era apenas espetáculo.

Esse professor me veio à lembrança durante um almoço com gente do mundo todo, particularmente brasileiros e, claro, franceses. Eu conversava com um jornalista local, desempregado como a maioria, e como a maioria dos nossos, também. Perguntou-me como vim parar na França, este país decadente, idiota (as palavras são dele) e violento. Expliquei-lhe que foi mais o acaso do que qualquer outra coisa, mas acrescentei que, se o assunto é violência e decadência, sou escolado.
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Contei-lhe das últimas barbaridades em nossas terras. Falei dos tiroteios, das crueldades, das bombas, das prisões abarrotadas. Falei de tudo que veio à minha cabeça, e não disse nem metade. Como todo brasileiro, minha memória é curta, e chegou um momento em que me faltaram exemplos para ilustrar meu "a coisa está terrível".
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O francês não teve o mesmo problema. Mencionou uma vizinha sua que foi assaltada por três homens, um deles armado, teve a bolsa roubada e levou um soco. Uma gangue de adolescentes que atacava usuários dos trens de subúrbio e finalmente foi presa. Um agressor apreendido no metrô. Vândalos inalcançáveis, que pareciam feitos de ar. E outros casos que nem entrariam em nossas estatísticas.
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Finalmente, fazendo uso das técnicas oratórias que todo francês aprende em casa, ele arrematou, levando as mãos à cabeça: "A França está em plena terceiro-mundialização". Em outras palavras, se nós tememos o risco de virar África, o maior medo dos europeus é, bem, virar nós.
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Confesso que me senti um pouco ofendido. O Terceiro Mundo, afinal, não é esse fim de mundo todo (perdoe o trocadilho, foi irresistível), como o ar assustado do meu interlocutor levia a crer. Por outro lado, talvez a África tampouco seja assim tão má. O pouco que conheço desse enorme continente (a Cidade do Cabo e uns cantos do extremo sul) me leva a crer que eles têm muito potencial, isto é, se forem capazes de combater as divisões que herdaram da colonização européia.
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O gringo estava transtornado com o que considerava crimes inaceitáveis. E no Brasil, o que seriam esses crimes? Não entrariam nem como nota de calhau. A conversa, que começou na violência, enveredou por sendas mais espinhosas. Corrupção na política, decadência econômica, índices educacionais desoladores. O francês demonstrava, a cada vez, uma vergonha mordida de seu país.
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Os jovens franceses, bradou, terminam seu período de estudos obrigatórios, aos 16 anos, cometendo erros inaceitáveis de ortografia (um problema, de fato, para os franceses, e não à toa). As contas do governo estão começando a apresentar desequilíbrios preocupantes. Um candidato à presidência parece ter driblado o imposto sobre grandes fortunas. Um outro chamou de escória os jovens das periferias. Tudo isso é inaceitável. São sinais claros de que o Terceiro Mundo se avizinha. Adeus, velho berço da cultura ocidental!
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Nesse ponto, minha ofensa se dissipou. Melhor dizendo, transmutou-se em inveja. Quem me dera poder arrancar os cabelos com erros de ortografia dos nossos adolescentes. Tentei lhe explicar que jovens brasileiros diplomados no ensino médio são às vezes incapazes de interpretar uma frase simples. Exagero, decretou. Puro sensacionalismo. Impossível.
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Desisti de abordar nossos escândalos de corrupção quando ele disse que isso existe em todo lugar. E como explicar o fato de que o país pode ter inflação baixa e juros altos simultaneamente? O nível de endividamento do Estado brasileiro é qualquer coisa de inconcebível para essas pessoas.
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Ao final, eu já passava por mentiroso. O que me salvou foi a concordância dos demais brasileiros, com a diferença de que alguns acrescentavam um impropério contra Lula. Cuidado! Não fale mal do nosso presidente diante de um francês: afinal, apenas um reacionário poderia criticar o, como consta no Le Monde, líder operário que se tornou chefe de uma nação com quase duzentos milhões de almas.
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Só me restou tentar acalmá-lo com relação ao seu continente tão querido. De fato, nunca mais a Europa mandaria no mundo. Até não seria tão mau: os séculos de dominação européia foram um tanto quanto sangrentos. Ainda assim, por mais que as indústrias se desloquem para a Índia e os filmes americanos dominem as salas de cinema (talvez a questão mais alarmante de todas), a riqueza do continente está garantida, na medida do possível.
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Nós, brasileiros, falamos em africanização, mas toleramos toda espécie de bagunça institucional; reclamamos da vida caótica que se leva nas cidades, mas contribuímos para ela; tememos a violência, mas a alimentamos; condenamos a corrupção, mas a praticamos quotidianamente. Nossas mobilizações, nossas comoções nacionais, dissipam-se com a velocidade do pensamento, substituídas por preocupações menos exigentes. Não queremos alterar em nada a nossa forma autofágica de viver. Seguimos à perfeição, em velocidade de cruzeiro, a rota para o desastre.
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Os europeus, essa gente ultrapassada, fria, desagradável, freqüentemente malcheirosa, violenta, pedante e por aí vai, quando dão com um policial que procrastina em serviço, só falta derrubarem a delegacia. Perante as dificuldades de integração na Zona do Euro, chiam, reclamam, brigam entre si. Mas vão atrás da solução. Os franceses, por exemplo, sentem que são muito menos eficientes, na hora de descascar abacaxis, do que seus vizinhos alemães. Invejam-nos por isso. Sentem que estão ficando para trás.
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Nós não nos importamos em ficar para trás. O fato de que, há anos, nossa economia só cresce mais do que a do Haiti (em guerra civil), ora, já virou piada. Recebo diariamente, por "feed", as notícias dos principais jornais brasileiros. Em tempo real. Mais de metade, juro, fala de futebol: as agruras dos jogadores que tentam renovar contratos, as indecisões dos técnicos. A impressão que fica é de que, no Brasil, nada acontece que mereça mais destaque do que a contusão do goleiro do América.
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Até que, um dia, algum grande crime choca, momentaneamente, o país. A sociedade inteira se comove. Pede-se a redução da maioridade penal. O governador do Estado em que o crime aconteceu, normalmente Rio ou São Paulo, aproveita para exigir medidas da União. Dali a pouco, como por milagre, o grande problema volta a ser a escalação do Madureira. Ou alguma novela.
Nada disso é concebível para a mente do meu interlocutor. Mesmo com a ajuda dos conterrâneos, não consigo dar a entender o abismo que separa essas duas concepções nacionais. Ele continua desolado, ele e seus compatriotas.
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Donde fica a pergunta: o que está mais próximo, a "terceiro-mundialização" da Europa ou a "africanização" do Brasil?

