10.7.06

Die Cotia Mauer

Berlim, 1961. Uma manhã nublada, fria e escura no final de um inverno particularmente rigoroso. O pequeno Fritz, oito anos recém-completados, morador da região de Alexanderplatz, parte oriental da cidade, brinca com seu aviãozinho de papel à beira da área desmilitarizada da cidade, sob os olhares condescendentes de soldados soviéticos e, para lá do arame farpado, norte-americanos.

Fritz é filho de um torneiro mecânico e uma professora ginasial de Consciência Revolucionária. Seu avô, um bravo praticante de equitação, consta das estatísticas de baixas da Wehrmacht em Stalingrado. Em suma, Fritz é uma criança alemã-oriental padrão do início dos anos 60.

Até essa manhã pesada de 1961. Desatento para tudo, salvo seu aviãozinho de papel, Fritz não se dá conta de que subitamente seu brinquedinho improvisado causa um grave incidente diplomático ao invadir o espaço aéreo da terra de ninguém, ciosamente guardada pelos sorumbáticos combatentes do povo. Ignorando toda a conjuntura geopolítica, Fritz se arrisca pelas trincheiras e arames farpados para resgatar seu patrimônio. À distância, com a vista prejudicada pelo nevoeiro que cobre a sofrida capital alemã, um jovem guarda, incumbido da missão de manter os alemães orientais no oriente alemão, confunde nosso herói com um cidadão insolente em meio a uma tentativa de emigração forçada.

“Halt!”, grita. Não obtém resposta da criança que se ri enquanto um pedaço de arame lhe rasga o calção. O soldado atira para o alto. Nada. Pesaroso de ter de cumprir seu dever, sob risco de corte marcial, faz mira com seu fuzil siberiano e dispara. Bem treinado nas academias do norte, seu tiro é certeiro.

A morte de Fritz causou enorme comoção em ambos os lados do país dividido. Talvez por coincidência, alguns meses depois uma multidão de pedreiros em seus caminhões barulhentos aporta na região do infeliz ocorrido. E ao raiar do sol, os berlinenses, à exceção de JFK, acordam com um muro dividindo sua cidade. Eles estão incrédulos. Como um muro tão extenso pode ficar pronto em tão pouco tempo? É a eficiência alemã.

Coloquei no texto esse preâmbulo com o objetivo de chamar a atenção para uma terrível coincidência que une cidades tão diferentes, em países tão distantes, com quatro décadas de intervalo. Tão trágica quanto a história de Fritz é a do brasileiro Wesley Snaipes de Jesus, que em 2001, quando perdeu a vida, tinha a mesma idade de seu antípoda alemão.

Wesley, também filho de um operário e uma professora primária, era morador da cidade de Cotia, distante cerca de 30 quilômetros de São Paulo. No último dia de sua existência, brincava com sua socada bola de futebol quando, na empolgação de uma jogada bonita, deu um chute descontrolado que mandou a pelota para o meio da rodovia Raposo Tavares, que atravessa o centro do município.

O garoto, quente e suado que estava pela sua partidinha de futebol, não deu atenção aos veículos que atravessavam velozmente sua pequena cidade, rumo a Sorocaba ou Ibiúna. Correu para o meio da pista atrás de sua bola querida, companheira de todos os momentos. Wesley sabia que um dia seria jogador de futebol. Mas seus sonhos foram abortados por força de um automóvel de marca Audi, cujo proprietário não teve tempo de frear e, constrangido, perdeu a oportunidade de passar um final de semana agradável à beira da represa.

Se algum ponto positivo houve nessa história, foi a comoção que causou nos dignos responsáveis pelas rodovias paulistas. Reuniões foram marcadas. Os burocratas analisaram dezenas de diferentes projetos para desviar o trânsito da rodovia sobrecarregada, que jamais poderia passar pelo centro de uma cidade em franco crescimento, como Cotia.

Após mais de um ano de discussões, concluíram que a primeira proposta era a mais racional. Como a estrada faz uma curva à esquerda antes de entrar na cidade e outra após deixá-la, a idéia era simplesmente construir um novo caminho que circundasse Cotia. Parece milagre, mas essa opção poderia até tornar mais curto o percurso.

Comunicaram sua decisão ao prefeito, ao governador e a todos os demais interessados. Receberam apenas caras fechadas. Os comerciantes da cidade não gostaram da idéia, porque poderia prejudicar seus negócios. Nenhuma empreiteira se interessou pela obra, considerada pouco rentável. Os donos dos terrenos a serem desapropriados fizeram pressão para levar alguns caraminguás a mais. A idéia empacou e voltou-se à mesa de discussões.

Até que, finalmente, o consenso foi alcançado. Ficou projetada a construção de um grande e espesso muro na parte da estrada que passa pelo município. Às margens do muro, o trânsito local. Por cima, a via expressa. Nunca mais haveria um Wesley Snaipes! A população poderia dormir tranqüila, os comerciantes não perderia seus clientes, a empreiteira, os políticos locais e quem mais estivesse envolvido poderia colocar algum no bolso e todos ficariam contentes.

Chegaram, então, os tratores, os capacetes e os esquadros. As obras começaram em 2002. Um viaduto aqui, um muro de arrimo ali. E finalmente, em junho de 2006, nas celebrações dos cinco anos de morte de Wesley, inaugura-se o grandioso Muro de Cotia, ou Cotia Mauer, que separa em duas a malfadada cidade paulista, agora a Berlim dos trópicos. Quem está em Ost Cotia não consegue enxergar as casas de West Cotia, e vice-versa. Para ir de uma a outra, só pelos dois ou três checkpoints, isso é, passarelas. E nada de Gorbatchev para promover uma Glasnost.

Passar pela seção recém-inaugurada da rodovia é um prazer para quem está no controle dos pedais. O Brasil é hoje um país europeu, com suas divisões internas e tudo. Dá um orgulho danado. Principalmente para quem abre a janela e não dá de cara com um paredão de concreto, como os heróicos cotienses.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Quem se importa com Cotia?

17:14  
Anonymous Anônimo said...

Acho o texto muito lúcido e poético. Faz pensar... Só não entendi a pergunta acima, como assim, quem se importa com Cotia? A questão não é Cotia e sim as soluções encontradas pelos homens. Eu me importo com Cotia, me importo com a humanidade. Não gostaria nem um pouco se construissem um muro gigante que dividisse a minha cidade em duas partes incomunicáveis.

16:01  

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