22.5.06

Outubro ainda não chegou

Um amigo comenta os eventos da semana passada em São Paulo. Formado na melhor tradição trotskista, tenta vislumbrar uma semente de revolução. Acompanhando seu raciocínio, não me sinto convencido. Condescendente, ele desce alguns degraus em sua escada ideológica e muda o termo, de "revolução" para "sublevação". Quase passo a concordar com ele, mas depois de matutar um pouco chego a uma conclusão diametralmente oposta.

Sublevação sugere um movimento razoavelmente organizado de massas contra um establishment que reconhece e admite como superior. Para que haja uma sublevação, são necessárias reivindicações comuns, uma espécie de movimentação interna, subjacente a essas massas.

Evidentemente, no caso paulista não houve, nem haverá, nada disso. As chamadas massas, noves fora, foram as maiores vítimas de tudo que aconteceu, não seus promotores. As massas queriam pegar seus ônibus e ir para seu trabalho, como todo dia; queriam seguir sua rotina opressiva.

Então, o que aconteceu? Ora, nada de surpreendente: uma medição de forças entre aqueles que garimpam a energia criativa da sociedade através do Estado e aqueles que não têm mais de onde serem garimpados e preferem garimpar também, correndo por fora.

Traduzindo: quem pode mais? Aqueles que controlam o Estado para se fazer em cima da sociedade, ou aqueles que estão excluídos da sociedade e atuam nela através da violência e do crime?

O grupo criminoso que aterrorizou a cidade durante um fim-de-semana, ao contrário do que possa constar em seu "estatuto" (sim, eles têm um estatuto), não tem interesse nenhum em subverter a lógica da sociedade, ou de conduzir as massas a algum tipo de sublevação. Não são comunistas, ao contrário do que dizem alguns alarmados seguidores do Olavo de Carvalho. Seu interesse é tão capitalista quanto o de qualquer empresa: querem lucros em sua atividade e querem controlar o Estado.

E neste país, em que governar é abrir estradas, tanto a política quanto a administração pública se realizam apenas na fachada. Enquanto Delfim Netto muda do PP(B) para o PMDB, descobre-se que em São Paulo a construção de novas cadeias não contemplou nenhuma evolução nas próprias prisões, ou seja: um pouco mais do mesmo.

(É exatamente idêntico ao que se verifica, por exemplo, no metrô: duas novas estações foram inauguradas, mas a capacidade do sistema para receber passageiros não mudou em absolutamente nada. Viajar de metrô em São Paulo, hoje, é um ato de coragem. Quem é louco o suficiente para ficar na primeira posição da fila para entrar no trem, por exemplo, na estação Paraíso? Outro dia aconteceu comigo. Fiquei rezando para ninguém tropeçar ou gritar "fogo": eu morreria imediatamente.)

Governos fracos e pusilânimes, empurrando suas administrações com a barriga para poder tocar seus projetos de poder (mas para quê o poder, se não para administrar? Será para enriquecer? Massagear o ego?). Criminosos abastecidos com uma fonte inesgotável de recrutas já treinados nas cadeias e institutos correcionais. Funcionários públicos corruptos. Uma sociedade ultrapassada, sem educação, formada em escolas cujo grande projeto é atingir marcas na estatística de aprovação do vestibular. Que mistura pode dar?

No meio disso tudo, ei-las: as massas. Apertadas entre os impostos que pagam ao comprar arroz, e que só servem para sustentar os descendentes das famílias quatrocentonas que gostam de se considerar "de bem". Oprimidas por sistemas de transporte e moradia falidos e planejados para deixá-las longe e sempre ocupadas. Incapazes de erguer a voz, por conta da ausência de escola. Produzindo filhos que serão como eles, salvo se entrarem para o grupo cada vez mais numeroso dos criminosos ou, graças ao futebol, à música ou alguma outra bênção do destino, chegarem ao Morumbi.

Como esperar uma sublevação dessas massas? Sistematicamente tungadas, explicitamente mantidas na miséria e na ignorância... A sublevação, e mais ainda a revolução, exigem consciência de classe; exigem auto-coordenação. Algo muito diferente do proselitismo que os partidos de esquerda tentaram introduzir durante a ditadura militar.

A espiral parece sem saída. O caminho que leva à revolução é idêntico ao que leva ao desenvolvimento: a formação humana. Se o brasileiro continuar vivendo nessa sociedade escravocrata e obscurantista, o país seguirá atrás. Enquanto isso, nossos vizinhos saltam em direção ao futuro.

E nós continuamos sendo os patinhos feios.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito bom o artigo! O blogueiro podia se concentrar mais em análises como esta.

01:54  
Anonymous Anônimo said...

Comunista!

05:39  

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