11.3.07

Primavera precoce, tempo de fotografar

Como todo mundo sabe, a primavera assaltou a Europa mais cedo, este ano. Não sou climatólogo, então não vou me apressar a culpar o aquecimento global, embora ele seja o principal suspeito, e com provas contundentes. Lamento o risco que nosso planeta corre, fico assustado ao ver as árvores todas floridas, as folhas que ameaçam brotar e já imprimem um certo verde às paisagens da cidade. Não posso negar que é preocupante. Ainda temos, ou deveríamos ter, um mês inteiro de inverno pela frente.

Mas (porém, contudo, entretanto), como não sou de ferro, timidamente, e até agora em segredo, comemoro a felicidade de não ter passado tanto frio quanto cheguei a temer. Eu, que me refiro a mim mesmo como "Paulo, o Tropical". Não vi neve que fosse digna do nome, nem precisei ficar escondido debaixo da cama, não o tempo todo. A única ferida que o inverno me causou foi uma conta de gás que parecia de aluguel.
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A alegria primaveril, mesmo se temerosa, é inevitável. Todos sabemos que Paris é linda, sorridente, extrovertida (essa última característica é discutível). No inverno, nada disso é verdade. A cidade é soturna, monocromática, quase imóvel. Instalar-se aqui em dezembro é decepcionante e põe à beira da depressão qualquer mortal. Vive-se da promessa quase messiânica de uma primavera vindoura. Ouvimos os relatos dos profetas do sol, narrativas com lendas fabulosas sobre gente nas calçadas, cafés abarrotados, árvores floridas. Abril em Paris, contam, é tudo que a canção diz. E mais um pouco. Abril, meus filhos. Um dia virá abril.
Os profetas tinham razão, embora o famigerado efeito estufa tenha causado um desvio nada irrelevante nos cálculos. Neste ano da graça de 2007, o mês da alegria chama-se março. E março, com toda sua luminosidade, torna Paulo (o Tropical) uma pessoa insuportável.
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Alguns posts (detesto essa palavra) abaixo, mencionei uma máquina fotográfica que ganhei de brinde. Disse que era furreca, mas quebrava um galho, e publiquei algumas imagens que ela produziu em um cemitério. Pois essa máquina simples, furreca, de baixa resolução, não sai mais do meu bolso. Um amigo, que sofre da mesma mania visual, uma vez me disse que conseguir boas fotos em Paris é moleza, difícil é fazer isso em São Paulo. Ele tem toda razão, mas como sempre fui chegado a uma vida mansa, não tenho pudores na hora de impedir a circulação das pessoas, ser quase atropelado ou chegar atrasado a compromissos. Se algo atrai minha atenção, saco imediatamente da minha caixa escura e aperto o botão.
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Para quem está acostumado a aparelhos de qualidade, conseguir boas imagens com uma máquina quase descartável é um desafio, diria mesmo uma lição. É impossível controlar a luz, jogar com as sombras, desfocar o fundo. Fotometria? Nem pensar. E reze para que o resultado saia aceitável. Mas todos esses contratempos são perfeitamente releváveis. Afinal, estamos na fabulosa era digital, em que o prejuízo de uma foto ruim se limita ao tempo gasto a apagá-la. Já revelar um filme, nesta terra, céus! Uma fortuna.

