11.1.08

Pessoas simples e gostos abstrusos


Certa vez, eu estava muito contente – lembro que, nesse dia, bebi um pouco além da conta –, graças a um jogo de futebol. Um triunfo sonoro, além de qualquer recurso, para cima de um tradicional e maligno rival. (Sim, sustento até hoje, com a maior seriedade, que forças demoníacas alimentam aquele clube.) Era uma final de campeonato, o juiz e o locutor torciam sem pudores para o outro time, mas goleamos mesmo assim. "Goleamos"? Não, eu não entrei em campo. Mas minhas poderosas emanações de torcida cumpriram a missão. E com sobras. Para resumir, todos os ingredientes de um alegre final de tarde esportiva estavam reunidos, ali, entre meus amigos e eu. À noite, quando tomei o rumo de casa, só queria que aquele instante se eternizasse.

Na chegada, o elevador fez escala no andar onde vivia, e ainda vive, uma curiosíssima e típica família alemã. Os homens, pai e filho, são bonachões, relaxados e, na verdade, um pouco ridículos. As mulheres, mãe e filha, ocupam o pólo oposto: rígidas, sisudas, intolerantes. Pois bem: na noite em questão, quem tomou o mesmo elevador que eu, de saída para algum jantar, foram os pais. A senhora, mais acostumada à minha postura sorumbática das manhãs, ficou chocada com o sorriso largo, o cumprimento efusivo e o bafo de cachaça. Olhos arregalados, perguntou-me se eu tinha acertado a centena e o milhar. Não, repliquei. Minha alegria era bola na rede e caneco na mão.

Como se poderia esperar de um casal tão antinômico, as reações foram díspares. Entre suas bochechas afogueadas, o velho teuto soltou uma breve risada e um lamento: "– Perdi o jogão! Me dei mal!" Já sua esposa, de quem sempre desconfiei ser uma agente infiltrada da Stasi, ergueu as sobrancelhas e desdenhou de minha euforia: "– Pessoas simples têm prazeres simples", comentou, e nada mais. Só me restou concordar com a justeza da observação, mesmo sabendo que, ao me chamar de simples, na realidade ela queria dizer que sou simplório.

Ofensas à parte, o único motivo pelo qual sei que não sou simplório é o fato de que, eventualmente, tenho inveja de quem é. Isso acontece quando me angustiam problemas abstratos, até metafísicos, que, espero, não podem me ferir de verdade. Ora, a única angústia do simplório é com o risco de ter um celular ultrapassado. Logo, não sou um deles. Desse risco, pelo menos, estou livre.

Mas não chega a me incomodar a idéia de ser uma pessoa simples, com prazeres simples. Acontece que conheço alguns prazeres bem complexos, intrincados, diria mesmo... abstrusos. E, para ser honesto, preciso confessar: não são assim tão prazerosos quanto parecem. Vale para o sabor de um Pauillac tinto, com seus taninos reforçados e o gosto que persiste. E vale igualmente para a compreensão, terrivelmente árdua, de uma frase de Marcel Proust com 481 palavras, que só adquirem um sentido inequívoco depois de relidas uma dúzia de vezes.

Não me entendam mal. Longe de mim recusar os prazeres eruditos. Mergulhar nos volumes do Tempo Perdido é uma delícia, e mais difícil do que fazê-lo é convencer os demais de que vale a pena. Mas é coisa arriscada, e exige mais força moral do que, propriamente, inteligência. Não é difícil conceber, até porque acontece quase sempre, o que pode se passar com uma alma tíbia que se entrega a esses prazeres exigentes. Pouco a pouco, sem perceber, o ser inocente vai absorvendo as coisas de que gosta, vai se tornando complexo, depois intrincado, até que... pronto. Tornou-se abstruso. Talvez seja o que aconteceu com minha vizinha, a agente da Stasi.

O espírito que é forte, além de inteligente, pode se enfiar até o pescoço nas delícias difíceis da alta cultura, que mesmo assim jamais abandonará sua simplicidade. Não será um bárbaro primitivo porque enche a cara depois de uma vitória de seu time; talvez o seja, se arranjar briga com uma horda rival, mas isso é outro problema. Tampouco é absurdo que aquele mesmo torcedor, que ontem dormia na calçada em posição improvável, hoje vista terno e discuta, entre os sábios do templo, as obras-primas de Fassbinder.

Aí está o erro da disciplinada senhora alemã. Pessoas simples têm, sim, prazeres simples. E estão corretíssimas. Já as pessoas complicadas, e que gostam de ser complicadas, essas precisam ser mandadas, na falta de casas de correção, para colônias de repouso. Um Spa moral, digamos assim. Para ver se recuperam um pouco de sua simplicidade, no lugar de murchar entre gostos abstrusos.

PS:
Dicionário Caldas Aulete –
abstruso: adjetivo.
1 Que se acha oculto ou encoberto: As conseqüências são claras, as motivações, abstrusas [Antônimo: claro, evidente, manifesto]
2 Difícil de entender (estilo abstruso); obscuro; intrincado.
3 Sem ordem, lógica, estrutura; confuso; incongruente [Antônimo: coerente, ordenado]

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

eu tenho o livro de cartas do caio... as paginas marcadas do titulo do meu texto, são do livro.
Onde me achaste??
curti teu blog..

03:21  
Blogger Héber Sales said...

Obrigado pela visita, Diego. Teu comentário me lembrou o Manoel de Barros: "hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério.".
Um abraço.

13:00  
Blogger Sandra Leite said...

Olá,

Vim para agradecer a sua visita ao Isso é Bossa Nova e qual não é minha surpresa?

Adorei seu blog!

Jazz? Rendi-me

Vou colocar um link para vistar com maior frequência!

abraços,

PS: é difícil dizer quem foi o maior poeta. Eu, particularmente, sou apaixonada por Drummond, Pessoa e Quintana. Agora veio Borges fazendo uma bagunça na minha vida e Bandeira....ele é maravilhoso! Viva a poesia!

15:36  
Blogger Ricardo C. said...

Aulete de quantos volumes? Porque faz uma diferença danada! Conheci o de cinco, mas gostava de copulsar o de 2 volumes. E para terminar, o atual não é digno do nome...

09:56  
Anonymous Anônimo said...

Porra, esse blog é uma obra de arte. Parabéns!

15:00  

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