Então, meu procedimento é simples; segue estritamente a Lei Ricúpero: "o que é bom, a gente fatura. O que é ruim, a gente esconde". Adaptada para nossos tempos futuristas, fica assim: as boas fotografias, salvo e publico. As ruins, apago sem dó. As péssimas, chamo de artísticas e publico também. Quem lê este blog (sem olhar) será agraciado ao longo do tempo com um caminhão dessas imagens, que não exigiram nenhum conhecimento da arte fotográfica, mas foram tiradas com a facilidade de quem escova os dentes.
Por outro lado, minha relação com a máquina está começando a mudar. Não posso mais tratá-la como um objeto irrelevante e sem alma. Apesar de inanimada e movida a pilhas, minha discreta câmera tem vontade própria e um profundo senso artístico. Ela pensa. Ela é sensível. Não se trata de qualquer produto eletrônico vagabundo. É por isso que não a chamo mais de furreca. Ela pode se voltar contra mim.
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Vontade própria, sei que ela tem porque, lá um belo dia, resolveu simplesmente passar a imprimir data e horário no canto inferior direito. Em azul celeste, ainda por cima. Não comandei isso, nem consegui mandar tirar. Mais ainda, ela decidiu que não estamos em 2007, mas em 2004. Quem sou eu para discutir? Botão algum é capaz de mudar a decisão, já perdi imagens preciosas por conta disso, e o manual que a acompanha, em suas quatro páginas (sim, são só quatro páginas), não diz uma palavra a respeito. É um silêncio cúmplice. Só pode ser.
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Já a sensibilidade artística se manifesta quando a máquina toma decisões estéticas. Por exemplo, não é raro ela considerar que a perspectiva do fotógrafo - no caso, eu - é banal, limitada, prosaica. Enfastiada, resolve-se a, pura e simplesmente, distorcer a profundidade, exagerar nos contrastes, desconstruir o real insosso que deu origem à imagem. Coisas que eu mesmo não posso decidir fazer com os recursos escassos que ela me oferece. O produto, devo confessar, é não raro muito melhor do que eu tinha planejado. São releituras, às vezes críticas, outras irônicas, às vezes até apologéticas, da paisagem tomada. A cada vez que isso acontece, sinto que minha câmera me humilha. Mas, como não sou idiota, vou me apropriar das suas criações e dizer que exerci uma intenção autoral. Quem sabe não consigo uma exposição, champanhe, fotos à venda por milhares de euros? Sonhar não custa nada.
Um exemplo é a fotografia que abre o texto. Com meu senso de humor bastante limitado, quis enquadrar um homem que, sorridente de ver o sol quase pela primeira vez no ano, carregava um abacaxi como se fosse uma bola de basquete. Mas a câmera sabe mais. Que coisa mais sem graça... um abacaxi! Bom é registrar uma imagem impressionista, colorida, fazer do movimento da rua o movimento da obra, questionar nossa percepção do real, etcétera, etcétera. Se é ela que diz, apenas aceito. Não tenho como me opor.

Máquina digital furreca à parte, ainda me considero um dinossauro fotográfico. Minha câmera oficial, por assim dizer, é uma Canon analógica, daquelas que só permitem ver o resultado depois de dias, gastando uma nota preta de filme, revelação e, agora, digitalização. Se eu tivesse uma câmera digital, não essa furreca, mas uma do nível da minha Canon, poderia me esbaldar de tirar foto. Seria a pessoa mais chata do mundo, não conseguiria andar cem metros sem apontar a lente em alguma direção. Pensando bem, até que a exclusão foto-digital não é assim tão perniciosa.
Por isso, estou lançando uma campanha. Quem não estiver engajado em causas mais nobres, bom, deveria. Mas, de todo jeito, pode ajudar Paulo, "o Tropical", a comprar uma máquina fotográfica digital de qualidade. Aceito contribuições de qualquer valor. Cem eurinhos já está ótimo. Aceito vale-transporte, até mesmo um Eurostar de três países. Basta me mandar um e-mail. Quem aderir receberá em troca, ao longo do tempo, uma batelada de fotografias.

8.3.07

Sete de março


Desde 2006, sete de março é uma data de memória traumática para mim. Hoje, completa-se um ano da morte de Igor. Parece muito menos. Quando sua figura me vem à memória, uma sensação incômoda ainda me acomete, algo como a constatação de que o absurdo talvez seja mais normal do que o rotineiro, ou a convicção de que todo o sentido que vemos no mundo não passa de um produto da nossa vontade. Há ainda as coincidências, que causam uma sensação inversa. Sim, a realidade está submetida a uma organização superior, mas ela é sarcástica, cruel e patética. São deuses que não nos amam, são mônadas embriagadas. São o que forem, a conclusão é que nós não somos nada, senão reféns de um senso do trágico que descamba freqüentemente para o cômico.

Tinha 28 anos, Igor Zuvela, ator de muito talento e vontade de cultivá-lo. Amante da Moóca e da vida, deixou na Terra um filho de cinco anos que durante meses ainda sonhou com o pai. Um garoto que era o combustível da luta infatigável que Igor conduzia para vencer na carreira. Poderia ter falhado, como tantos jovens, sobretudo artistas. Mas sempre houve como pagar a pensão do filho. E, como seria belo e justo que acontecesse a todos os lutadores virtuosos, os vento estavam se tornando favoráveis. Os bons convites de trabalho começavam a vir com mais freqüência. O reconhecimento paulatinamente se expandia. Ontem, pouco antes do aniversário de sua morte, estreava em cinemas de São Paulo um longa-metragem em que ele tinha um bom papel.

No campo pessoal, a instabilidade de anos desaguava num relacionamento estável e amoroso como poucos. Acabava de mudar-se para uma casa pequena, mas deliciosa, dentro de uma vila, com jardim à entrada. Seu aneurisma o acometeu no dia 5 de março de 2006. Era o dia seguinte ao aniversário de seu menino, festejado na nova casa. Passamos, seus muitos amigos, a segunda-feira entre boletins médicos otimistas e pessimistas. Na terça-feira, o otimismo acabou.

Falei, acima, de coincidências. Ora, cada um constrói as suas, a partir de datas, circunstâncias, detalhes. A minha coincidência particular é que o sepultamento se deu no mesmo cemitério em que descansa um outro amigo, falecido em circunstâncias parecidas, seis anos antes. Ninguém entendeu quando comprei flores e parti, só, para o meio dos jazigos, poucas horas antes do enterro. Fui prestar minha homenagem a Ligivânio Luiz do Nascimento. Com muitos anos de atraso, porque até então não tivera a coragem de visitá-lo.

Vânio, como o chamávamos, passou mal durante uma aula, numa quarta-feira à noite. Sentiu-se enjoado, voltou para casa, precisava descansar. Não acordou. Só fui saber do acontecido na sexta-feira, porque uma escavadeira rompera a fiação de telefone do meu quarteirão. Eu fiquei incomunicável durante dois dias. Por isso, não fui ao enterro, o que me entristece ainda hoje.

A notícia me transtornou. Vânio era a pessoa que eu mais admirava no mundo, e ainda é. Eu acreditava, talvez com uma certa ingenuidade, que se algum dia o Brasil se erguesse, haveria nisso um dedo seu. Como Igor, era um batalhador. Filho de imigrantes nordestinos, chegara de Pernambuco com um ano de idade. Aos 25, já tinha aparência de 40. Reflexo das dificuldades. Como tantos estudantes pobres, prestou vestibular para Geografia porque era a nota de corte mais baixa da Fuvest. Cursou dois anos, depois trocou para Economia em busca de salários mais expressivos, que o ajudassem no sustento da casa. Assim como Igor sustentava o filho, Vânio sustentava os pais. E, como Igor, começava a colher os primeiros frutos da boa vontade da Fortuna. Um novo emprego, no Banco do Brasil, para substituir o trabalho de motorista do Zoológico. Um carro novo, velho, mas seu.

Essas duas perdas têm ainda em comum o fato de terem causado em mim toda sorte de sentimentos. Soube por um grande amigo, que tentou me contactar durante todo o tempo em que estive inalcançável, do que ocorrera a Vânio. Logo que desligamos, corri para o computador e redigi, aos prantos, de um fôlego, um extenso elogio fúnebre, que tentei fazer publicar no jornal da faculdade. Mas o jornal, mal administrado, jamais saiu. Daí por diante, decidi fazê-lo eu mesmo. Mas o texto jamais foi impresso. Não tive coragem de relê-lo, e ele ficou guardado debaixo dos meus olhos até que o computador em que estava armazenado se perdeu de vez. Não sei até hoje o que minha fúria foi capaz de produzir.

Já a morte de Igor, um sujeito que tinha o ímpeto de um cavalo normando, deixou em estado de catatonia dezenas de pessoas que nutriam por ele um carinho gratuito. O tempo parecia suspenso. As faces denunciavam uma agonia metafísica. Não havia espaço na sala do velório para todas as coroas de flores, que amanheceram enfileiradas pelo corredor. Para realizar um desejo expresso por nosso amigo, brindamos com um conhaque e derramamos metade da garrafa sobre a sepultura. Em seguida, aplaudimos o último espetáculo de que foi protagonista.

Jamais esquecerei aquela manhã. Foi a mais terrível e dolorosa que já tive. Era como se todas as minhas dores aflorassem, violentas, explosivas, ao mesmo tempo. Enquanto velava um amigo, investiguei onde estaria a sepultura do outro. Seis anos passados, já o tinham transferido para o ossário. Encontrei-o, depus as flores debaixo da fotografia de Vânio, formal em sua gravata, mas sorridente e tranqüilo como de hábito. Eu estava só. Permiti-me um choro agressivo. Meus pensamentos não tinham forma, não tinham sentido. O raciocínio estava sufocado, perdi a noção de tempo. Quando retornei, já era hora de partir o cortejo.

Não mantive contato com a família de Vânio. Mas o filho de Igor foi objeto de uma mobilização verdadeiramente admirável. Através de doações e uma apresentação extraordinária do espetáculo em que o pai atuava, conseguimos juntar dinheiro suficiente para abrir uma poupança em nome do menino. Poderá pagar, talvez, uma faculdade, um apartamento, o que for. Embora órfão, ele sem dúvida se orgulhará, quando crescer, da estima tão forte que seu pai mereceu, e de tanta gente.

Com este texto, tento corrigir um erro histórico de minha parte: o silêncio sobre Ligivânio, por quem nutri tanta admiração e em quem gostaria de poder me inspirar. Nesta homenagem aos amigos perdidos, uno pela memória dois bravos que se foram cedo demais, injustamente antes da hora. A morte os aproximou, não só nas minhas palavras, mas também fisicamente, com seus jazigos tão próximos. É uma pena que essas pessoas louváveis, em que vejo tantas semelhanças, jamais tenham se encontrado em vida.

7.3.07

Estrasburgo, cidade de união e guerra


Quem parte de trem da Gare de l'Est, em Paris, vê aos poucos os antigos prédios à la Haussmann ficando para trás, substituídos pelos campos de Champanhe e as vilas das Ardenas. Ali, a França é mais França; é celeiro de pães, vinhos e queijos típicos. Essas paisagens não demoram mais de um par de horas para mudar inteiramente. Os telhados das casas se tornam mais pontiagudos, a arquitetura das igrejas escurece, as vilas se adensam. Os nomes das estações em que o trem pára quase nada têm de franceses.
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Estamos na Lorena, ou Löthringen, como se chamava a região quando fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico, que, segundo Voltaire, não era sacro, nem romano, nem império. Só germânico. Mas as mudanças ainda não acabaram: o trem sobe pelas escarpas dos Vosges, cujos pinheiros mais altos estão cobertos por uma fina camada de neve. Na descida, chega-se à Alsácia, uma das regiões mais extraordinárias deste extraordinário continente, que esteve no centro da terrível história de conflitos que marcou os últimos 400 anos de sua história.
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Em 1648, o cardeal Mazarin regia a França em nome do pequeno Luís XIV. Ao que parece, os clérigos franceses (esse, particularmente, era italiano) são ótimos em política externa, melhores do que os reis e presidentes. Assim, por ocasião da Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 anos, o esperto cardeal aproveitou para passar a mão numa pequena área fronteiriça com o que era na época o tal império germânico, conhecida hoje como Alsácia (Alsace em francês, Elsass em alemão e no dialeto local). Desde então, a pequena e bela região em torno de Estrasburgo (Strassburg em alemão, Strossburi no original, Strasbourg em francês) foi república independente, foi Alemanha e foi França, que é seu estatuto desde o final da Segunda Guerra Mundial. (A cidade, em si, só foi incorporada à França duas décadas depois.)
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Cidade nenhuma poderia ser melhor escolhida para sediar o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu. Após mais de três séculos pendendo entre alemães e franceses, Estrasburgo, a cidade-encruzilhada, segundo a etimologia alemã do nome, não perdeu suas características mais marcantes, que revelam o passado turbulento. Um ar medieval, a arquitetura germânica em estilo enxaimel, o dialeto, herdado da antiga tribo allamani e ameaçado de extinção.
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Nada de baguetes, nem cafés de esquina, nem bulevares. Ao contrário do resto do país, lá é possível sair de um restaurante plenamente satisfeito, após devorar um chucrute com salsichas e cerveja. Estrasburgo, a menos de vinte quilômetros do Reno e da fronteira alemã, guarda todos os traços de sua confusa história. O centro antigo consiste numa ilha delimitada pelos canais do rio Ill, afluente do Reno. Em suas ruas estreitas, livreiros francófonos, monumentos germânicos e uma divisão quase perfeita entre igrejas católicas e protestantes. Estrasburgo, como todo o continente, também sofreu com guerras religiosas nos séculos XVI e XVII, mas foi uma das primeiras cidades a encontrar a solução na convivência pacífica e tolerante; na entrada da região central, a igreja Saint-Pierre-le-Vieux, de arquitetura românica, se divide entre um templo católico e outro protestante, lado a lado.
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Para o turismo histórico, é quase a cidade perfeita. Sua catedral é uma das mais belas do período gótico, embora a construção tenha começado no século XI e a conclusão, embora só uma torre tenha sido erguida, seja obra do século XIX. Sua coloração rosada é típica do gótico tardio alemão, bem como a torre alongada e as efígies de antigos imperadores. No interior, um célebre relógio astronômico que atrai turistas aos milhares, com autômatos que representam as idades do homem, figuras que simbolizam os signos do Zodíaco e um porte imponente.
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Ao redor, o centro antigo, que dispensa apresentações: é a primeira região urbana a ser inteiramente considerada patrimônio da humanidade pela Unesco, e com razão. Trata-se de uma ilha que concentra edificações belíssimas, desde casas medievais até palácios neoclássicos. O sofrimento histórico resultou em um patrimônio invejável: Estrasburgo viveu o Renascimento alemão e o barroco francês. A notar, especificamente, a Maison Kammerzell e a Ancienne Douane.
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Atravessando as pontes do centro antigo, pode-se visitar a Petite France, assim chamada porque era o bairro da prostituição e, portanto, da sífilis. Ora, como todos sabiam naquela época, prostituição e sífilis eram coisa de franceses. Interessante é o fato de que, depois de tomar posse da região, os súditos de Luiz XIV não tenham se preocupado em alterar o nome do bairro.
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Mais adiante, vêem-se as quatro torres de pedra que guarneciam a entrada da cidade na Idade Média, entre as chamadas Pontes Cobertas, mas descobertas pelo tempo. É possível contemplá-las da barrage Vauban, uma ex-represa que abriga dezenas de esculturas das igrejas destruídas pelas guerras. Amontoadas, as belas figuras de pedra imploram por uma restauração.
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Não vou falar dos museus, teatros, óperas, do Parlamento Europeu. Acabaria produzindo um livro. Prefiro voltar à história; viajando para o lugar, é fácil observar os pontos turísticos. Mais difícil é descobrir o peso que eles carregam. Essa cidade, fundada pelos romanos para manter longe os bárbaros, sediou também a aurora da Idade Média. O Juramento de Estrasburgo, que dividiu entre os três herdeiros o império franco de Carlos Magno, é o berço comum da França, da Alemanha e de seus respectivos idiomas. O documento, em latim e nos dois então dialetos regionais do império, é considerado o primeiro texto escrito em ambas as línguas. Como se vê, esses países que tanto brigariam são, no fundo, um só.
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Mas a Alsácia é uma prova de que a união de sangue não basta para garantir a paz. Tomada pelos franceses no século XVII, voltaria ao meio germânico após a guerra Franco-prussiana de 1871, que marcou o surgimento da Alemanha como nação unificada. Nada teria acontecido, não fosse a irresponsabilidade de Napoleão III, "O Pequeno", segundo Zola, que não aceitou os termos de rendição originalmente impostos por Bismarck, exigindo um pequeno naco do território. Após o cerco de Paris, episódio traumático para os gauleses, a derrota era ainda mais inevitável e o butim, muito maior: Bismarck não aceitaria menos do que toda a Alsácia e toda a Lorena.
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Assim ficaram até a 1a Guerra Mundial. A derrota alemã devolveu à França ambos os territórios, num episódio celebrado por um famoso discurso de Georges Clemenceau, primeiro-ministro à época. Foi uma atitude irresponsável, porque esqueceram de pedir a opinião dos habitantes das duas regiões, que jamais haviam manifestado, em suas eleições locais, qualquer vontade de retornar ao seu antigo país. Somado a outras cláusulas injustas do tratado de Versalhes, que encerrou a guerra, o episódio contribuiu para precipitar o segundo conflito, duas décadas depois, em que a Europa e o mundo inteiro estiveram à beira do colapso, e a Alsácia esteve novamente em mãos alemãs.
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Todo o sangue derramado pela sua posse atesta a riqueza da região. Acredita-se que Gutenberg possa ter desenvolvido sua prensa em seus arrabaldes. A Marselhesa, hino francês, foi composta dentro de um dos prédios da cidade antiga. Mozart tocou no órgão de uma das igrejas. Hoje, a Alsácia é uma das regiões mais industrializadas da França, talvez pela proximidade com o mercado alemão. A cegonha, símbolo daquela terra produtora de um vinho muito apreciado, pode ser vista nos desenhos do artista local mais famoso, chamado Hansi. O desenhista, apesar do nome claramente germânico, era um francófilo renhido, que representava sempre sua cidade coberta de bandeiras em azul-branco-vermelho.

Está para ser inaugurada uma linha de TGV naquela direção, provavelmente a última das áreas mais importantes da França a ser contemplada. Quem tiver interesse em conhecer a Alsácia e o Sudoeste da Alemanha na primavera, a começar dentro de um mês, pode aproveitar a nova e rápida oportunidade. É a melhor época para ir: o povo de lá tem um gosto especial pelas flores, que transbordam de todas as sacadas a partir de abril.

3.3.07

Seção dedo de prosa: Os cinco maiores beijos que não dei


Atendendo ao convite do Marcão, do blog Hedonismos, velho amigo de textos, chopes e peladas, segue minha resposta para o tema "Os cinco maiores beijos que não dei". Cheguei a acreditar que a idéia era contar histórias verídicas, mas depois pensei melhor, e resolvi postar um ciclo de cinco narrativas, ou uma narrativa de cinco partes, se preferir. Valeu, Marcão; espero que esteja do seu agrado!

1) Em que ano foi? Foi ontem. Eu agi como um idiota, eu era completamente idiota naquela época e se passar por uma situação parecida vou acabar descobrindo que ainda sou. É o que penso quando sou convidado para jantar na casa daquele casal que não consigo deixar de ver como um desvio no curso natural dos eventos. Um desvio de que eu mesmo sou o grande culpado, vilão da minha própria vida. Ela abriu suas últimas cartas em desespero. Tocou na minha casa com a voz quase sumida. Chovia? É claro que chovia, era noite, noite grossa, noite toda feita de tormenta e dor. Ela implorou para que eu a deixasse subir, eu neguei aos gritos, mas num instante ela chegava à minha porta, porque meu dedo não tem voz e assentiu. Deixei-a sentar-se no sofá, enquanto eu arrastava as costas parede abaixo, tremendo de febre por revê-la. Queria expressar raiva, mas não pude esconder o pavor que minha respiração ofegante denunciava. Ouvi sua voz difusa dizer que não poderia se decidir sem ouvir meu veredito. Demorei, talvez de propósito, a entender que ela falava em um pedido de casamento. Jurou que não o amava, mas aceitaria se eu não dissesse uma palavra para impedir. Foi um ataque frontal ao meu amor-próprio, ainda estilhaçado pela ofensa recente, a impressão ainda vida de uma traição escandalosa, vergonhosa, imperdoável. Senti-me ofendido até a raiz mais profunda do meu caráter. Sensato, controlado, o homem sem ciúmes não permitiu que ela saísse do apartamento para enxugar as lágrimas talvez falsas contra um peito que deveria ser-lhe estranho. O homem sem ciúmes agarrou seu braço, puxou-a com violência, machucou-a, atirou-a ao chão insensivelmente e a amou com a energia do ódio. Não sei que homem é esse. Eu sou um tolo ciumento.

2) Quando ela mandou o cretino descer para comprar cigarros, eu deveria ter me oferecido. Cheguei a ter o impulso, mas fui tomado por um desejo estúpido de ficar a sós com ela, e essa idiotice manifesta me silenciou. Mal bateu-se a porta, sua expressão se alterou e ela me atirou, como carne a um cão faminto, a pergunta. Mas como responder se acho que seu casamento a faz infeliz? Que ao menos faça. Para mim, essa união é um convite ao suicídio. Não o disse. Apenas sorri. Já ela se inclinou. Insinuava-se sem tentar dissimular. Entrei em pânico, senti o colarinho empapando-se de suor. Ela dizia, no tom tranqüilo da manipulação, que passava os dias sofrendo, naquele apartamento luminoso e decorado com gosto. Que só suportava sua vida porque queria me atingir, me ferir, me humilhar. Eu fazia de tudo para não escutar. Entrei em devaneios. Fiquei observando os restos do jantar nos pratos imóveis até sentir uma identificação com as manchas de molho e os pedaços de gordura. Ela parou de falar e passou a morder as unhas, olhos pregados nos meus. O homem galante e corajoso tomou-a pela mão, escancarou a porta e irrompeu pelo corredor a arrastá-la atrás de si, todo promessas, todo sonhos, ambos gargalhando com o coração fora de compasso, deixando para trás todas as posses, os documentos, a vida infame que atestava a frustração de um amor inescapável. Não há galanteria. A coragem é uma mentira. O maldito marido, homem-sorriso sarcástico e presunçoso, atirou sobre a mesa o pacote de cigarros. Eu fumei desejando o câncer.

3) Era quarta-feira, concluí finalmente que me tornava obsessivo. Foi quando tentei fazer a barba de manhã e a idéia de trabalhar me pareceu absurda. Eu estava convencido de que todos os colegas me vinham me olhando de viés, conhecedores profundos da minha história, mais até do que eu mesmo. Cruéis, insensíveis, cretinos. Telefonei para o escritório e avisei que não compareceria. Febre, eu disse. E não era mentira. Passei todo aquele dia deitado na cama de olhos abertos e língua seca. Não comi, não escovei os dentes, ao cair da tarde tinha a boca amarga e a língua dormente. Quando escureceu, levantei-me de súbito com a decisão tomada: ir a algum lugar. Fazer algo. Joguei sobre os ombros qualquer paletó e me atirei escada abaixo. Saí pela cidade sem olhar para os lados, sem me preocupar nos cruzamentos, sem evitar os buracos. Tropecei mais de uma vez, feri as mãos. Dois mendigos bêbados, da outra calçada, riram-se de mim e quebraram uma garrafa ao chão. Homenagem mais do que adequada. Segui, trôpego. Não sei como fui parar naquele canto da cidade. Ela me sustentou quando eu estava para cair. Uma menina, nada mais. Um homem de terno se aproximou. Porteiro. Ela o afastou. Lábios fosforescentes, olhos ensombrecidos de lilás, sorriu e me perguntou se tudo estava bem. Eu tinha dinheiro no bolso. Levou-me para o seu quarto, só havia a cama, depositei o dinheiro, ela o guardou debaixo do travesseiro. O homem sonhador ofereceu-lhe um lar, prometeu uma vida diferente, comprou vestidos de estilo para tomar o lugar das meias arrastão. Minha realidade é um pesadelo. Caí em mim, declarei toda a gratidão do mundo àquela garota, jamais retornei àquele bairro. Mantive-me fielmente atado à minha insensatez.

4) Isto está virando um diário. Posso mentir, é só para mim. Mas não minto. Não consigo. Ia dizer que ela passou a se jogar aos meus pés com regularidade cada vez maior. Que eu me senti vingado e a cada dia me deleitava mais profundamente com seus uivos de arrependimento. Ela desapareceu. Não deu mais sinal de vida. Apagou-me de sua memória, pensei. Era justo o que eu queria. Paz. Para ela. Que me desrespeitou, me traiu, me usou e não se importou em me esquecer depois, quando tentei impor alguma resistência. Parti de carro para sua casa. Tirar tudo a limpo. Acelerei demais? Cheguei em um instante. Parado diante da portaria, quanto tempo fiquei? Poderia ter morrido com o gás do escapamento. Pessoas entram e saem. Casais. Adolescentes. Mas ela se esconde de mim. Sabe que estou aqui. Ela conhece meu carro, ela me conhece. Finalmente ela desponta ao final da rua, pacotes de compras na mão. Eu fui atrás dela. Saí da minha casa, humilhei-me. Para correr atrás dela. O homem sem orgulho pulou para a rua, enlaçou sua cintura, riu de sua expressão de espanto e das garrafas de leite que se quebravam no chão. O homem sem orgulho não precisou de mais do que duas palavras para dar seu perdão e jurar seu amor. Duas palavras e um beijo profundo. Em seguida, o homem sem orgulho a conduziu para o banco de passageiro e partiu com ela para uma cidade tranqüila e distante. Minha garganta não consegue sufocar o despeito. Rilhando os dentes, dei a partida e afoguei o orgulho na intranqüilidade do álcool.

5) Ela é pálida como a virgem dos poemas. Ela é promessa de calma sem fim. Ela não queima, ela não trai, ela jamais falta. Uma vez tocados os lábios nos seus, não há risco de distanciar-se. Nunca mais. Aos milhões, janelas cintilam, grandes manchas amarelas nos meus olhos mareados. Ela é o que me resta, o que desejo, meu destino verdadeiro. As luzes das outras janelas marcam o tempo, mas para mim o tempo marca a cadência das memórias infelizes. Entre ela e eu há apenas o receio. O meu receio. O cabo de algum aparelho elétrico, um revólver, a brisa gelada e fuliginosa da cidade bastam para que ela me abrace, para que nos beijemos, para que eu esteja eternamente deitado ao seu lado. Um pouco de engenhosidade, copos de bebida, a cabeça vazia e o coração pesado. Silêncio. Adeus à insônia, às rugas, à sucessão interminável de mentiras e desculpas. É a mais simples das uniões. Frio, meticuloso, o homem desiludido amarrou o cabo do abajur no eixo do ventilador, duas voltas bem firmes e um puxão violento para estar certo de que não haveria risco de falha. De mais uma frustração. O homem desiludido, embriagado de convicção e ciente do que fazia, escolheu uma cadeira já bamba e perfeita para receber o último pontapé antes do primeiro beijo. O homem desiludido se perdeu em gargalhadas enquanto engajava toda a energia do corpo na queda para o infinito. Eu não sou capaz de escapar à sedução da credulidade. Engulo como se fosse hóstia a pílula que me permite dormir, sem sonhos, até que a rotina torne a me colocar sobre dois pés.

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